O dia em que Henry Sobel enfrentou a ditadura militar

Por Felipe Souza, da BBC News Brasil

No dia 27 de outubro de 1975, o corpo do jornalista Vladimir Herzog era levado para ser enterrado como o de um suicida no Cemitério Israelita do Butantã, em São Paulo.

Segundo o judaísmo, a causa da morte previa que ele fosse sepultado às margens do local.

Mas Henry Sobel, na época com 31 anos, se negou a aceitar a versão oficial de que Herzog tinha tirado a própria vida. O Exército afirmou que o jornalista tinha cometido suicídio em sua cela, no dia 24, e divulgou uma foto na qual ele aparecia pendurado por um cinto amarrado ao pescoço.

Sobel tinha visto o corpo — e as marcas de tortura, conforme relatou mais tarde. Ele decidiu, então, confrontar as autoridades, contrariar pressões internas da comunidade judaica e enterrar Herzog no centro do cemitério. O ato foi um desafio aberto à versão oficial contada pela ditadura sobre a morte do jornalista.

Em 2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil pelo assassinato de Vladimir Herzog.

Henry Sobel morreu nesta sexta-feira (22/11) em Miami, nos Estados Unidos, por complicações causadas por um câncer no pulmão. Ele deixa a esposa e uma filha. O religioso nasceu em Portugal e ainda na infância se mudou com a família para Nova York. Na década de 1970, ele aceitou o convite para se tornar rabino na Congregação Israelita Paulista.

Em entrevista à BBC News Brasil, o filho mais velho de Vladimir Herzog, Ivo Herzog, disse que as ações de Sobel logo após a morte de seu pai, especialmente um ato ecumênico na praça da Sé, foram cruciais para mudar o rumo histórico da morte do jornalista e para o enfrentamento da ditadura.

“Ele (Sobel) faz parte da história da nossa família. Foi a primeira pessoa que denunciou o assassinato do meu pai. Algumas horas depois da morte ele dizia que ele tinha sido um assassinato. Na mesma semana, eles fizeram um ato ecumênico na praça da Sé, que marcou o início do fim da ditadura no Brasil”, afirmou.

Sobel liderou, ao lado de dom Paulo Evaristo Arns, à época arcebispo de São Paulo, e o pastor Jaime Wright um ato ecumênico em homenagem a Herzog. A catedral da Sé e a praça à sua frente ficaram tomadas por uma multidão numa manifestação silenciosa no dia 31 de outubro de 1975.

“Aquele grande ato foi marcante pela grandiosidade que teve, com o governo fechando acessos à praça e pronto para reprimir a chegada de mais pessoas. Foi o início do fim da ditadura porque ele foi pacifista, causado pelo assassinato de uma pessoa também pacifista”, disse Ivo Herzog.

Herzog morreu nas instalações do DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna) do Exército, em São Paulo.. Ele havia comparecido voluntariamente ao órgão para prestar esclarecimentos sobre vínculos com o PCB (Partido Comunista Brasileiro).

Relação com a família

Rabino emérito da Congregação Israelita Paulista, Sobel ficou conhecido no Brasil por sua atuação na defesa dos direitos humanos. De acordo com o filho de Herzog, a relação com o rabino não era muito próxima, principalmente nos últimos anos, por conta da distância entre as famílias.

“A gente nunca teve uma relação muito próxima. Nos encontrávamos em eventos políticos e em incontáveis cerimônias de entrega do prêmio Vladimir Herzog. Nos últimos anos ele estava mais recluso porque mesmo antes de se mudar para Miami em 2013 ele já estava doente e se preservava muito”, afirmou Ivo Herzog.

Mesmo não tão próximos, o filho do jornalista diz que o rabino sempre demonstrava muito carinho quando os encontrava.

“Ele foi uma pessoa muito acolhedora. Tinha o jeito dele de falar, com sotaque muito forte. Me chamava de ‘meu amigo’. Ele nunca demonstrou distanciamento. Sempre foi muito genuíno e acolhedor não só com a gente. Hoje, estou recebendo muitas manifestações de apoio e todos dizem que têm uma lembrança de um grande ser humano.”

Por conta da distância, nenhum familiar de Herzog deve comparecer ao sepultamento do rabino, que será nos EUA.

Antes de Sobel se mudar para os Estados Unidos, o Instituto Vladimir Herzog fez uma cerimônia de despedida, que contou com a presença de cerca de 500 pessoas, entre autoridades e líderes de diversas religiões. O evento foi descrito como “emocionante” pelo filho de Herzog.

Ivo fez questão de lembrar que Sobel era muito querido, mas também sofria resistência dentro da própria comunidade judaica. Entre os argumentos usados para criticá-lo estava o fato do rabino ter sido preso em 2007 após ter furtado cinco gravatas de uma loja de grife nos Estados Unidos.

Sobel justificou ter cometido o crime porque na época passava por transtornos psiquiátricos. Posteriormente, afirmou que foi uma “falha moral”.

“Ele (Sobel) é uma figura que recebeu apoio da comunidade judaica, mas muitos não simpatizavam com ele. (Eles falam) desde o ato das gravatas… que é uma situação ridícula. E essa posição dele de desafiar o status quo também vai contra uma parte mais conservadora da comunidade”, afirmou.

Morte de Herzog

Herzog nasceu em 1937 na Croácia (na época, Iugoslávia), morou na Itália e se mudou para o Brasil com os pais em 1942.

Formado em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), o jornalista trabalhou no serviço da BBC em Londres de 1965 a 1968, quando retornou ao Brasil. Em 1975, foi escolhido para dirigir a TV Cultura, em São Paulo, no mesmo ano em que foi morto.

Ao examinar os laudos da morte de Herzog, peritos contratados pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) negaram a versão oficial. Eles identificaram que haviam “dois sulcos” no pescoço do jornalista. Os especialistas afirmaram que as marcas indicam que Herzog foi estrangulado e depois amarrado em um cinto para simular um suicídio.

Membros da Congregação Israelita Paulista, que foram responsáveis pelo funeral de Herzog, também foram ouvidos pela CNV. Os funcionários também disseram ter identificado “evidências concretas” de outros sinais de tortura no corpo de Herzog.

Foto: Agência Brasil

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