Adolfo Pérez Esquivel: “O trabalho que fazemos é de solidariedade”

Por Leonardo Félix, em Conectas

Referência indispensável para muitas gerações quando se trata de defesa dos direitos humanos e promoção de uma vida digna e plena, Adolfo Pérez Esquivel é certamente uma vida iluminada por uma rica espiritualidade cuja esperança lhe permite ver com coragem o que ainda não acontece, como quem antecipa os próximos passos do baile de um futuro incerto. Essa é parte do trabalho profético que Dom Adolfo P. Esquivel sustenta desde muitas décadas como titular do Servicio Paz y Justicia (SERPAJ) na Argentina.

Em seu pequeno escritório no edifício do Servicio Paz y Justicia, no mítico bairro de San Telmo, em Buenos Aires, Adolfo nos recebe com sorriso aberto, passos ligeiros e mãos firmes no aperto e no abraço; como quem faz de conta que seus 90 anos de vida são um dado a mais que se perde em meio a testemunhos vívidos que têm um pouco de nostalgia portenha, e outro pouco de sonhos ainda por nascer.• • •01

Leonardo Félix • Quem é Adolfo Pérez Esquivel em 2019?
Adolfo Pérez Esquivel • Um ser humano que segue lutando pelo próximo, somente isso, o que já é bastante.

LF • Você tem uma ampla trajetória de luta pelos direitos humanos no continente. Isso lhe granjeou vários prêmios e reconhecimentos, entre eles um Nobel da Paz (1980) em um período muito turbulento de nossa história recente.

APE • Em primeiro lugar não se deve buscar prêmios, nenhum tipo deles. O trabalho que fazemos é de solidariedade. E o faço a partir da fé, do compromisso social, cultural, político não partidário, tratando de compartilhar duas coisas: o pão que alimenta o corpo e o pão que alimenta o espírito. E a liberdade: não me resigno à escravidão.

LF • Isso tem a ver com outra coisa que queremos lhe perguntar: de que maneira sua fé e seu vínculo religioso contribuíram para seu compromisso em defesa da democracia?

APE • Sempre acreditei que o Evangelho não é uma leitura, mas uma condição da vida que devemos assumir, e tratar de pô-la em prática. O vínculo entre minha fé e a democracia é fundamental, é a base que me sustenta.

LF • Onde nasce sua fé, Adolfo?

APE • Eu nasci no mítico bairro de San Telmo, muito perto de outro bairro portenho mítico, a Boca. Provenho de um cortiço onde meu pai era pescador imigrante e minha mãe era filha de uma indígena guarani da província de Corrientes,1 e toda essa zona estava cheia de imigrantes e antigos escravos; nossos companheiros de brincadeiras na infância eram outros imigrantes e os negros descendentes de escravos.

Eu me criei com os franciscanos no Colégio San Francisco. Quando minha mãe morreu, fui parar num asilo para crianças órfãs, e ali estive com as freiras carmelitas no Patronato Espanhol até os dez anos de idade. Sempre tratei de ver e descobrir quem era e quem é Deus para minha vida.02

LF • Seu desejo de saber quem é Deus em sua vida tem relação com “a não violência” como uma bandeira que você continua defendendo?

APE • Quando eu era menino, vendia jornais nas esquinas de meu bairro para ganhar meu sustento. Eu ia de bonde até a Praça de Maio2 e ali havia um senhor que vendia livros usados. Um dia me disse, “toma garoto, tenho dois livros, um te dou de presente e o outro me pagas quando puderes”. O livro de presente era a autobiografia de Mahatma Ghandi, História de minha experiência com a verdade, e o que me deu para pagar quando pudesse era A montanha dos sete círculos, de Thomas Merton, amigo de Ghandi. Logo me apaixonei pelos Evangelhos, pelo sermão da Montanha, onde está claramente declarada a não violência. Frases como “ama teu próximo como a ti mesmo” me impactavam. E, obviamente, o que li de Ghandi me impactou profundamente, essa ideia de que todas as religiões têm em comum o amor e o respeito pelo ser humano continua sendo válida em minha vida, assim como a não violência como modo de reivindicação e defesa da vida.

Também tive vivências muito fortes. Prenderam-me em 4 de abril de 1977, o primeiro dia da Semana Santa daquele ano. Eu não acredito em casualidades: em 1968, nessa mesma data, foi assassinado Martin Luther King (o pastor batista dos Estados Unidos); assim, eu fui detido num dia muito especial.

