Ailton Krenak fala de sua leitura de mundo no contexto das mudanças climáticas

“As pessoas acham que as mudanças climáticas são um enunciado para o futuro, mas para nós que vivemos dentro da floresta, isso acontece há algum tempo, e dependemos dela para ter remédio, alimento e abrigo”

Por Sucena Shkrada Resk, em 350.org Brasi

Ailton Krenak, aos 66 anos, liderança indígena dos Krenak, da região da Bacia do Rio Doce, em Minas Gerais, é o entrevistado especial desta semana, da 350.org Brasil. Com um extenso repertório de mobilização ao longo de sua vida, pela causa indígena e socioambiental, tem uma desenvoltura ímpar para contar histórias, defender causas, com riqueza de contextualização e argumentos, que prende a atenção dos ouvintes por onde passa. 

Um dos episódios marcantes desta trajetória aconteceu quando com seu rosto pintado de jenipapo discursou na Assembleia Constituinte em 1987. Teve uma fala de resistência e foi um dos atores fundamentais para o capítulo indígena na Constituição de 1988 junto com representantes indígenas de outros povos. Neste mesmo ano, foi um dos fundadores da União das Nações Indígenas, e no ano seguinte, participou da Aliança dos Povos das Floresta, que reunia indígenas e seringueiros com a proposta de criação das reservas extrativistas. Incansável, diz até hoje – “É preciso continuar lutando por estes direitos”.

Durante sua vida, foram incontáveis episódios e muitos deles estão descritos em seu livro de memórias “A luta pela terra não parou até hoje”, de 2015, com 14 entrevistas que concedeu entre os anos de 1984 e 2013. Neste ano, sua obra mais recente é “Ideias para Adiar o Fim do Mundo”, pela Cia. Das Letras, em que critica a ideia de a humanidade ser vista como separada da natureza.

Ailton Krenak já atuou como produtor gráfico, jornalista, mas é como palestrante e debatedor, que gera, cada vez mais, respeito por onde contribui com seus saberes. Após algumas fases longe de sua aldeia em que teve a oportunidade de “rodar o mundo” levando a sua mensagem, retomou à sua aldeia na região do Rio Doce, tão castigada pelo banho de lama tóxica, em novembro de 2015, quando houve o rompimento da barragem de rejeito da Samarco Mineração, pertencente à Vale e da BHP Billinton, em Bento Rodrigues, Mariana. Os comprometimentos se estenderam até o litoral do Espírito Santo. Ele é um crítico contumaz desse que é considerado o maior dano ambiental no Brasil.

Em entrevista concedida à jornalista Sucena Shkrada Resk, da 350.org Brasil, em São Paulo, Krenak permeia os desafios enfrentados por povos indígenas frente às mudanças climáticas até o que assegura em seus modos de vida, o papel de “defensores climáticos”.

350.org Brasil – Quais os principais desafios com relação às mudanças climáticas que os indígenas enfrentam hoje?

Ailton Krenak – Existe um vídeo – Para onde foram as Andorinhas, com indígenas do Parque Indígena do Xingu, que foi produzido em 2016, pelo Instituto Catitu e pelo Instituto Socioambiental (ISA), já mostrava como a questão das mudanças climáticas estão afetando o cotidiano das aldeias. Neste caso, no Xingu, causou o dano para os pés de bananas e caju, que ficam pretos, antes de madurar e o cacho da banana adoece antes do ponto de ser comido. Muitas outras espécies endêmicas, que só ocorrem naquela região, estão sendo afetadas. De onde os indígenas tiram as matérias para o seu cotidiano, estão ficando sem esses recursos. E um dos anciões fala uma coisa preocupante – ‘Nós sempre vivemos aqui e nunca tivemos de tirar nada fora da floresta. Daqui a pouco, não vamos ter mais o que comer aqui dentro’. Para mim, isso é a coisa mais direta que está afetando as comunidades indígenas. O ciclo da polinização que está mudando. Na minha casa, na minha aldeia, estamos enfrentando um drama tão brutal, pelo fato de o rio Doce ter sido invadido pela lama, que as outras alterações na ecologia, da vegetação, dos animais vêm como espécie de consequência. Estamos sentindo o dano desta mudança no corpo. As pessoas acham que as mudanças climáticas são um enunciado para o futuro, mas para nós que vivemos dentro da floresta, isso acontece há algum tempo, e dependemos dela para ter remédio, alimento e abrigo. As mudanças climáticas estão mudando o ciclo desta oferta da natureza.

350.org Brasil – Quais são as suas expectativas quanto à Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (COP-25), que vai acontecer em dezembro, no Chile, que é um país sul-americano, continente com forte presença indígena?

