Por: Patricia Fachin, em IHU On-Line
O Plano mais Brasil, que sugere três Propostas de Emenda Constitucional – PECs, tem “dois focos amplos e complexos”: alterar as relações fiscais e financeiras da União com os estados e municípios, visando a extinção de Fundos Públicos, e alterar a legislação tributária e das vinculações constitucionais aos entes federativos para obter recursos para o pagamento da dívida pública, diz o economista Guilherme Delgado à IHU On-Line.
Além de darem prosseguimento ao programa político do governo, Delgado afirma que as PECs contêm “dois ingredientes de despiste”, para tirar de foco “a situação conjuntural de dificuldade criminal do presidente da República” e para abrir “uma enorme sinalização de prioridade absoluta aos proprietários da riqueza financeira, com que acenam um implícito pedido de socorro destes à salvação do governo”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line, o economista comenta o núcleo central de cada uma das três PECs enviadas ao Congresso e afirma que nelas “não há projeto estratégico de crescimento, mas de aprofundamento da desigualdade econômica e social”. Seguindo a proposta da PEC do Teto de Gastos, com as novas PECs, menciona, “acrescentam-se maiores extrações de recursos. Extrai-se agora a correção inflacionária das dotações de cada ano e ainda se extingue o Fundo de recursos oriundos do Pré-sal”. E conclui: “Não há propósito nas PECs citadas para nenhum arranjo de manutenção do sistema de Seguridade Social”.
Guilherme Delgado é doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Trabalhou durante 31 anos no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O pacote econômico apresentado pelo Ministro Paulo Guedes inclui três PECs – PEC do Pacto Federativo, a PEC dos Fundos Públicos e a PEC Emergencial – e é considerada a maior reforma dos últimos 30 anos. Quais são as diretrizes que fundamentam o pacote?
Guilherme Delgado – Quero fazer uma consideração preliminar, antes de entrar no conteúdo das perguntas. Há menos de uma semana, o presidente da República ficou envolvido, por anotações de um porteiro de seu prédio residencial, às vésperas da hora de assassinato da Vereadora carioca Marielle Franco. Desde então (início de novembro), sucedem-se operações diversionistas, direta ou indiretamente vinculadas ao caso, todas com o fito de desviar a atenção pública para outro foco do fato revelado. Ora é o filho do presidente defendendo a aplicação do AI-5 e gerando polêmica, ora é o ministro da Justiça propondo investigar um suposto crime de calúnia do porteiro (possivelmente um crime, que no caso somente poderia ser “de premonição’); e agora temos o ministro da Economia disparando três PECs sucessivas (dia 05 de nov.), nenhuma das quais poderia ser apreciada neste ano de 2019, sobre assuntos os mais diversos, complexos e polêmicos. Pelo que li de ‘release’ da grande mídia, até porque somente saiu publicado o teor das referidas PECs no dia 07 de novembro, sem suas Exposições de Motivo anexadas, como veremos adiante.
Mais uma vez somos envolvidos nas propostas improvisadas do ministro Paulo Guedes. A última delas, a proposta de Reforma da Previdência original – PEC da Reforma da Previdência de autoria do Ministério da Economia -, foi fortemente modificada no Congresso e sobre isto, o Executivo nunca fez uma avaliação objetiva dos erros e falsidades empíricas da proposta original.
Agora dispara-se em dois focos amplos e complexos: relações fiscais e financeiras da União com os Estados e Municípios, virtual extinção de Fundos Públicos; e alteração da legislação tributária e das vinculações constitucionais aos entes federativos etc., com uma única diretriz explícita – obter recursos adicionais para o serviço da Dívida Pública federal.
A manobra diversionista contém dois ingredientes de despiste: 1– desfoca a situação conjuntural de dificuldade criminal do presidente da República; 2– abre uma enorme sinalização de prioridade absoluta aos proprietários da riqueza financeira, com que acenam um implícito pedido de socorro destes à salvação do governo. Vou explicar mais didaticamente o que aqui antecipo, nas próximas respostas.
IHU On-Line – Quais são os pontos positivos e negativos de cada uma das PECs propostas?
Guilherme Delgado – São apresentadas três propostas de Emenda Constitucional – a PEC 186/2019, do chamado ajuste fiscal emergencial; a PEC 187/2019 – sobre Fundos Públicos, sua extinção e drenagem de recursos para o serviço da dívida pública; e por último a PEC 188/2019 do chamado Pacto Federativo, que assumidamente aplica os três ‘d’ – desindexa, desobriga e desvincula recursos orçamentários com o fito explícito de revinculá-los ao serviço da dívida pública.
Curiosamente as três PECs aparecem como se fossem de autoria dos 34 senadores da base governista que as assinam e não do Poder Executivo, como tudo noticiado pela mídia nos faz entender. Suas “Justificativas” e não “Exposições de Motivos” de PECs do Executivo, são assinadas pelos senadores referidos, que provavelmente nem sequer tiveram tempo de ler os textos respectivos – 25 páginas da primeira PEC, 11 páginas da segunda e 29 páginas da terceira.
