Ecologia cosmocena: alternativas ao horizonte do Antropoceno. Entrevista especial com Vilmar Pereira

IHU On-Line

ecologia cosmocena apresenta uma “possibilidade” e uma “alternativa” à era do Antropoceno, ao propor “pensarmos as relações entre seres vivos e não vivos no sentido de podermos garantir melhor qualidade de vida no planeta e, quem sabe, no universo”, diz o filósofo Vilmar Pereira à IHU On-Line. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, ele explica que a ecologia cosmocena “nasce” no atual contexto de “crises” e de “desesperança e medo”. “A grande crise ambiental dialoga diretamente com a crise civilizatória que, conforme Enrique Leff, é resultado de uma crise de racionalidade. Essa racionalidade é a mesma denunciada por WeberAdorno e Habermas. Trata-se de uma racionalidade instrumental estratégica tecnocrata voltada a fins cujo endereçamento consiste no aumento de lucro e do poder”, afirma.

A partir da ecologia cosmocenaPereira propõe um “reposicionamento humano” no sentido de compreender o ser humano “como mais uma espécie viva no universo imensurável da quantidade de espécies vivas na Gaia para manter tudo em equilíbrio, pois já sabemos que o referido equilíbrio existe graças à existência de seres minúsculos invisíveis que contribuem para essa finalidade”.

A seguir, Vilmar Pereira menciona as teorias filosóficas que embasam a ecologia cosmocena e explica as semelhanças e diferenças entre ela e a ecologia integral, proposta pelo papa Francisco.

Vilmar Alves Pereira é graduado em Filosofia pela Universidade de Passo Fundo – UPF, mestre em Educação pela mesma universidade e doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. É pesquisador no Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental da Universidade Federal de Rio Grande – FURG e editor-chefe da Revista Eletrônica do Mestrado em Educação Ambiental – Remea.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que é a ecologia cosmocena?

Vilmar Alves Pereira – Eu vejo a Ecologia Cosmocena como uma alternativa viável para pensarmos as relações entre seres vivos e não vivos no sentido de podermos garantir melhor qualidade de vida no planeta e, quem sabe, no universo. Ela nasce em meio a este cenário de desesperança e medo reforçado pela Era do Antropoceno – EA e pelas consequentes crises: dos fundamentos da EA, do paradigma filosófico metafísico, da racionalidade ocidental e do sujeito, do esgotamento do sistema capitalista, da lógica do lucro e consequentemente da crise financeira, crise política, socioambiental e, fundamentalmente, da crise de sentido existencial-ontológico sobre o espaço e sentido humano no cosmos. Emerge também de uma profunda intuição hermenêutica de que é necessário um reposicionamento humano no cosmos no amplo conjunto das relações que estabelecemos cotidianamente com o universo com o qual nos encontramos conectados. Dessa forma, pode ser vista também como ecologia de ampliação dos sentidos, com a pretensão de alargar a nossa dimensão cósmica.

IHU On-Line – Qual é a compreensão majoritária da relação humanidade-natureza e por que o senhor propõe uma hermenêutica para reposicionar a relação humanidade-natureza?

Vilmar Alves Pereira – A compreensão majoritária da referida relação no ocidente está marcada por uma relação de domínio da natureza pelo humano. Basta lermos a obra Dialética do Esclarecimento, de Adorno e Horkheimer, que vemos que se trata de uma visão antropocêntrica na qual o ser humano ocupa uma posição privilegiada inclusive na destinação dos fins, usos e até abusos em relação às demais outridades que integram o universo. Em minha compreensão, esse modo de pensar e agir estabelece uma postura que apenas reforça a velha polarização sujeito-objeto em que a natureza é vista como objeto passivo, liberando o humano para sua atuação sobre ela. Ainda que reconheçamos as potencialidades humanas, a partir de um horizonte hermenêutico (principalmente pela ampliação de sentidos possibilitada pela linguagem), sugerimos pelo horizonte cosmoceno relações socioambientais intersubjetivas. Nesta nova ecologia, sugerimos que os homens e mulheres possam reconhecer que existem saberes que desde sempre estão aí e que são oriundos do cosmos para os humanos e não o contrário, pois já existiam bem antes da presença humana no planeta. A hermenêutica filosófica gadameriana é utilizada pela abertura compreensiva a partir de visões distorcidas herdadas da tradição metafísica. Também por permitir e criar possibilidades de reconhecimento de elementos até então invisibilizados ou ignorados que integram o ambiente inteiro.