Ailton Krenak – Eu acompanhei as conferências do clima até por volta de 2012. Eu entendi que os debates que acontecem neste fórum não têm um contato direto com o cotidiano e com as políticas que os estados nacionais imprimem. Eu deixei de participar destes debates, porque achei que já se exauriram. Eu não acredito que a COP-25 vai conseguir sair deste âmbito de produzir protocolos e documentos que não são respeitados por agências multilaterais e nem pelas corporações. Então, fica o povo produzindo um repertório enorme de alternativas e de questionamentos, que a governança global ignora. 

350.org Brasil – E com relação aos protocolos de consulta que vários povos indígenas no Brasil estão produzindo, para que haja também respeito à Convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT) 169, frente à implementação principalmente de grandes empreendimentos?

Ailton Krenak – Nós mesmos, na TI Krenak, temos um protocolo indígena, como os Yanomami, entre outros povos, como tentativa de barrar a agressão e assédio que têm sido impostos às nossas comunidades, nestes processos, por governos e empresas. Mas acho que tem um limite de efetividade, porque nos tornamos uma humanidade tão ‘gasta’ com a ideia de compromisso, que o único compromisso que as pessoas estão tendo agora é com a própria realização pessoal, de uma sociedade consumista e alienada. O ambientalista e pesquisador uruguaio Eduardo Gudynas, do Centro Latino-Americano de Ecologia Social, diz uma coisa importante: ‘nós produzimos documentos, mas não somos capazes de nos mobilizar e derrubar governos quando eles abusam acintosamente desses protocolos e documentos que produzimos em várias ocasiões, inclusive, de Constituições na América Latina’.

350.org Brasil – Em relação ao Sínodo da Amazônia, que o papa Francisco coloca como ponto crucial o respeito aos povos tradicionais e indígenas, o que tem a dizer a respeito?

Ailton Krenak – Eu estou acompanhando esta discussão que o Vaticano vem realizando na última década, de aproximação da agenda política dos países principalmente da Europa que incidem na periferia do mundo. A Amazônia é um tema emblemático para que a Europa possa refletir na decisão de governos regionais. Eu acho que o papa Francisco está assumindo uma posição política relevante, que ele já deveria ter se adiantado nesta questão, para talvez ajudar a inibir a agressão que o neoliberalismo está fazendo nas economias regionais na América Latina, na África e na Ásia. O Vaticano tem um papel fundamental e responsabilidade também não só no sentido afirmativo de seu lugar, mas de uma responsabilidade que tem se omitido. Com tanto ouro e com tanto poder (historicamente), não pode se omitir deste debate.

350.org Brasil – Na Cúpula do Clima, da Organização das Nações Unidas (ONU) foi lançada a Campanha Fé pelas Florestas, envolvendo diferentes religiões com o propósito da conservação das florestas tropicais e da defesa dos povos indígenas e tradicionais. Qual sua avaliação a respeito?

Ailton Krenak – Tanto as ações do Sínodo da Amazônia, como o Fé pelas Florestas demonstram que já existe uma preocupação global com o desgoverno que estamos vivendo e com a necessidade de mobilizar as comunidades humanas para que tomem o conhecimento e responsabilidade pelos lugares onde vivem. Acredito também que devemos fazer um questionamento, como do porquê de terem sido criadas comunidades eclesiais de base, por exemplo, para se promover a fé na floresta, e terem sido censuradas pela floresta, como também a Teoria da Libertação (no caso da Igreja Católica)? O cuidado é para ter uma convergência ecumênica, que diga uma coisa e faça outra.

350.org Brasil – Como o senhor analisa a pressão que vem aumentando sobre territórios indígenas (TIs) e também sobre unidades de conservação (UCs) para a exploração de recursos naturais principalmente mineral e a questão do mercúrio que incide sobre a saúde?

Ailton Krenak – A ideia de poder explorar as TIs  e UCs, que são os últimos redutos em que o subsolo e as florestas têm sido conservados é uma ofensa  absurda. Temos de denunciar este assalto que corporações têm feito à natureza. Existe necessidade de regulação de quanto ainda podemos incidir sobre a natureza e a terra.

350.org Brasil – Como os povos indígenas defendem o clima?

Ailton Krenak – Se você tem um povo indígena que está vivendo em regiões que não foram afetadas por estradas ou hidrelétricas, por exemplo, o simples modo de vida daquele povo já promove esta regulação de clima e esta proteção da produção de vida. O nosso jeito de viver em qualquer lugar da terra é constante interação da vida das pessoas com a natureza. Aqui no continente americano, cada povo ameríndio dá respostas diversas para a pressão e desestruturação da base natural de nossas vidas, por meio dos processos de colonizações. Fazemos isso com o que guardamos de memória de nossas tradições. Se isso se constitui uma cosmovisão de mundo e que sustenta esta resistência indígena, é comum para os povos andinos, como na parte atlântica do continente. Esta é nossa força que nos faz resistir até hoje. 

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