650 mil famílias se declaram ‘povos tradicionais’ no Brasil; conheça os kalungas, do maior quilombo do país

Cruzamento de dados inédito feito pelo Ministério Público Federal mostra localização de comunidades tradicionais em todo o Brasil. G1 visitou território quilombola em Goiás que mantém modo de vida e saberes tradicionais.

Por Paula Paiva Paulo, G1

No quintal de sua casa de barro e telhado de palha, Neuza da Cunha, de 57 anos, mostra pés de tingui, mangaba, baru, pequi, cagaita, sambaíba e sucupira. “São nascidos por eles mesmos.” É assim que ela ensina que os produtos não precisam de plantio e são naturais dali, do Cerrado. Deles, Neuza extrai o óleo, tira a polpa e faz suco. Do mesmo jeito como fazia sua mãe e a mãe da sua mãe. Ela mora no Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga, o maior território quilombola do Brasil, no nordeste de Goiás.

Nesta série de reportagens do Desafio Natureza, o G1 mostra como povos tradicionais ajudam a conservar o meio ambiente ao explorarem de maneira sustentável o seu entorno. Com os kalunga não é diferente. Após séculos de ocupação de um vale cercado por serras muito altas e com cachoeiras cristalinas, a paisagem local segue preservada.

“Os kalungas estão ali há 300 anos criando gado, produzindo arroz, feijão, milho, mandioca, farinha, além do uso dos produtos da biodiversidade”, diz a ecóloga Isabel Figueiredo. “E, ao olhar as imagens de satélite, você vê o quanto aquela paisagem está íntegra”.

Isabel é coordenadora do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), entidade voltada a fortalecer iniciativas que geram renda a partir da biodiversidade e que atua na região.

Assim como os kalunga, um levantamento inédito do Ministério Público Federal (MPF) ao qual o G1 teve acesso mostra que 650.234 famílias brasileiras se declaram como povo ou comunidade tradicional. São núcleos que têm nos territórios em que vivem e nos recursos naturais que utilizam a condição de sua existência e de sua identificação como um grupo culturalmente diferenciado. Neste mapeamento do MPF, estão localizados os indígenas, quilombolas, pescadores artesanais, extrativistas, ribeirinhos, ciganos e pertencentes a comunidades de terreiro.

Para chegar a esse número, o MPF cruzou informações de cadastros governamentais do Incra, Funai, ICMBIO, IBGE e CadÚnico – registro federal voltado a famílias de baixa renda. O objetivo é criar um banco de dados digital público para dar visibilidade a essas comunidades e orientar políticas públicas. O MPF espera lançar essa plataforma digital em 2020.

Estado do Pará reúne cerca de 20% dessas mais de 650 mil famílias, a maior concentração entre as unidades da federação. É também o estado que lidera a concentração de famílias ribeirinhas (50.314), extrativistas (11.826) e pescadores artesanais (40.123). Já as famílias indígenas estão majoritariamente no Amazonas (43.264) e os quilombolas, na Bahia (43.009).

Para o procurador Wilson de Assis, o levantamento é até hoje a melhor tentativa de estimar o tamanho dessa população. Ainda assim, ele explica que o número de famílias de povos tradicionais pode ser muito maior na realidade. A defasagem ocorre porque os cadastros federais classificam apenas 7 das 29 categorias de povos tradicionais reconhecidos pela União.

Estão de fora dessa conta, por exemplo, as quebradeiras de coco babaçu, os apanhadores de flores sempre vivas, as raizeiras e os andirobeiros.

Segundo o coordenador da câmara temática do MPF dedicada ao tema, o subprocurador-geral da República Antonio Bigonha, ainda persiste certa resistência de órgãos de preservação ambiental com relação a esses povos. Para eles, as áreas de conservação podem ser prejudicadas pela presença humana. Para Bigonha, a lógica é exatamente oposta. “É um elemento poderoso de conservação e desenvolvimento sustentável”, defende. Segundo ele, o principal desafio dos procuradores desta câmara é sensibilizar os órgãos ambientais neste sentido.

A antropóloga Katia Favilla explica que a criação de algumas áreas de preservação mais restritivas, sem autorização para habitação humana, como as Unidades de Conservação de Proteção Integral, por vezes ocorre em territórios de ocupação tradicional. A pressão para a expulsão dos habitantes daquela região seria um contrassenso.

“Muitas vezes a unidade está conservada justamente porque tem os povos morando lá.” Katia é secretária-executiva da Rede Cerrado, composta por 55 entidades da sociedade civil que lutam pela conservação do Cerrado e de seus povos.

Para a ecóloga Isabel Figueiredo, os povos tradicionais podem não só estar em harmonia com a natureza como podem enriquecê-la.

“Hoje, o que o Cerrado é, o que a Amazônia é, o que a Caatinga é, é também fruto da interação do ser humano com o ambiente”, afirma.