IHU On-Line – O senhor tem proposto a ecologia cosmocena como fundamento para a educação ambiental e como alternativa viável para repensar as relações entre seres vivos e não vivos no planeta. Pode nos explicar essas ideias?

Vilmar Alves Pereira – Nessa perspectiva ecológica, a natureza é vista como uma outridade. Ou seja, ela também poder ser reconhecida como sujeito. Nesse sentido, ela pode ser vista como: natureza rica, plural, diversa, colorida, fértil, bela, poética, estética, com suas magias e divindades imensuráveis; cabe aos humanos reconhecer-se apenas como mais uma parte integrante dela e não a sua dona. Pelo olhar hermenêutico, a natureza está em permanente diálogo conosco, pois somos todos natureza. Os não humanos também dialogam: os rios, mares, matas, animais, solo e a Floresta Amazônica sofrem tristemente os abusos dos humanos em nome da lógica predatória capitalista antropocêntrica. Exemplo dessa ampliação de sentido e de reposicionamento já vem ganhando espaços em alguns marcos legais que reivindicam os direitos dos animais: Decreto 24.645/1934 e o art. 32 da Lei 9.605/1998 como as normas gerais do sistema de proteção de direitos animaisDia internacional da Madre Tierra, projeto aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas e proposto pelo presidente da Bolívia, Evo Morales, em que a terra é mãe e é concebida como um sujeito de direito.

A reivindicação principal que propomos consiste num reposicionamento humano: mais humilde, sintonizado, aberto a tudo que a realidade biodiversa nos apresenta cotidianamente. Um exemplo disso seria apenas nos reconhecermos como mais uma espécie viva no universo imensurável da quantidade de espécies vivas na Gaia para manter tudo em equilíbrio, pois já sabemos que o referido equilíbrio existe graças à existência de seres minúsculos invisíveis que contribuem para essa finalidade. O que estou reforçando é que existe um alargamento compreensivo que amplia o sentido das relações ambientais que transvaloram as antigas relações subjetivadoras. Na minha compreensão, esse é primeiro passo: dar-se conta da nossa posição no cosmos; em seguida precisamos agir e mudar o nosso modo de ser.

Apenas para ilustrar no que concerne às relações humanas, nos últimos dez anos tenho convivido com muitas outridades pelo horizonte da Educação Ambiental Popular — Populações Indígenas, Quilombolas, Tamboreiros, Povos de Terreiros, LGBTs, Educadores(as) de Escola do Campo, Imigrantes (senegaleses e latino-americanos) e Pescadores artesanais — e cada vez mais tenho percebido o quanto os espaços acadêmicos necessitam desse reposicionamento. A pergunta que nos orienta agora é: o que a universidade pode aprender com as outridades? Não vale mais somente a velha preocupação sobre o que vamos ensinar a eles. Por esse motivo, defendo pela Ecologia Cosmocena o conceito de humildade ontológica em vez da arrogância epistemológica. Isso tudo contribui para uma convivência mais digna pautada pela perspectiva de acolhida e de reconhecimento das diferenças.

IHU On-Line – Como a sua proposta de ecologia cosmocena propõe uma resposta ao Antropoceno?

Vilmar Alves Pereira – Eu não diria resposta, caso contrário cairia numa perspectiva metafísica. Diria possibilidades e alternativas. Em minha compreensão, mesmo reconhecendo a magnitude e a importância dos estudos sobre o Antropoceno, os cientistas, quando assumem essa terminologia, admitem que é resultado dos visíveis níveis de intervenção do humano no cosmos, em especial no planeta Terra. Também defendem que esses níveis de intervenção marcam claramente a era antropocena como um intervalo separado no tempo geológico. E aí surgem inúmeras e importantes contribuições que vão desde o histórico do antropoceno da era industrial até o antropoceno 3.0 com estudos sérios que buscam afirmar em que consiste essa “era humana”. Em minha compreensão, esse debate fica muito num nível de explicações e demarcações sobre em que consiste, com poucas proposições. Entendo que não se trata de termos que nos adaptar ao Antropoceno, mas, como ensina Paulo Freire, somos seres de inserção crítica que vão além da adaptação.

