Ruínas do neoliberalismo: Chile, caso precursor

Para entender como emergiu, numa vitrine do sistema, uma oposição tão decidida, é preciso ir além da Economia. Hans Sluga, um estudioso de Nietzche, tem uma hipótese. Ela sugere que a rebelião chilena tende a se espalhar…

Por Eleutério F. S. Prado*, em Outras Palavras

Paulo Guedes, ministro da Economia, pretende reformar o Estado brasileiro para adequá-lo a certas aspirações do neoliberalismo. Porém, quando lhe foi perguntado sobre como explicar os abalos recentes do modelo chileno que julga bem-sucedido, ele minimizou: “democracia é assim mesmo: barulhenta (…) ainda há insatisfação com a desigualdade”. Mas será só isso!? Que um economista neoliberal pouco ilustrado como ele entende de sociedade?

Aqui, vai-se examinar as teses de um economista chileno bem mais qualificado do que Guedes, as quais tentam fornecer uma explicação para o terremoto recente que sacudiu as estruturas da sociedade chilena. Apresenta-se e discute-se as teses do economista liberal centrista, Andrés Velasco, que foi ministro da Economia no primeiro governo de Michelle Bachelet, entre março de 2006 e março de 2010, e que atualmente é professor da London School of Economics and Political Science.

Após mencionar os muito divulgados episódios de mortes, torturas, incêndios e invasões de supermercados, ele, de um modo sobretudo atônito, pergunta num artigo publicado no sítio Project Syndicate (Santiago Under Siege, ou seja, sob cerco), em 28 de outubro de 2019:

Como Santiago do Chile – a cidade, sob quaisquer critérios, mais próspera da América Latina, capital de um país que respeita a lei – chegou a isso? O que os eventos recentes nos ensinam sobre a insatisfação dos cidadãos e o potencial de violência nas modernas sociedades. De fato, não é possível ter agora certezas. Tudo aconteceu com uma velocidade vertiginosa.

A causa do incêndio social assombroso estaria no aumento de 3% nas tarifas dos transportes? Estaria na inflação que atingiu apenas a marca de 2,1% nos últimos doze meses? Estaria na desigualdade, que ainda é alta, mas caiu expressivamente após o retorno à democracia, em 1990? (Eis que o índice de Gini caiu de 57,2 para 46,6 mostrando uma melhora na repartição da renda). De qualquer modo, a sua conclusão é que, ao contrário do que “pensa” Guedes, “nem a inflação, nem o aumento da desigualdade de renda proveem uma resposta satisfatória”. Afinal, as marchas só em Santiago reuniram pelo menos 20% da população da capital chilena.

Velasco quase vai além da questão econômica quando pergunta se a causa dos tremores não estaria na forma da sociabilidade imposta pelo neoliberalismo. Estariam os “chilenos simplesmente cheios das intrusões dos mercados e da busca do lucro em todos os cantos da vida cotidiana?”. Mas ele logo abandona esse foco já que o traduz em outros problemas econômicos. Estes seguramente importam, mas eles são sempre mediados por interpretações no âmbito do mundo da vida das pessoas e das famílias. É claro, os chilenos das classes populares e médias não estão felizes.

Estariam os chilenos insatisfeitos com os serviços públicos privatizados? Por que então, os chilenos votaram em peso na última eleição em Sebastián Piñera, um milionário que reza pela cartilha dos mercados? Estariam eles contrariados com o alto desemprego? Ora, diz ele, este está em torno de 7%, o que não é baixo, mas parece insuficiente para gerar uma comoção social com alto poder de destruição. Há, sim, uma grande desilusão – diz ele – como o regime de capitalização como forma privilegiada do sistema de aposentadorias. Mas – complementa –, já foram feitas reformas nesse sistema, as quais aliviaram a situação para 1,3 milhões de pessoas, numa sociedade formada por 18 milhões.

O Chile – informa ele – é uma sociedade estratificada e elitista. A esposa do atual presidente comparou as manifestações de outubro a uma “invasão alienígena”. Entretanto, argumenta ele, sete em cada dez estudantes universitários agora provieram de famílias que não tinham ninguém com esse grau de estudo anteriormente. O Chile progride – justifica – ainda que “os sobrenomes continuem sendo importantes para se conseguir um emprego”. Há, sim, concluindo, uma revolta civil contra os políticos, que parecem mais empenhados em garantir privilégios para as elites e para si mesmos do que para o povo em geral. E isto, em suma, mostra que há várias fontes de insatisfação na sociedade chilena.