Em meio aos cheiros fortes e nauseabundos de minha pequeníssima prisão, onde tinha de gritar por longo tempo para que me deixassem sair e ir ao banheiro, descubro escrito na parede “Deus não mata”. Essas palavras, escritas por um prisioneiro ou prisioneira que só conheci espiritualmente, ficaram gravadas em minha mente para sempre.

Ali estou 32 dias e me levam a um dos voos da morte3 acorrentado ao assento de trás do avião. Como bom navegante que sou, reconheço o caminho que vamos seguindo e dando voltas desde o rio Luján até a ilha Martín García e vislumbrando ao fundo Montevidéu (Uruguai). Não conseguiram jogar-me do avião finalmente graças à enorme solidariedade internacional e à campanha que na Europa e outros lugares se fazia por minha libertação.

LF • Conte-nos um pouco sobre o Servicio Paz y Justicia en América Latina (SERPAJ). O que é? Como surgiu essa organização e qual é sua importância e seu impacto regional?

APE • O SERPAJ nasce ecumenicamente. Pessoas da Igreja Metodista na Argentina, como os bispos metodistas Federico Pagura, Carlos Gattinoni, Aldo Etchegoyen, e católicos brasileiros como Dom Hélder Câmara, Antônio Fragoso e o bispo de Riobamba Leonidas Proaño (o bispo dos índios), o tornaram possível. Com eles por trás, assumo a responsabilidade de liderar este movimento que vinha sendo gestado havia anos com Federico Pagura, em Mendoza, onde já no início dos anos 70 atendíamos aos refugiados que vinham do Chile e pudemos criar o CAREF.4 Em 1974, encarreguei-me de articular essa experiência em nível continental.

Creio que este trabalho do SERPAJ é um trabalho de redes. Saber que o problema que se vive em algum lugar é um problema para todos e todas é nossa força. O isolamento dos grupos vulneráveis gera o perigo de sua morte e por isso, além das peculiaridades de cada SERPAJ no continente, a defesa ativa dos direitos humanos a partir da não violência é nossa marca distintiva.03

LF • Qual foi o papel mais importante ou significativo da Teologia da Libertação na América Latina?

APE • A Teologia da Libertação causou um grande impacto no continente. Desde o Concilio Vaticano II (1962-1965) e da II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano de Medellín (1968), muitas comunidades católicas voltam às vilas ou favelas e redescobrem o espaço libertador de Deus junto aos pobres, suas lutas e sonhos. Como diz Gustavo Gutiérrez, teólogo católico peruano, a Teologia da Libertação trata de “voltar a beber das fontes de água viva”.

LF • Em sua opinião, qual deveria ser a função da religião no espaço público e qual é o maior desafio que as religiões encaram hoje diante de uma situação global de conservadorismos e fundamentalismos?

APE • Primeiro, faço uma breve análise. Para frear o avanço da Teologia da Libertação, Reagan cria o “Instituto de Religião e Democracia” durante seu governo. Dali surge grande parte desses movimentos fundamentalistas, com uma religião alienante, individualista, não comunitária. Diferente do que faz o testemunho público de Jesus, que cria comunidade a partir de seus apóstolos. E lembro que, em meio a tantos apóstolos homens, se esqueceram de uma apóstola fundamental, como é Maria Madalena, e das demais mulheres, aquelas às quais se apresenta Jesus ressuscitado.

LF • Você acredita que entre o papel público da religião e os coletivos feministas na América Latina há um vínculo que é necessário redescobrir?

APE • Neste momento, o movimento de mulheres representa uma luta não violenta que muda a sociedade de maneira radical, assim como os rios impetuosos que transbordam e transformam a realidade. É uma das grandes esperanças de transformação de nossa realidade social e política.

LF • A partir sua experiência, que conselho daria aos defensores e defensoras dos direitos humanos hoje?

APE • Uma coisa muito simples: que não deixem de sorrir para a vida. O dia que deixarem de sorrir significará que foram derrotadas, foram derrotados. A resistência social também é cultural, no sentido de saber que não estamos aqui inutilmente para sobreviver. Estamos aqui para aprender a viver. Com Madre Teresa de Calcutá me dei conta que o amor é a grande revolução e que os movimentos de mulheres têm muito disso. O que comemoro e me enche de esperança pelo que virá.

Foto: Gabriela Felix

Comments (1)

  1. Excelente trabalho, gostaria de receber as publicações diárias.
    Sou Cientista Social e identificado com as lutas dos oprimidos e suas causas!

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