Desse modo, como filósofo e educador ambiental, organizei alternativas em oito teses que propõem:

1) Da relação Natureza–Humanidade de onde, como já afirmei anteriormente, se reivindica uma postura de maior reconhecimento das outridades que integram a natureza desde já, e que por decorrência também são sujeitos. Para além disso, sugere uma postura de maior humildade, superando essa pretensa relação de domínio humanidade-natureza, onde com maior sintonia é possível o ser humano perceber-se como mais uma espécie nesse infinito universo. Abertura e redefinição de postura são os elementos orientadores dessa propositiva relação.

2) Da desaceleração do tempo como garantia de vida emergem profundas e densas reflexões sobre a concepção de tempo e sobre como estamos compreendendo o tempo no horizonte pós-metafísico. Isso é posto, dado o fato de que nos orientamos pela concepção moderna de tempo. Apresento como reflexão o conceito de presenteísmo e as possíveis anomalias de uma humanidade que reclama não ter tempo e que vive os tempos de aceleração e bloqueamento de todas as capacidades criativas. Diante disso, reivindica-se tempo para nossos afetos, nossas estéticas, éticas e místicas. Inclusive tempo para desacelerar.

3) Da sintonia com novas sabedorias: chama-se atenção para tantas sabedorias que sempre estiveram aí, mas com as quais em geral não estabelecemos sintonias profundas. Isso vai desde os saberes dos povos tradicionais aos múltiplos movimentos na luta pela vida que estão ocorrendo durante todo ano em todo o planeta. A reivindicação hermenêutica aqui é de maior abertura compreensiva.

4) Do cuidado como reaprendizagem x consumo desenfreado: partindo da constatação de que vivemos numa sociedade que pouco se cuida, o estudo aponta desde a gênese do cuidado como condição ontológica do ser humano, passando por diferentes formas de descuido, e sugere o cuidado como condição fundamental para sustentabilidade do universo. Apresenta também alguns movimentos na direção do cuidado e de uma cultura da paz.

5) Da descolonização do mundo da vida: parte do conceito de Habermas de colonização do mundo da vida e baseado em estudos de Bauman acerca do impacto que as redes sociais têm sobre a geração de consumidores, em especial, a obra Vida para Consumo, a qual apresenta reflexões sobre a colonização de nossa dimensão das estruturas linguísticas, culturais, afetivas, subjetivas que sofrem esse grande impacto, muitas vezes perdendo ou criando anomalias, inclusive na nossa capacidade de comunicação e nas dimensões de diálogos com aqueles(as) que estão próximos.

6) Por um mundo diverso e sem preconceitos: baseado na compreensão de que o universo sempre foi biodiverso, plural e múltiplo, o estudo denuncia todas as formas de preconceito, reconhecendo que todas encolhem a expressão da vida em múltiplos contextos. Denuncia também o preconceito epistemológico tão reforçado em muitas academias. Para além disso, essa ecologia se manifesta como aberta a todas as diferenças, transcendendo o estreitamento de fronteiras e reivindicando novos modos de ser neste infinito universo.

7) Da condição de incompletude: o estudo parte da compreensão da nossa vocação ontológica da leitura freiriana que aponta para essa condição de ser mais. E nesse horizonte, do ser mais, discute e reconhece três vertentes polêmicas: a necessidade de uma nova aproximação entre ciência e religião (WILSON, 2008); o reconhecimento do Coeficiente Espiritual não como religião, mas como uma espécie de bússola moral na busca de superação da nossa crise de sentido (ZOHAR; MARSHALL, 2012); e o reconhecimento da existência da alma. Esses aspectos pressupõem como ponto de partida o fato de que, mesmo não acreditando em nenhuma dimensão transcendental-espiritual, devemos reconhecer que para bilhões de seres humanos essa dimensão assume sentido profundo em suas vidas e modos de ser.

