A ancestralidade como resistência: aldeias guarani cultivam sementes, mudas, cultura e conhecimento

Por Marco Weissheimer, no Sul21

Um grupo de aldeias indígenas Guarani vêm desenvolvendo, no Rio Grande do Sul, um projeto que tem como objetivo principal a conservação, a recuperação e o aumento da biodiversidade em suas aldeias. Implementado em parceria com o Instituto de Estudos Culturais e Ambientais (IECAM), com apoio da Petrobras, o Projeto Ar, Água e Terra – Vida e Cultura Guarani, envolve a construção de viveiros de plantas nativas, intercâmbio de saberes, sementes e mudas entre as aldeias e a recuperação e reconversão de áreas degradadas por meio do plantio de espécies de uso tradicional na alimentação, medicina, arte e rituais.

Coordenado pelo cacique guarani José Cirilo e pela bióloga Denise Wolf, do IECAM, o projeto vem sendo implementado em uma área de mais de três mil hectares de biodiversidade da Mata Atlântica e dos Campos Sulinos (Pampa). Em sua terceira fase, a iniciativa já alcançou resultados como o cultivo e plantio de mais de 80 mil mudas para consumo alimentar do povo indígena, manejo e plantio de mais de 130 diferentes espécies vegetais e 50 hectares de terras degradadas recuperadas, entre outras ações.

Conheça as redes sociais do Projeto:
www.projeto.iecam.org.br 
facebook.com/ProjetoArAguaETerra/

A experiência de Denise Wolf com o povo guarani iniciou por volta de 1994 quando ela teve contato com alguns guaranis que viviam na aldeia Cantagalo, na divisa de Viamão com Porto Alegre. Bióloga de formação, ela diz que, a partir desse contato, se apaixonou pela cultura guarani, por sua visão espiritual e pela relação que eles mantinham com a natureza. Ela começou, então, de forma voluntária, a participar de oficinas sobre temas como uso de plantas medicinais e cultivo de plantas alimentícias. Um trabalho que acabou se desdobrando em outros projetos. Começaram a ser dados aí os primeiros passos para a construção do Projeto Ar, Água e Terra, implantado hoje em nove aldeias guarani no Rio Grande do Sul, abrangendo uma área de mais de três mil hectares.

Em 1997, o Instituto de Estudos Culturais e Ambientais, criado na época da conferência ECO92 e que, até então, só tinha realizado trabalhos no Rio de Janeiro, começou a atuar também em Porto Alegre, voltado para o estudo e desenvolvimento de projetos socioambientais, valorizando a recuperação de saberes tradicionais e da biodiversidade. Na época, os guarani manifestaram à equipe do instituto interesse em projetos para a valorização de sua cultura e de sua arte e também para garantir a sua segurança alimentar. Começaram a surgir projetos pequenos, com duas, três aldeias, voltados inicialmente mais para o artesanato, para a arte guarani. O projeto Ar, Água e Terra, relata Denise, começou a ser pensado a partir de relatos dos guarani sobre problemas como a indisponibilidade de matéria-prima dentro do próprio território.

“Eles iam cada vez mais longe para buscar taquara para fazer sua cestaria, já não tinham mais árvores como guajuvira ou cedro, cujos ramos também eram utilizados no artesanato. A partir desses relatos, pensamos a construção de um viveiro, algo que não faz parte da tradição guarani. Começamos a desenvolver, então, um projeto arquitetônico com padrões de construção sustentáveis. Minha irmã, que é arquiteta, desenvolveu voluntariamente junto com eles um projeto que incorporou elementos da cultura guarani, como a direção, os deuses e a orientação não só solar mas também espiritual. Também queriam que não fosse só um viveiro para multiplicar as plantas, mas um espaço onde pudessem realizar oficinas e outras atividades”.

A partir da implantação do viveiro, surgiu um novo desafio, conta Denise. “A gente não podia, em primeiro lugar, utilizar, para recompor ambientes degradados, espécies que não fossem importantes para eles. Fizemos então um levantamento das 90 espécies mais importantes para eles na alimentação, no artesanato, na medicina, na construção de instrumentos musicais e nas suas cerimônias sagradas. Todas elas são espécies nativas que eles usam tradicionalmente. Junto com isso, veio o tema da segurança alimentar. A gente não podia trabalhar com a recuperação de áreas degradadas sem pensar a questão da alimentação, sem plantar milho, mandioca, batata doce e outras espécies. Um dos eixos do projeto, assim, foi o fortalecimento das roças tradicionais familiares, algo que eles fazem há milhares de anos e continuam fazendo”. As sementes são conservadas pelos próprios indígenas e trocadas entre as aldeias. Além disso, o projeto também envolve temas como etnomapeamento, gestão territorial, compostagem, reciclagem e adubação verde.

