O avanço da cana-de-açúcar na Amazônia representa uma ameaça à estabilidade da biodiversidade e do clima. Entrevista especial com Marcos Buckeridge

IHU On-Line

Recentemente, o presidente Jair Bolsonaro revogou o Decreto 6.961, que restringia o plantio de cana-de-açúcar na Amazônia. Embora a medida tenha como finalidade a expansão dessa cultura na região, ela pode gerar mais problemas do que alternativas à produção e também ao bioma. De acordo com o biólogo Marcos Buckeridge, as variedades de cana-de-açúcar cultivadas no Brasil necessitam de insolação e água, mas não são adaptáveis a regiões com umidade alta e “não funcionariam bem em regiões amazônicas, pois elas são muito úmidas e possivelmente teríamos que enfrentar novas doenças, que baixariam a produtividade. Seria, portanto, um caminho desnecessário e menos seguro para expandir a cultura da cana”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, o biólogo explica as demais razões que inviabilizam a produção de cana-de-açúcar na Amazônia. Entre elas, ele menciona a disponibilidade de áreas de plantio fora do bioma e os investimentos em ciência e tecnologia, que permitem aumentar a produtividade em áreas menores, sem necessidade de expandir o plantio para o bioma. “Já demonstramos por modelagem computacional que temos área suficiente para expandir a cana até 2045 sem precisar de áreas da Amazônia ou de plantio de outras culturas agrícolas”, informa.

A produção de cana-de-açúcar em larga escala na Amazônia também pode interferir nos serviços ambientais que o ecossistema gera para a América do Sul e causar impactos na produção agrícola da região. “Um dos pontos cruciais é a capacidade que a Floresta Amazônica tem de produzir vapor de água. A produção dele é tão grande que em certas ocasiões do ano forma-se um enorme corredor que vai da Amazônia até o Atlântico. Toda esta umidade é de grande importância para a agricultura que já se estabeleceu. Sem a Amazônia, provavelmente teríamos mudanças significativas no clima da América do Sul, de forma que vários países poderão ter seus sistemas agrícolas afetados. Como a Argentina é um importante produtor agrícola na região e também para o mundo, um efeito sobre os agronegócios brasileiro e argentino teria impacto na economia mundial”, explica.

Marcos Buckeridge é graduado em Ciências Biológicas pela Universidade de Guarulhos – UNG, mestre na mesma área pela Universidade Federal de São Paulo – Unifesp e doutor em Ciência Molecular e Biológica pela University Of Stirling, Escócia. Atualmente é professor do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo – USP e membro do Instituto de Estudos Avançados da USP, onde criou e coordena o programa USP-Cidades Globais. Foi presidente da Associação dos Estudantes e Pesquisadores na Grã-Bretanha entre 1993 e 1994 e da Sociedade Botânica de São Paulo entre 2001 e 2005. Entre 2015 e 2019, Buckeridge foi presidente da Academia de Ciências do Estado de São Paulo.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é a situação dos plantios de cana-de-açúcar na Amazônia e no Pantanal?

Marcos Buckeridge – Planta-se muito pouca cana na região amazônica. Que eu saiba, apenas acerca de Manaus, há algumas plantações, mas de pequeno porte e para consumo local. Desconheço plantios de cana-de-açúcar em larga escala em regiões da Amazônia brasileira.

IHU On-Line – Como era feito o Zoneamento Agroecológico – ZAE da cana-de-açúcar nesses biomas?

Marcos Buckeridge – O Zoneamento Agroecológico incluía toda a Amazônia Legal, o que abrange os seguintes estados: AcreAmazonasRondôniaRoraimaPará e Amapá, que são estados Amazônicos, e áreas dentro de estados que abrigam parte do bioma Amazônia (Mato Grosso, Maranhão, Tocantins e Goiás). Nessas regiões o desmatamento legal era bem mais restritivo.

IHU On-Line – Por que e em que contexto, na sua avaliação, o presidente Jair Bolsonaro revogou o decreto 6.961, de 17 de setembro de 2009, que restringia o plantio de cana-de-açúcar na Amazônia? Por que há um interesse em expandir a produção na Amazônia?

Marcos Buckeridge – Mesmo que não tenha sido intencional, a revogação do decreto abre caminho para que a cana possa ser plantada em regiões onde há floresta amazônica. Se a intenção for expandir a produção na Amazônia, há pelo menos três pontos que devem ser considerados para evitar este caminho.

