PFDC aponta inconstitucionalidades em PEC que pretende alterar função social da propriedade

Proposição retoma regime de propriedade superado pelo direito brasileiro desde 1964 e compromete proteção a direitos fundamentais. Nota Técnica foi encaminhada ao Congresso Nacional

A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), órgão que integra o Ministério Público Federal, encaminhou nesta sexta-feira (4) ao Congresso Nacional uma Nota Técnica em que aponta uma série de inconstitucionalidades na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 80, que propõe reduzir as exigências relativas à função social da propriedade.

A PEC, que atualmente aguarda análise da Comissão de Constituição e Justiça do Senado, busca alterar os artigos 182 e 186 da Constituição Federal a fim de diminuir os critérios para que um imóvel urbano ou rural cumpra sua função social. A proposição também altera parâmetros de desapropriação – medida que passaria a ser condicionada à prévia autorização do poder legislativo ou de decisão judicial.

A PEC 80 trata a propriedade como “direito sagrado” e, segundo seu texto, teria como objetivo diminuir a discricionariedade do Poder Público na avaliação de desapropriação desses imóveis.

A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão aponta, no entanto, que a proposta subverte o conceito de propriedade inscrito na Constituição de 1988 – comprometendo todo o seu sentido quanto à organização coletiva da vida, além de incorrer em ofensa aos princípios federativo e da separação de poderes.

“O direito à propriedade, tal como concebido na PEC 80, praticamente inviabiliza o gozo de muitos outros direitos fundamentais, como a dignidade, a moradia, a saúde e o meio ambiente”.

O texto da Nota Técnica esclarece que o tratamento à propriedade como direito sagrado é concepção que encontra alguma ressonância em Constituições liberais, mas é absolutamente incompatível com a Constituição Federal brasileira.

O documento ressalta que no Brasil a função social da propriedade está prevista de forma expressa em textos constitucionais desde 1967 e que o próprio Estatuto da Terra (Lei 4.504, de 1964) já traz a função social agregada ao conceito de propriedade.

“A Constituição de 1988, como Constituição social que é, além de seguir a linha das suas predecessoras, vai cobrar intervenção do Estado para garantir a função social da propriedade no paradigma dos chamados ‘direitos humanos de segunda e terceira geração’, assim considerados os direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais”.

Ao tratar da incompatibilidade da PEC 80 com o sentido e com as cláusulas pétreas da Constituição de 88, a PFDC ressalta que o regime constitucional atual é marcado por forte compromisso com a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, bem como com a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades – conforme explicita o art. 3º do texto constitucional.

Desse modo, portanto, o instituto da propriedade privada se submete a inúmeras conformações: deve atender à sua função social (art. 5º); cede diante de territorialidades indígenas (art. 231); é transferida, mediante desapropriação, às comunidades quilombolas (art. 68 do ADCT e STF: ADI 3239); está sujeita a confisco quando nela forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo (art. 243); e tem que atender às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor (art. 182).

“Como visto, trata-se de uma Constituição de forte acento social, e a PEC 80 é expressão genuína do retorno a um regime de propriedade superado pelo direito brasileiro desde 1964”, reforça a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão.

Ofensa à autonomia federativa e à separação dos Poderes

A Nota Técnica destaca ainda que a alteração proposta pela PEC 80 retira da esfera de competência de cada município parte considerável da definição das suas normas fundamentais de ordenação urbana.

De acordo com o que prevê a PEC, a própria norma constitucional passaria a delimitar diretamente, em seus incisos, as hipóteses em que a propriedade urbana deixaria de atender sua função social. Assim, os gestores municipais seriam ceifados de importante instrumento apto a compatibilizar o usufruto das propriedades privadas com o interesse público. Consequentemente, aspectos da realidade local de cada município deixariam de ter relevância na definição da função social das propriedades urbanas.

“Há aqui a mais séria interferência na autonomia municipal, especialmente na perspectiva dos sujeitos implicados. A cidade, nela incluída a possibilidade de sua expansão e desenvolvimento, é uma construção coletiva que se traduz no plano diretor. Essa preocupação também está expressa no art. 29 da Constituição, que passou a exigir a efetiva participação popular no planejamento municipal”. O documento lembra que o Supremo Tribunal Federal tem entendimento consolidado de que a ofensa à forma federativa de Estado se configura, quando não observada a divisão de competências estabelecidas no próprio texto constitucional.

A Nota Técnica aos parlamentares também chama atenção à ofensa ao princípio da separação dos Poderes presente na PEC 80. Isso porque, pela proposta – seja em meio urbano, seja em meio rural – o descumprimento da função social somente será declarado por ato do Poder Executivo, mediante autorização prévia do Legislativo, ou por decisão judicial.

Essa, no entanto, trata-se de uma atribuição administrativa por excelência, que se desenvolve no âmbito de procedimentos específicos para fins de desapropriação.

“Compartilhá-la com outros poderes é avançar na ‘reserva de administração’ e, com isso, atingir o núcleo insuperável da separação de poderes”, reforça a PFDC ao lembrar que, também para esse tema, o Supremo Tribunal Federal já conta com vasta jurisprudência.

A Nota Técnica é assinada pela procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, em conjunto com membros do Grupo de Trabalho da PFDC sobre Reforma Agrária.

Assessoria de Comunicação e Informação
Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC)
Ministério Público Federal

Ilustração: AJD (parte)

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