8) Do lugar da Educação Ambiental na Ecologia Cosmocena: considera que a EA aparece como um ponto pequeno neste universo, mas que assume o papel preponderante no sentido de nos ressituar sobre os caminhos que traçamos. Essa ampla discussão não se encontra desconexa das intervenções políticas e principalmente econômicas. Economia essa que limita as formas de vida no planeta. Ela pode servir de alternativa para pensarmos um desenvolvimento mais amplo do ser humano do que apenas a estreiteza da lógica financeira: desenvolvimento cultural, intelectual, espiritual das pessoas em suas múltiplas dimensões que possa garantir a qualidade de vida digna. É o que Capra denomina de crescimento qualitativo.

IHU On-Line – Como e quais teorias de Habermas e Gadamer influenciam sua proposta de ecologia cosmocena?

Vilmar Alves Pereira – Essas teorias vêm sendo decisivas e com grande influência em meu modo de pensar a concepção da Ecologia Cosmocena. De Habermas, tenho utilizado a obra Pensamento Pós-Metafísico para discutir não apenas a crise dos Fundamentos da Educação Ambiental como para ampliar esse campo de compreensão. O horizonte pós-metafísico acena para o que entendo como Racionalidade Ambiental Pós-Metafísica. A referida racionalidade nos permite reconhecer cinco aspectos com alguns deslocamentos: 1) a dimensão plural da Educação Ambiental; 2) a relevância dos contextos e da linguagem; 3) a mudança na relação sujeito-objeto; 4) a mudança na relação entre teoria e prática; 5) da dimensão epistemológica para a ontológica da Educação Ambiental. Outro aspecto fundamental em Habermas refere-se ao conceito de intersubjetividade muito profícuo para a Ecologia Cosmocena visando superar a relação sujeito-objeto. Utilizo também de Habermas o conceito de colonização do mundo vida, que ocorre, segundo ele, pelo mundo do sistema para propor uma descolonização do mundo da vida, em que analiso os impactos das redes sociais em nossa convivência cotidiana.

De Gadamer é de fundamental importância a teoria da linguagem na qual nós só existimos na e pela linguagem. Esse horizonte permite ao campo da Educação Ambiental, que tem menos de 50 anos enquanto campo de investigação, ampliar os processos de interpretação e compreensão do ambiental. Mais que uma teoria, a Ecologia Cosmocena, assim como a hermenêutica filosófica de Gadamer, se propõe como um modo de ser e de habitar esse universo infinito.

IHU On-Line – Além da crise ambiental, o senhor afirma que a humanidade vive hoje uma crise civilizatória, uma crise de sentido e uma crise entre ciência e religião. Pode nos explicar cada uma dessas crises, suas causas e como, a partir da ecologia cosmocena, elas poderiam ser superadas?

Vilmar Alves Pereira – Em minha compreensão, todas essas crises se encontram interligadas. Elas recebem adjetivações diferentes pelos olhares específicos de cada lugar. A grande crise ambiental dialoga diretamente com a crise civilizatória que, conforme Enrique Leff, é resultado de uma crise de racionalidade. Essa racionalidade é a mesma denunciada por Weber, Adorno e Habermas. Trata-se de uma racionalidade instrumental estratégica tecnocrata voltada a fins cujo endereçamento consiste no aumento de lucro e de poder. É das patologias sociais desse paradigma economicista que adoece que Enrique Leff aponta para uma racionalidade ambiental. A crise entre ciência e religião demarcada por Wilson (2012) é resultado da clássica disputa dessas fronteiras epistemológicas que se equivocaram em muitas ocasiões, optando por posturas antidialógicas, colocando, em muitas situações, muitas vidas sob risco. Ainda que haja alguns que persistem nessa disputa do campo (de colonização da fé dos outros), vemos muita admiração e respeito por algumas tendências que apostam em posturas dialógicas. Em minha compreensão, com esse diálogo estamos caminhando para salvar muitas vidas e reorientar modos de ser e de habitar e conviver em nosso planeta numa perspectiva de busca da espiritualidade. Entendo que todas essas crises desembocam numa profunda crise de sentido existencial ontológico. Alguns efeitos dessa perda de sentido existencial estão explícitos nas formas de descuidos entre os humanos e entre os humanos e não humanos.