“Isso não quer dizer que essas famílias não vão cortar uma árvore para fazer um curral, mas elas vivem numa escala que propicia que, na mesma paisagem, se tenham áreas de cultivo e áreas nativas em equilíbrio”.

Os especialistas na área reforçam ainda a importância econômica destes povos, já que eles têm conhecimentos tradicionais em alimentos, cosméticos e fármacos que são utilizados por várias indústrias.

O antropólogo Marco Paulo, também da câmara temática do MPF, usa como exemplo o açaí, chamado de “ouro roxo” no Norte do país. Maior produtor de açaí do Brasil, o Pará movimentou US$ 17 milhões nos últimos dois anos com o fruto.

“Imagina a quantidade de produtos da biodiversidade que a Amazônia pode oferecer se explorados racionalmente, com agregação de valores, em cadeias produtivas sustentáveis.”

Ao mesmo tempo, preocupa perder esse conhecimento tradicional antes mesmo de conhecê-lo, com o sumiço de alguns povos. “Diversos povos indígenas com seu conhecimento milenar sobre determinadas regiões já desapareceram e levaram consigo aquele conhecimento, e perdemos o acesso àquelas bibliotecas de conhecimentos étnicos”, afirma o antropólogo.

Quando um povo se reconhece como tradicional?

Existentes há séculos, os povos tradicionais do país são frutos da antiga miscigenação de indígenas, negros e europeus que formam o povo brasileiro. A formação de cada um deles se desenhou de acordo com o contexto histórico e geográfico em que viviam.

Por muito tempo, o reconhecimento da identidade como comunidade tradicional não foi uma questão para esses povos. Segundo a antropóloga Katia Favilla, com o avanço das fronteiras agrícolas, criação de hidrelétricas, rodovias ou projetos de mineração, passou a existir no país uma corrida por reconhecimento. A lógica era a da mais pura sobrevivência.

“A partir do momento em que eles se sentem ameaçados na sua forma de existência, eles falam para o mundo, ‘olha, a gente está aqui, a gente existe’, explica ela, que defendeu sua dissertação de mestrado na UNB sobre este processo histórico.

O precursor dessa busca por reconhecimento foi o seringueiro e ambientalista Chico Mendes, morto a tiros em 1988, no Acre. A partir dele, o Estado começa a perceber que povos tradicionais não são apenas indígenas e quilombolas, mas também diversas comunidades que dependem diretamente da preservação do meio ambiente para sobreviverem.

As reivindicações dos seringueiros resultaram na criação das Reservas Extrativistas, e influenciaram na formação do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, que, além de prever as áreas de Proteção Integral (sem presença de humanos), criou também a de Uso Sustentável. “O Estado reconheceu que existe a possibilidade de uma Unidade de Conservação com pessoas morando dentro e preservando, porque eles sempre conservaram”, disse Favilla.

O que a lei brasileira diz sobre eles?

A Constituição de 1988 reconhece os direitos dos indígenas e quilombolas. No entanto, para os demais povos, a legislação brasileira passou a estabelecer regras e regulamentações nos últimos 20 anos. Veja os principais marcos:

  • 1998: Brasil ratifica por meio de decreto federal a Convenção da Diversidade Biológica, criada durante a Eco-92. A convenção é um tratado da Organização das Nações Unidas que reconhece que comunidades tradicionais têm práticas relevantes para a conservação da diversidade biológica.
  • 2004: Brasil ratifica por meio de decreto federal a Convenção no 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais. Ela define, por exemplo, a obrigatoriedade do direito de consulta. Qualquer ação do estado que vá impactar um modo de vida tradicional, os afetados devem ser consultados previamente.
  • 2000: Lei 9985, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Foi criada a modalidade Unidade de Conservação de Uso Sustentável, que prevê a ocupação de povos tradicionais.
  • 2007: Criação da Política Nacional para o Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais
  • 2010: São criados os Termos de Autorização de Uso Sustentável (TAUS), instrumento que regulamenta a utilização de áreas federais, como várzeas, mangues e praias para o “uso racional e sustentável dos recursos naturais disponíveis” por povos tradicionais.
  • 2015: Lei 13123 regula o acesso ao patrimônio genético do país. Patrimônio genético é qualquer tipo de ser vivo (em geral, plantas) que seja manipulado por comunidades tradicionais e tenha uma aplicação na vida dessas comunidades, assim como potencial comercial e industrial. O acesso era regido por uma Medida Provisória, que foi revogada na criação da lei.
  • 2016: Decreto do governo federal institui o Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais, e reconhece 29 categorias de povos tradicionais no Brasil.

G1 visitou território Kalunga, em Goiás, para conhecer modo de vida e saberes tradicionais — Foto: Fábio Tito/G1

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Amyra El Khalili.

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