Em sua terceira fase, o projeto é realizado com nove aldeias guarani em oito municípios do Rio Grande do Sul: Teko’a Anhetengua (Aldeia da Verdade), em Porto Alegre; Teko’a Nhuu Porã (Aldeia Campo Bonito, Campo Molhado), em Caraá, Maquiné e Riozinho; Teko’a Ka’aguy Pau (Aldeia Vale das Matas), em Caraá e Maquine; Teko’a Kuaray Rese (Aldeia Sol Nascente), em Osório; Teko’a Nhuu Porã (Aldeia Campo Bonito), em Torres; Teko’a Yriapu (Aldeia Som do Mar), em Palmares do Sul; e Teko’a Nhuundy (Aldeia do Campo Aberto, Capinzal), em Viamão.

Um conhecimento ancestral milenar

O cacique José Cirilo, da Teko’a Anhetengua, conta que o projeto nasceu, por volta do ano 2000, da inspiração dos mais velhos, dos líderes espirituais do povo guarani. “Eles sonharam que tem campo onde dá pra plantar ou dá pra fazer semente e reflorestamento. Procuramos algumas entidades para nos ajudar a conseguir financiamento e aí começamos essa construção do reflorestamento. Hoje, todas as aldeias estão plantando. Alguma planta que não tem aqui, podemos trazer de outra aldeia. Plantamos frutas nativas como guavira, pitanga, araçá e várias outras que também servem como remédio. A gente come as frutas e ao mesmo tempo faz chá com as folhas e com a casca do tronco para curar dor de barriga, tosse e outras doenças”.

Além da questão ambiental e alimentar, esse trabalho envolve também a preservação e reprodução de conhecimentos ancestrais do povo guarani. “Esse projeto nos ajudou a trazer de novo a espiritualidade e um conhecimento ancestral milenar. Também ajudou a trazer muitos passarinhos que a gente nunca via. Agora estamos preocupados em garantir a continuidade desse projeto. Muitas vezes, o não indígena trabalha com prazos de um ano, dois anos, para fazer esses projetos. Quando a gente quer fazer mais, terminou o projeto. Estamos lutando para poder garantir a continuidade do que estamos fazendo aqui”, diz Cirilo, mostrando o viveiro de mudas de sua aldeia, onde trabalham dois monitores guarani cuidando das sementes e das mudas que depois são trocadas em outras aldeias.

Ao falar sobre o sentido mais amplo desse projeto, o cacique Cirilo destaca que não se trata exatamente de um trabalho de resgate de cultura e de conhecimentos ancestrais. “Não é resgatar. Resgatar é quando você perde e depois traz de novo. Na verdade, não é isso que fazemos. Nós guardamos tudo isso na nossa mente e quando tem espaço a gente larga tudo pra fora. Por isso eu não uso a palavra “resgatar”. É uma ancestralidade contínua”. Esse sentido de continuidade de um conhecimento ancestral ajuda o povo guarani também a enfrentar as conjunturas adversas sob as quais vivem desde a chegada do homem branco em suas terras, que resultou em morte, destruição e perda de territórios. Questionado sobre o impacto da atual conjuntura na vida dos povos indígenas, Cirilo fala sobre a importância da preservação do conhecimento ancestral como fator de resistência:

“É difícil mas a gente vive. Continua vivendo fortalecendo nossos costumes, nossa tradição e nossa língua. Procuramos manter nossa cultura. Se a gente fica pensando só na conjuntura política, acaba ficando enfraquecido, deprimido. Não é de agora que a gente sofre esse ataque. Desde que os brancos chegaram na América, começaram a matar o índio com armas de fogo e com doenças. Agora matam com a ponta da caneta. Mas a gente não fica pensando nisso o tempo todo, senão fica doente”.

Os guarani procuram colocar essa visão em prática na vida cotidiana da aldeia. Na Teko’a Anhetengua, localizada na região da Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre, vivem 22 famílias, com 102 pessoas. “Vivemos aqui há 23 anos numa área de 25 hectares. Temos uma escola bilíngüe, de ensino fundamental e médio, onde o diretor é guarani. Também temos um postinho de saúde. Agora estamos enfrentando o problema da moradia. Vivemos do artesanato e de algumas outras fontes de renda. Alguns professores já têm renda. A merendeira é guarani. O agente de saúde também é guarani. A gente vive assim, nunca perdendo o costume de viver e a língua materna. Devagarinho estamos conquistando algumas coisas”.

Esse trabalho de preservação e fortalecimento da cultura e dos conhecimentos ancestrais do povo guarani envolve também uma relação particular com animais considerados sagrados por eles. A aldeia Anhetenguá obteve autorização para criar, de forma tradicional, um casal de queixadas (koxi), animal sagrado para os Mbyá Guarani. “Conseguimos dois filhotes (oriundos do Parque Zoológico da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul). A gente lutou bastante pra isso. Tivemos que fazer uma cerca e cumprir uma série de regras para que o Ibama liberasse”, conta o cacique Cirilo, destacando o simbolismo desses animais para a vida da aldeia. “É um animalzinho sagrado pra nós. Ele é uma força da nossa espiritualidade que traz felicidade, ânimo, luz e harmonia para a aldeia”.

Cacique José Cirilo, da aldeia Anhetengua, localizada na Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre. Foto: Luiza Castro/Sul21

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