É nesse sentido que nas pegadas de Leonardo Boff a Ecologia Cosmocena reivindica uma lógica do cuidado versus a lógica do consumo desenfreado. Reconhece que, entre as formas de descuido, as novas práticas de mineração, as migrações forçadasaumento dos índices de suicídio, considerado um dos maiores problemas de saúde pública pela Organização Mundial da Saúde – OMS, levando uma pessoa a óbito a cada 35 segundos no mundo, e o encolhimento democrático das garantias pelos governos de extrema direita em todo o mundo, mitigam a vida de milhares de pessoas. A Ecologia Cosmocena nos conclama a desenvolver, enquanto humanos, múltiplas formas de sensibilização, poética, estética, afetiva, ecológica e espiritual, de cuidarmos uns dos outros. A natureza nos cuida. Somente emite o alerta como grito de socorro. Da falta de cuidado decorrem as enchentes, as catástrofes ambientais. Novos eventos biofísicos que alteram os painéis geográficos em todo o planeta. Fruto da ganância motivada pela lógica do capital, nos descuidamos tanto que acabamos ferindo uns aos outros. É a partir daí que defendemos na Pedagogia Cosmocena a aprendizagem do cuidado. Uma pedagogia que tenha a humildade de reconhecer que o ato educativo é uma forma de cuidado.

IHU On-Line – Em que aspectos a ecologia cosmocena se aproxima e se diferencia da ecologia integral, proposta pelo papa Francisco?

Vilmar Alves Pereira – O primeiro aspecto que gostaria de destacar é que considero o papa Francisco um ser humano com pensamento cósmico com alcance imensurável sobre as grandes problemáticas que assolam o universo. Em segundo lugar, dizer que as referidas Ecologias têm horizontes comuns. Ambas possuem uma defesa radical da vida e fazem inúmeras denúncias das formas que cotidianamente violentam a vida. Dentre elas, a ausência de políticas públicas e os desmandos dos governos e do império da lógica capitalista e do consumismo desenfreado. Laudato Si’ se configura um dos maiores documentos de maior contribuição para a humanidade, vindo de um pontífice. Nesse sentido, trata-se de uma postura ontológica de alguém que transvalora toda e qualquer fronteira na busca da defesa da vida digna. Essa é uma compreensão mais geral que tenho sobre a encíclica.

Há outro ponto comum no que diz respeito às raízes da crise ecológica identificada no antropocentrismo moderno. Utilizamos esse referencial como lugar comum de partida. Ao escrever a Ecologia Cosmocena, assumo meu ponto de partida e de diálogos com os seguintes autores: Verdade e Método (Gadamer, 2002); Física Quântica e Ecologia (Capra, 2006; 2011); Pensamento Pós-Metafísico (Habermas, 2002; Leff, 2006); Astrofísica e Filosofia – Inteligência Espiritual (Zohar; Marshall, 2012); Ecologia e Ética (Boff, 2012); Ambientalismo e Medicina (Lovelock, 2010); e Biodiversidade (Wilson, 2008). Lendo a Ecologia Integral, de Francisco, vejo pontos que se aproximam desse horizonte e também alguns acréscimos como Edgar Morin e a Teoria da complexidade.

Também vejo diferença no olhar sobre espiritualidade, pois faço uso a partir da física quântica: a noção de Coeficiente Espiritual não como religião, mas como uma bússola moral na busca do sentido da vida que pode ser desenvolvida em diferentes campos e não apenas numa religião. Já Francisco escreve para e a partir de uma vertente religiosa, no entanto, pela abrangência do seu pensamento, parece estar escrevendo para cada pessoa do planeta. A diferença que penso está sem dúvida no alcance que o pontífice tem e pelo horizonte da discussão. A minha modesta escrita se dá num horizonte acadêmico no campo dos Fundamentos da Educação Ambiental. Nesse horizonte, partindo de estudos específicos, tomo o ambiental e o humano de uma forma mais ampla. Assim, defendo a concepção de ambiente inteiro e não mais de meio ambiente. Também defendo na Ecologia Cosmocena a concepção de humano como um ser biopsicossocioambiespiritual [1]. Essa concepção reconhece as múltiplas dimensões que integram o nosso ser. Penso que se fôssemos aproximar do método usado por Francisco, ver julgar e agir, a minha ação se dá pelo viés da educação ambiental. É por isso que senti a necessidade de uma Pedagogia Cosmocena, em que busco traduzir cada tese em uma aprendizagem — num futuro, estaremos apresentando elementos de um currículo cosmoceno em conjunto com uma doutoranda em educação ambiental da Universidade Federal do Rio Grande – FURG.

