Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão, mas ‘nunca enfrentou seu legado’ de racismo e discriminação, diz escritor
AFP / CartaCapital
Após sua bem-sucedida trilogia “1808”, “1822” e “1889”, sobre a chegada da Corte portuguesa ao Brasil, a Independência e a proclamação da República, o jornalista e escritor Laurentino Gomes volta agora com “Escravidão”, o primeiro de outra série de três livros históricos sobre o brutal comércio de escravos entre a África e seu país.
Aos 63 anos, o autor visitou 12 países africanos, europeus e americanos para explicar esta “tragédia humana de proporções gigantescas”, especialmente no Brasil, que recebeu cinco milhões de escravos. Confira a entrevista:
AFP: Você conta no livro que o comércio de escravos da África era tão intenso, que os tubarões adaptaram sua rota.
Laurentino Gomes: Os números da escravidão são assustadores. Saíram da África 12,5 milhões de pessoas embarcadas em navios negreiros: 10,7 milhões desembarcaram, e 1,8 milhão morreram na travessia. Se você dividir esse número pelos dias, vai dar 14 cadáveres, em média, lançados ao mar todos os dias ao longo de 350 anos. A ponto de haver relatos, na época, de que isso mudou o comportamento dos cardumes de tubarões no Atlântico, que passaram a seguir os navios negreiros.
Têm relatos de capitães de navios negreiros, dizendo que, no golfo de Benin, tão logo chegavam os navios negreiros, os cardumes de tubarões passavam a cercar esses navios na espera de cadáveres que caíssem ao mar enquanto o navio estava sendo carregado.
AFP: E morriam de quê?
Laurentino Gomes: Para mim, isso foi a coisa mais assustadora. As pessoas morriam de tudo. De doenças, de falta de alimentação, de água, mas morriam também de uma coisa chamada “banzo”, que era um surto de depressão e que fazia com que a pessoa parasse de comer, ficasse completamente inanimada. Algumas pulavam dos navios e, por isso, os navios tinham redes de proteção em volta para que as pessoas não pulassem no mar, suicídios… O índice de suicídios era muito grande.
AFP: Você afirma que a escravidão é o tema mais definidor da identidade brasileira.
Laurentino Gomes: E o assunto mais importante da história do Brasil. O Brasil foi o maior território escravista da América. Recebeu quase 5 milhões de escravos africanos, 40% do total dos cativos que embarcaram para a América, cerca de 12,5 milhões. Foi o país que mais dependeu da escravidão no novo mundo.
Todos os nossos ciclos econômicos, o pau-brasil, a cana-de-açúcar, ouro e diamantes, tabaco, algodão, pecuária, café… Tudo foi construído por mão de obra escrava. Todos os nossos principais acontecimentos históricos (guerra contra os holandeses em Pernambuco, a Monarquia, a Independência) não se entendem sem observar a escravidão.
AFP: É uma ferida aberta?
Laurentino Gomes: Os abolicionistas do século XIX diziam que não bastava enfrentar o legado da escravidão, era preciso também enfrentar o legado da escravidão nos âmbitos da educação, terras, trabalho, oportunidades para os ex-escravos e seus descendentes. O Brasil não fez isso.
O Brasil fez uma abolição branca, livrar o Brasil de uma mancha que comprometia sua imagem perante o mundo supostamente civilizado, a selvageria, a barbárie da escravidão.
Então, o Brasil promove a Lei Áurea e abandona os afrodescendentes à própria sorte. O resultado aparece hoje nas estatísticas, que mostram que, de qualquer ponto de vista que você tente medir o Brasil (renda, educação, trabalho, segurança, saúde, moradia) há um abismo de oportunidades entre a população branca descendente de europeus e a população descendente de africanos.
AFP: Quais, por exemplo?
Laurentino Gomes: Um homem negro no Brasil tem oito vezes mais chances de ser vítima de homicídio do que um homem branco. Os negros são a maior população carcerária do Brasil. Então, você vê que a escravidão está presente na realidade brasileira de hoje. Está na geografia, na paisagem brasileira.
Se você vai ao Rio de Janeiro e observa quem mora na periferia, nas favelas perigosas, violentas, dominadas pelo crime organizado, sem qualquer assistência do Estado, você vê a população afrodescendente. Se você vai à Zona Sul, Leblon, Ipanema, Copacabana, boa qualidade de vida, população descendente de europeus brancos.
AFP: Nenhum governo fez nada para integrar realmente a população negra?
Laurentino Gomes: Nenhum. Houve algumas conquistas muito cosméticas, como dar direito de voto aos negros. Mas isso não resultou em benefícios concretos. Os esforços reais de correção estão surgindo, curiosamente, no Brasil da democracia, começando a surgir políticas públicas muito polêmicas, como as cotas raciais para filhos de afrodescendentes, de negros, de mestiços nas universidades, na administração pública. Isso é uma coisa concreta, real, e que deve ser estimulada.
Mas, ao mesmo tempo, esse assunto é tão sensível, porque envolve distribuição de recursos, de privilégios, de benefícios, de oportunidades, que há também uma reação, que é o que está acontecendo no governo atual.
Se você observar o governo atual, ele é um governo racista, ele é um governo supremacista branco. Não é à toa que, na campanha eleitoral, o assunto escravidão veio forte. O candidato [Jair Bolsonaro] dizia que os portugueses nunca entraram na África, que eram os próprios africanos que escravizavam africanos.
AFP: Isso em parte é verdade?
Laurentino Gomes: Sim, isso é uma verdade histórica. Onde houve ser humano até hoje, na Babilônia, na Grécia, no Egito Antigo, em Roma, houve escravidão. E também na África. O problema é usar esse argumento histórico como um discurso racista, para dizer “A escravidão é problema deles, eu não tenho nada a ver com isso, eles se escravizaram. Então eu, brasileiro, branco, do século XXI que tive todas as oportunidades e virei presidente da República, não tenho nada a ver com isso”.
Esse argumento (de que os negros escravizaram negros) está sendo usado agora como um discurso para combater políticas públicas, cujo objetivo é enfrentar o legado da escravidão.
AFP: É possível culpar alguém pela escravidão?
Laurentino Gomes: Reinos e impérios surgiram em países da África para capturar escravos e fornecer aos europeus. Claro que os europeus estimularam isso, fornecendo armas, munições, bebidas alcoólicas que desestabilizaram a geopolítica da África. Mas muitas das dinastias atuais africanas nasceram com o tráfico de escravos. Quem vai indenizar quem? No Brasil, muitos ex-escravos também eram donos de escravos.
Se discute muito sobre se os grandes países exportadores de africanos, como Portugal, Espanha, França, Brasil, deveriam indenizar os países africanos. Acredito que, depois de tanto tempo, seja muito difícil identificar quem foram as vítimas e quem foram os algozes. Tenho dúvidas sobre se é possível fazer um acerto de contas.
AFP: Que papel a Igreja católica teve na escravidão?
Laurentino Gomes: Isso é um tema muito sensível, e uma contradição entre o evangelho da misericórdia, do amor, do acolhimento e a escravidão. Porque a Igreja católica participou e lucrou do tráfico de escravos e do trabalho cativo até o final do século XIX, até as vésperas da Lei Áurea no Brasil. A Igreja nunca se pronunciou de forma categórica, decisiva, contra a escravidão. Ao contrário, todas as grandes ordens religiosas do Brasil, os jesuítas, os carmelitas, beneditinos, franciscanos, eram donos de grandes plantéis de escravos.
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CAPATAZ PUNE ESCRAVO EM PROPRIEDADE RURAL – J.B.DEBRET