PEC Emergencial
Começando pela PEC dita “Emergencial”, de n. 186/2019, basta ver o seu teor para apreender de que não se trata de nada emergencial, mas sim de alterações desregulatórias de consequências permanentes para a administração pública, antecipando o conteúdo das demais PECs.
O foco principal desta PEC vai na linha de redução de vencimentos do funcionalismo público (até 25%), demissão de servidores não estáveis e também estáveis, proibição de novos concursos públicos; e talvez o mais grave e também inconstitucional – não pagamento de ativos, inativos e pensionistas acima algum limite fiscal a ser estabelecido por Lei Complementar específica.
Já o cancelamento ou revisão de benefícios tributários aos privilegiados detentores de exageradas isenções fiscais, assumidamente existentes segundo a ‘Justificativa da PEC, fica prometida para 2026’.
Toda a preocupação da drenagem de recursos das folhas de salários e das despesas previdenciárias, à margem da própria Reforma da Previdência recém aprovada, é explicitamente estabelecer uma pomposa “ancora fiscal e longo prazo à dívida pública”.
Até mesmo os recursos do PIS/PASEP que vão ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES, e que na sistemática padrão do Banco servem aos investimentos de infraestrutura de bens públicos, são objeto de cancelamento ‘emergencial’ a partir de certo gatilho “técnico”
Não é preciso ser economista, jurista, politicólogo, sociólogo etc., para perceber que esta PEC não tem o menor sentido de crescimento econômico. É ideologia de qualidade precaríssima, cuja única garantia seria de desorganização completa do serviço público, mais atrofia do investimento público em uma economia há mais de um quinquênio com crescimento per capita negativo. A crença nos mercados sem Estado minimamente funcional é pura mitologia ou para usar uma linguagem eclesial – idolatria do dinheiro em estado puro.
PEC dos Fundos Públicos
Sobre a segunda PEC de n. 187/2019, dos Fundos Públicos e sua eliminação a partir do segundo ano de sua eventual promulgação, vamos também considerar seu foco principal, até mesmo porque pela quantidade e detalhe dos assuntos tratados, não permitiria uma análise detalhada.
A ideia central dessa PEC é de desvincular nos três níveis federativos – União, Estados e Municípios, tudo quanto é fundo estável de aplicação de recursos estatais – afeta Cultura, Ciência e Tecnologia, Assistência Social, Meio Ambiente etc., exceto aqueles Fundos previstos nas Constituições (Federal Estaduais e nas respectivas leis orgânicas dos municípios). Aqui o elaborador da PEC foi mais cuidadoso com os aspectos jurídicos e se aventurou a estimar o total de economia de recursos nos três níveis federativos, uma vez extintos os 248 fundos que não se ratificassem por nova lei: 248 bilhões de reais de patrimônio. Como este valor está muito aquém daquele que é almejado pelas demais PECs, a solução financeira é apelar mesmo para o Fundo constitucional do PIS-PASEP, cuja destinação de recursos ao BNDES fica reduzida de 40% para 14%, tema que já é objeto da próxima PEC.
PEC do Pacto Federativo
A PEC 188/2019, denominada do Pacto Federativo, é a mais extensa e ambiciosa no intento das desvinculações, desonerações e desobrigações, agora no sentido de uma certa desarticulação federativa e regional; e das destinações sociais do Orçamento. Modifica 26 artigos da Constituição Federal e acrescenta sete novos.
Diante de tamanha profusão de emendas, temos que manter o foco em algo de repercussão mais geral. E isto pode ser visto por meio de meia dúzia de providências, praticamente todas de caráter desestruturante do regramento constitucional, rumo a um mitológico mercado providencial, centrado no mercado financeiro privado: 1) torna permanente todo o conjunto de mudanças “emergenciais’ da PEC 186, como também da 187, a exemplo do já citado Fundo Constitucional de recursos destinados ao BNDES; 2) extingue a atual destinação de recursos destinados à União para efeito de aplicação em educação e saúde a longo prazo, destinando-os a Estados e Municípios, sem quaisquer pré-requisito; 3) estabelece que as vinculações orçamentárias para Educação e Saúde estabelecidas no texto constitucional não mais se consideram individualizadas, mas em conjunto, introduzindo sub-repticiamente uma espécie de ‘canibalização’ competitiva entre os dois setores sociais; 4) estabelece regra de extinção de municípios com até 5.000 habitantes; 6) estabelece regra para redução de benefícios tributários, sempre que tais benefícios se situarem acima de 2% do PIB, sujeita a uma legislação futura; 6) incorpora inativos e o pensionistas aos servidores ativos, ambos sujeitos a gatilhos automáticos para efeito de cortes orçamentários em todos os níveis da Federação.
O sentido desta última PEC, como do conjunto das três, é claramente de desregulamentação e atenção exclusiva aos detentores de riqueza financeira. Não há projeto estratégico de crescimento, mas de aprofundamento da desigualdade econômica e social. Daí porque não se pode fazer balanço ao estilo “pontos positivos e pontos negativos’. Desigualdade social, perda de direitos democráticos, desestruturação do Estado nacional são uma espécie de AI-5 econômico, que não comportam análise utilitária de custo-benefício, da perspectiva em que me coloco.