Ainda que essa explicação se afigure como um voo explanatório muito mais alto do que o rastejo usual do neoliberal puro-sangue, ainda assim – julga-se – não vai muito longe. Tentar-se-á mostrar aqui que ela também não compreende bem a sociedade porque a vê sob o prisma de valores que são inerentes à perspectiva economicista dominante. Como o autor dessa nota é também um economista, ele vai se valer de uma sugestão de um filósofo que perfila como partidário da democracia radical.

Hans Sluga1, num texto que se denomina Donald Trump: entre a retórica populista e o governo plutocrático, sugere que se deve procurar as origens do que está agora acontecendo, tanto no Chile como em vários outros países do mundo, numa tese radical de Friedrich Nietzsche. Antes de expô-la, veja-se que não se está aqui construindo uma perspectiva política com base nessa compreensão de sociedade; pois, diferentemente, julga-se que uma boa perspectiva política só pode emergir ao se ter como objetivo não cair no pessimismo desse filósofo crítico da época moderna. Os humanos desumanizados pelo capitalismo tardio precisam, sim, de valores superiores que estejam bem ancorados e que permitam sonhar com civilização – e não ter pesadelos com a barbárie.

De qualquer modo, é preciso saber que essa alternativa é apenas possível. Ela não vai ocorrer necessariamente no futuro, inclusive porque este se apresenta como difícil para qualquer perspectiva de esquerda. De qualquer modo, é preciso tentar.

Bem, eis a sua hipótese:

Se Nietzsche está certo, e eu não vejo razão para se afastar dele aqui, estamos vivendo atualmente uma época ainda incompleta, mas em que o niilismo está em desenvolvimento. “O niilismo está na nossa porta”, escreveu Nietzsche no final dos anos 1880. “O que apresento é a história dos próximos duzentos anos. Descrevo o que está vindo e que não poderá vir de modo diferente: o advento do niilismo”. Esses duzentos anos ainda não se passaram, mas estamos já em face do que o niilismo acabado nos trará”.

Ora, desde logo é preciso entender essas afirmações – propõe-se aqui que sejam encaradas como mote de discussão – como uma crítica da sociabilidade engendrada pelo domínio cada vez maior da relação de capital, mesmo que esta não tenha sido a intenção desse filósofo “maldito”. Sluga ensina, então, que as considerações nietzschianas sobre a moral vivida devem ser entendidas num duplo sentido.

No primeiro deles, deve-se entender que Nietzsche não afirma a inexistência de valores, mas sim que estes não se encontram bem ancorados; eis que flutuam e vagam ao sabor das circunstâncias, ora aportam numa cidadela do bem ora numa fortaleza do mal. Pouco importa. Os valores, assim tomados, são descartados e substituídos conforme a moda do momento, conforme a necessidade prática ou conforme o papel que precisa ser representado no bar, na festa, no trabalho, na igreja etc. Não passam, na verdade, de fontes para meras posturas; eis que os valores passam a ser usados, mas não vividos como tais, não como produtores de normas que se respeita e se cumpre porque se julga que são necessárias. Dando um exemplo do que adveio com essa decrepitude da sociedade moderna – a desvaloração dos valores –, Sluga diz: “um sinal dessa forma de niilismo é a dissolução da distinção entre o verdadeiro e o falso, aquele momento em que não sabe mais distinguir o real da fake news”.

No segundo sentido, mais terrível, aparece a tese de Nietzsche segundo a qual os valores em geral são apenas produtos da vontade de poder e que a própria sociedade como um todo é apenas manifestação dessa vontade de poder. Aqui se admite, havendo aprendido com outros filósofos, que essa vontade existe no bicho homem, mas que o ser humano enquanto ser social não pode ser reduzido a ela. Como este vive necessariamente em sociedade, move-se também pelo sentimento e pela prática de solidariedade, simpatia pelos outros e verdadeiro altruísmo. Crê-se que é assim, mesmo se a compaixão está cada vez mais bloqueada por um individualismo criminoso e suicida. Como pode aprender quem estuda A nova razão do mundo (Boitempo, 2016) de Pierre Dardot e Christian Laval, um individualismo do empresário de si mesmo está agora sendo posto politicamente como forma de enfrentar a decadência do capitalismo.