Um outro ponto comum bem explícito além dessa ampliação de sentidos refere-se ao fato de os dois textos verem as raízes da crise ecológica no antropocentrismo. Outro ponto comum é o fato de os textos não possuírem aquela visão da ecologia ou da educação ambiental conservacionista identificada como “verde”, ao contrário, transvaloram essa perspectiva numa visão indissociável de natureza-humanidade. Ambas as ecologias são abordagens ontológicas, pois se questionam sobre o ser e os destinos e caminhos desse existir na sociedade capitalista de nossos tempos. Em suma, vejo que duas obras servem de referencial com horizontes possíveis para enfrentarmos os grandes problemas do nosso tempo, como as mudanças climáticasqueimadas na Amazônia e a exploração pela mineração desenfreada. Ambas têm um destaque especial pelos pobres e pelos povos tradicionais com respeito aos saberes ancestrais no sentido de reconhecimento. Para além de teorias, as duas ecologias reivindicam novos modos de ser, conviver e agir. Nesse sentido, acredito, assim como Pepe Mujica em recente entrevista, que “nossa luta não é só por democracia, mas por uma outra civilização”.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Vilmar Alves Pereira – Sim. Venho ultimamente, mediante tantos ataques ao campo ambiental no Brasil, refletindo sobre nossa existência. Aprendi com o filósofo Martin Heidegger que pensar a existência é uma das primeiras tarefas do filosofar. Desse modo, em outubro, em parceria com pesquisadores(as) mexicanos(as), lançamos um dossiê sobre Educación Ambiental y Movimientos Sociales Populares em la America Latina, buscando alternativas coletivas por esse horizonte; em novembro, com mais quinze pesquisadores, estaremos lançando uma obra coletiva intitulada Ontologia da Esperança: Educação ambiental em tempos de crises, pela Editora Garcia. E, tendo percebido que a concepção de ciência de cunho moderno positivista não dá conta da compreensão das leituras do horizonte cosmoceno, estamos desenvolvendo um novo conceito para o Campo dos Fundamentos da Educação Ambiental. Trata-se de Ontoepistemologia Ambiental, recentemente publicado.

Nota:

[1] Utilizo a palavra biopsicossocioambiespiritual, ainda não registrado nos dicionários, considerando que expressa uma compreensão cosmocena daquilo que constitui a humanidade. Por isso ela procura em uma única terminologia agregar as dimensões biológicas, psicológicas, sociológicas, ambientais e espirituais. Cabe salientar que a compreensão já existe, no entanto, ao descrevê-la, na maioria das vezes é traduzida por Biopsicossocial-ambiental e espiritual. A alteração que faço aqui se dá no sentido semântico de realmente reforçar que essa compreensão no horizonte cosmoceno é indissociável. (Nota do entrevistado)

Referências:

PEREIRA, Vilmar A. Ecologia Cosmocena: a redefinição do espaço humano no cosmos. Juiz de Fora, MG: GARCIA edizioni, 2016.

PEREIRA, Vilmar, A.(org). Hermenêutica & Educação Ambiental no contexto do Pensamento Pós-Metafísico. Juiz de Fora, MG: GARCIA edizioni, 2016.

PEREIRA, Vilmar, A; EICHENBERGER, J. C.; CLARO, L. C. A crise nos fundamentos da Educação Ambiental: motivações para um pensamento pós-metafísico. Revista Eletrônica do Mestrado em Educação Ambiental, v. 32, p. 177-205, 2015.

PEREIRA V. A; SILVA M. P; FREIRE S. G. Ontoepistemologia Ambiental: vestígios e deslocamentos no campo dos fundamentos da educação ambiental. São Paulo, 2019. Revista Proposições. Vol. 30. DOI.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

2 × 5 =