IHU On-Line – O que seria uma alternativa aos pontos que o senhor critica?
Guilherme Delgado – Não vou cansar o leitor com nenhuma exposição exaustiva sobre o tema das Finanças Públicas desequilibradas, que é o tema onipresentes nessas PECs. Mas vale a pena destacar quatro pontos fundamentais, que nas referidas PECs ou são tocados tangencialmente ou sequer são mencionados:
1- A desigualdade tributária no Brasil, verdadeiro “Paraíso Fiscal” interno para os proprietários da riqueza financeira e fundiária. Tratados como beneficiários das “finanças sociais” e não como responsáveis maiores pelo estado da desigualdade tributária. Há material empírico de sobra para configurar e propor reforma tributária progressiva, vinculada à sustentação do Estado Social, a exemplo dos estudos disponíveis no site do Conselho Federal de Economia – COFECON relativos ao Fórum de Combate à Desigualdade. Chamo a atenção para dois privilégios escabrosos – a isenção de Imposto de Renda – IR para os dividendos do capital e a tributação baixíssima em comparações internacionais para heranças e grandes fortunas.
2- A presença de uma enorme Dívida Ativa para com a União (Haveres em cobrança judicial), aos Estados e aos Municípios; no caso específico da União de mais de 50% da Dívida Pública federal, que em nenhum momento é motivo de legislação compensatória nas referidas PECs, sabendo-se que há uma enormidade de CNPJs, simultaneamente credores da Dívida Pública e devedores da Dívida Ativa e nenhuma providência compensatória lhes afeta nessa legislação proposta.
3- Os “Paraísos Fiscais’ externos, lugar de fuga apreciável de recursos fiscais no mundo inteiro e do Brasil em particular, ora sob crescente maior vigilância e tentativas de controle pela União Europeia, não aparece na legislação das PECs. Mesma observação vale para aplicação de legislação penal ou mesmo tributária especial aos muitos crimes da órbita financeira.
4- Abertura e restruturação das relações promiscuas do Tesouro, Banco Central e Orçamento Público, protegidas por legalidade espúria, que convertem a despesa financeira pública em categoria ilimitada, inimputável e incontrolável orçamentariamente, enquanto tudo mais lhe é caudatário.
IHU On-Line – Como analisa especificamente a fusão dos gastos sociais mínimos da Saúde e da Educação e a desindexação de receitas em período de crise fiscal, que é um ponto polêmico da proposta. O pacote consegue conciliar a questão fiscal com a Seguridade Social?
Guilherme Delgado – A resposta a esta pergunta, começando pelo final, é claramente negativa. Não há propósito nas PECs citadas para nenhum arranjo de manutenção do sistema de Seguridade Social. Ao contrário, aos limites estabelecidos pela PEC do Teto orçamentário (EC 95/2016), acrescentam-se maiores extrações de recursos. Extrai-se agora a correção inflacionária das dotações de cada ano e ainda se extingue o Fundo de recursos oriundos do Pré-sal.
E finalmente uma providência de baixo caráter ético – a fusão dos recursos de Saúde e Educação é uma tentativa torpe de promover canibalização dos escassos recursos entre as demandas dos necessitados nas duas áreas chave da política social.
IHU On-Line – Como avalia a proposta de repactuação entre Estados, Municípios e União?
Guilherme Delgado – Uma avaliação dessa natureza pode ser feita de duas maneiras, que não se excluem. De forma qualitativa, a partir dos meios e fins a que se dão aos recursos públicos nas referidas PECs, que de certa forma já respondi nas questões precedentes. E de caráter quantitativo, a partir de estimativas criteriosas sobre as implicações fiscais das medidas propostas. Mas nestas PECs, não se fazem estimativas empíricas de economia de recursos, talvez para fugir da crítica e controle dos economistas críticos, a exemplo da PEC da Previdência, flagrada em absurdas estimativas, denunciadas por um grupo de economistas da Unicamp. As próprias PECs não se apresentam como obra do Executivo, mas de senadores da base aliada, que subscreveram as PECs e suas respectivas “Justificativas”, sobre o que nem leram o teor.
IHU On-Line – O pacote econômico indica uma redução da atuação do Estado?
Guilherme Delgado – Sim e claramente nas três propostas. Mas o curioso é que indiretamente também do setor privado, que normalmente não se compraz a investir em sistemas econômicos e sociais contaminados pela dura incerteza. Veja-se o último exemplo do leilão de privatização internacional do Pré-sal. Somente uma estatal chinesa e a Petrobras entraram na concorrência da principal “joia da coroa”.
Finalmente, o que se pode concluir do conjunto da obra é a absoluta inadequação da gestão econômica como também política do país, ávido por aplicar um decantado “modelo chileno” à moda Pinochet, não obstante todas as evidências históricas, geográficas e sociais do absurdo.