Segundo Nietzsche – explica Sluga – é a sublimação da vontade de poder que cria a cultura, a arte, a moralidade e a ordem política – e nada mais. Ora, sendo assim, torna-se sempre possível que possam ocorrer, no curso da sociedade e da história, episódios de dessublimação dessa vontade. Quando isso acontece, emerge aquilo que estava mal guardado pelas instituições sociais de contenção, tais como, fornecendo aqui um exemplo formal, o direito e a justiça de cunho liberal-democrático. “Há sempre a possibilidade e o perigo de que ela recaia numa vontade brutal e irrestrita de poder”. Eis que o niilismo se apresenta então como o vir à tona de algo adormecido na atuação humana em sociedade. Aquilo que se manifesta – trata-se de uma advertência – pode surgir em governos de direita, de centro e mesmo de esquerda. No primeiro caso, tem-se o que pode ser considerado como o fundamento moralmente decaído do fascismo:

É neste momento que todos os aspectos da cultura são reduzidos a instrumentos do uso irrestrito do poder. Quando mesmo a religião e o apelo aos valores da religião se tornam instrumentos cínicos para um uso irrestrito do poder, quando se torna natural aos políticos se apresentarem com a bandeira da fé, mesmo se isto não passa da mais deslavada hipocrisia. Desse modo, em particular, o acordo intergeracional que dá suporte à ordem social, que torna possível o estado de bem-estar social e, em particular, o sistema de seguro social e o sistema de saúde etc – tudo fica em perigo.

O que foi exposto ajuda – crê-se – a repensar aquilo que ora ocorre no Chile. Como compreender não só uma revolta de grandes dimensões, mas também uma oposição prática avassaladora aos valores do neoliberalismo? É preciso partir – admite-se aqui – do seguinte: se as teses de Nietzsche, tal como apreendidas por Sluga, forem tomadas como antropologia fundamental, então são falsas; se, no entanto, forem consideradas como uma consequência do individualismo extremado no mundo desencantado da sociedade moderna, vêm a ser um aporte importante para entender o que ocorre nos momentos de crise profunda do capitalismo.

A desvaloração de todos os valores – exceto os econômicos – na prática social em geral desaguaria assim no niilismo. E isso seria possível porque o mundo econômico é habitado por fetiches: a mercadoria, o dinheiro e o capital. A vontade de potência se manifestaria, então, em resumo, como vontade de competição e como vontade de dinheiro, de mais e mais dinheiro. Não espontaneamente, mas por meio de uma prática social e integral, engendrada proposital e estrategicamente, que busca forjar uma subjetividade que favorece a expansão da acumulação por meio da subsunção mental e intelectual do trabalhador em geral ao capital.

Para compreender o que está ocorrendo no país andino, no entanto, não se pode aderir ao modo de explicação causal e mecânico que os economistas praticam acriticamente. É preciso supor que a abertura ao niilismo, tal como foi acima apresentada por Hans Sluga, está sendo produzida agora, ainda que não intencionalmente, pelo próprio neoliberalismo. Como o processo social que instaura quer generalizar as condições da concorrência de capitais para todos os âmbitos do social, como quer criar subjetividades competitivas que se pensam como capitais humanos, ele passa a esgarçar e a destruir o tecido social, criando, assim, o seu contrário, a sua negação, aquilo que o confronta: um movimento de massas pautado implícita ou explicitamente pelos valores societários que haviam ficado aplastados e comprimidos pelos valores econômicos favorecidos pelo neoliberalismo.

Como outros já disseram, quando o neoliberalismo toma a sociedade como se esta fosse formada por empresas numa tentativa de prolongar o tempo histórico do capitalismo, ele produz o desdesenvolvimento (ou seja, um crescimento econômico, provavelmente anêmico, mas que se torna destrutivo do homem e da natureza), a desdemocracia (isto é, quando a democracia representativa é totalmente esvaziada de conteúdo já que as demandas populares heterogêneas são desprezadas) e a despolítica (a formação vontade popular é impedida ou contornada por um governo tecnocrático que atua fundamentalmente em prol da acumulação de capital).

É claro que esse movimento vai estar constituído principalmente por aqueles que mais sofrem com essa situação do cada um para si e o Estado só para os capitalistas. Vai ser construído por aqueles que se encontram numa condição desvantajosa e mesmo precária: os trabalhadores assalariados e autônomos, os estudantes, os aposentados etc. instalados sempre nas categorias baixas e médias de remuneração. E o que os move, mesmo se não o sabem, é o desejo de criar uma sociedade baseada na solidariedade, na amizade, no amor ao próximo e na democracia radical em que as vontades de todos os seres sociais, uma diversidade não integrável de fato numa vontade unificada, possam efetivamente participar do processo político e influir nas decisões sobre os rumos da sociedade.


1 Hans D. Sluga é um acadêmico alemão de grande renome. Desde 1970, ele é professor de filosofia na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Anteriormente, atuou como professor de filosofia na University College of London.

*Professor titular e sênior do departamento de economia da FEA/USP. Mantém o blog Economia e Complexidade

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