por Elaine Tavares, em Palavras Insurgentes
Por conta do advento da internet, muita coisa que nos era desconhecia hoje chega com facilidade ao conhecimento. Uma delas é a mobilização indígena do Equador. Há quem se surpreenda ao ver as massas originárias enfrentando com paus e pedras a polícia fortemente armada, ou avançando pelas estradas como se fosse uma força da natureza. Mas, não há qualquer surpresa nisso. O nome dessa reação massiva e unificada chama-se comunidade.
Uma das coisas que o mundo moderno fez desaparecer foi justamente o sentido de comunidade. Muitos teóricos já se debruçaram sobre esse tema entendendo que nas sociedades modernas, formadas por grandes e médias cidades, só pode ser considerada comunidade a união de pessoas através de laços políticos na batalha por causas comuns. Ou seja, num mesmo bairro pode haver várias comunidades. É o que se consegue produzir coletivamente num universo tão partido e no qual é indivíduo que parece ter mais importância.
Mas, nas comunidades indígenas o sentido de comunidade não é uma ideia. É uma práxis. Ou seja, está entranhada no viver e no pensar. Muitos povos sequer têm na sua língua originária uma palavra para o “eu”. Porque o que existe desde sempre é o “nós”. No Brasil nos custa perceber isso porque nossos povos originários foram dizimados e os que restaram – cerca de um milhão – estão espalhados e discriminados num país que é praticamente continental. Mas, em países como a Bolívia ou o Equador, a maioria da população é indígena, então, não é possível viver separado dessa realidade concreta. Nas pequenas e médias cidades o viver é comunitário, esse comunitário original, carregado no gen, que faz com que a maioria se articule em torno de causas comuns, que exista organizativamente como nos ayllus ancestrais.
Por isso que quando o sentido da vida é atacado por qualquer governo, essas comunidades se levantam em rebelião. E não é coisa simples ou singela. É uma reação visceral, violenta e poderosa. Podem viver em paz nos seus povoados e até negociar com governos de todas as cores – direita, centro ou esquerda – mas, se qualquer um deles resolve atacar a terra, a água, o equilíbrio do viver, a reação é imediata.
No Equador a história mostra que as rebeliões são frequentes e arrasadoras. Na história recente foram os povos indígenas que colocaram para correr o presidente Lucio Gutierrez, depois de terem sido engadas por promessas que não se cumpriram. Tomaram as ruas e o país inteiro. Depois, vitoriosos, voltaram para seus povoados, deixando o poder na mão da mesma velha elite que domina desde a invasão. São chamados de “capachos da direita” quando se aliam aos da direita, e são chamados de “comunistas” quando se aliam aos da esquerda. Mas, eles mesmos, não se vinculam a esses conceitos forâneos, coloniais. Preferem atuar dentro da sua historicidade permanente. Outros conceitos, outra práxis, outro ethos.
Agora estão mobilizados contra as recorrentes más decisões do governo de Lenín Moreno, de corte neoliberal, bem como se levantaram contra Rafael Correa, que se chamava progressista. Tanto um como outro tocaram no ponto central das gentes originárias: a terra-mãe. O extrativismo entreguista, a falta de diálogo no trato dos recursos naturais, o desconhecimento das autonomias, tudo isso põe os indígenas em pé de guerra. Os movimentos indígenas do Equador sabem que o país é berço de riquezas minerais incontáveis e também sabem que vivem num sistema capitalista, integrado e globalizado. Compreendem as razões de estado sobre o uso do petróleo ou dos minérios, mas querem ser consultados, querem decidir junto. E isso não acontece.
Hoje, já estão aos milhares nas estradas seguindo para Quito, muitos já estão na capital. Lá se juntam aos demais trabalhadores atingidos pelo pacotaço de Lenín Moreno, que mexe não apenas no subsídio da gasolina, mas também nos direitos laborais. É uma guerra de classe. E todos estarão juntos na tentativa de derrotar o governo. Como sempre, a eles pouco importa quem fique na cadeira presidencial. O que querem é que governe obedecendo. E se isso não acontece, derrubam. É simples e singelo.
Aos atordoados brasileiros que observam os vídeos nos quais as comunidades enfrentam a polícia, os tanques, os drones, ou os grupos que chegam armados de paus e foices na grande capital, saibam que essa é a toada no Equador, bem como na maioria dos países indígenas. O que avança pelas estradas é a comunidade, o nós. Os que caem são pranteados e reverenciados, mas a coluna segue em frente, porque é uma coisa só.
O mundo indígena é complexo e belo. Há que conhecer e fazer esforço para entender.