Primeiro, já sabemos que levar cana para biomas preservados ou áreas de produção de alimentos não é necessário, pois há área mais do que suficiente fora das regiões cobertas pelo Zoneamento Agroecológico para expandir a produção da cana com concomitante aumento na produção de açúcar e etanol.

Segundo, o avanço tecnológico que estamos tendo no Brasil com os investimentos em ciência e tecnologia tende a aumentar a produtividade (produção por área plantada). Com isto, se trabalharmos bem na área científica e tecnológica da cana, a tendência seria de necessitar relativamente menos área para plantio.

Terceiro, as variedades de cana que temos não funcionariam bem em regiões amazônicas, pois elas são muito úmidas e possivelmente teríamos que enfrentar novas doenças, que baixariam a produtividade. Seria, portanto, um caminho desnecessário e menos seguro para expandir a cultura da cana.

IHU On-Line – Segundo o governo, o decreto que estabelecia o Zoneamento Agroecológico – ZAE da cana-de-açúcar no Brasil não é mais necessário porque existem outros instrumentos legais, como o Código Florestal e o Renovabio, para controlar o plantio de cana-de-açúcar. Como avalia essa justificativa?

Marcos Buckeridge – Na minha interpretação, há uma diferença importante que não é considerada neste argumento. O ZAE limitava mais severamente o plantio em estados amazônicos e estados que tenham parte da Amazônia em seus territórios.

O Código Florestal permite o chamado “desmatamento legal“, desde que uma parcela da área ocupada seja preservada. Por isso, se somente usarmos como instrumento o Código Florestal, seria permitido entrar em regiões onde há floresta e desmatar o que sobra, sem ferir o código. Esse processo levaria à perda de parte significativa da Amazônia.

Já o Renovabio não se refere a onde se pode ou não plantar cana. É um mecanismo excelente para premiar a sustentabilidade na produção de biocombustível, mas se for considerado que um projeto obedeceu ao Código Florestal, será difícil defender um argumento de que não haja sustentabilidade, pois teria ocorrido desmatamento legal.

Assim, manter o Código Florestal e o Renovabio são medidas excelentes, mas deveríamos manter maior restrição de uso de áreas que ficam dentro das áreas pertencentes ao ZAE. Com os três será possível proteger melhor a Amazônia e ao mesmo tempo produzir etanol combustível suficiente para o consumo brasileiro e para a exportação. Mais do que isso, o nosso etanol provavelmente terá muito mais valor para comércio no exterior se tiver um selo de sustentabilidade com isenção de qualquer plantio na Amazônia.

IHU On-Line – Depois da revogação do Decreto 6.961, o senhor declarou que a decisão é um erro porque o plantio de cana-de-açúcar vai gerar perda de biodiversidade na Amazônia. Pode nos explicar qual é a relação entre plantio de cana-de-açúcar na Amazônia e perda da biodiversidade no bioma? Por que o plantio de cana-de-açúcar gera essa consequência?

Marcos Buckeridge – Um avanço da cultura da cana – ou qualquer outra cultura agrícola – na Amazônia representa uma ameaça à estabilidade da biodiversidade das florestas e também sobre o clima. A Amazônia possui biodiversidade extremamente alta e ainda é largamente desconhecida. Se houver desmatamento, poderemos estar perdendo a oportunidade de encontrar substâncias para cura de doenças como câncerAlzheimerParkinson e várias outras. Usando somente o Código Florestal e o Renovabio, sem a proibição de entrar nas áreas dentro do Zoneamento Agroecológico, haverá a possibilidade de desmatar a Amazônia, pois deixaremos de ter um dos principais instrumentos de proteção ao desmatamento. Como o Código Florestal exige preservação de apenas parte das propriedades, permitindo o que é chamado de “desmatamento legal”, parte significativa da Floresta Amazônica poderia ser perdida.

Renovabio é uma ótima ferramenta e pode até ajudar, mas não foi desenhado para preservação de florestas, e sim para a sustentabilidade em geral. Acredito que não tenha força para evitar a invasão de regiões amazônicas. Parte importante da ciência brasileira de cana-de-açúcar tem ido no sentido de aumentar a produtividade da cana nas regiões onde ela já cresce bem hoje. Além disso, já demonstramos por modelagem computacional que temos área suficiente para expandir a cana até 2045 sem precisar de áreas da Amazônia ou de plantio de outras culturas agrícolas.

Na minha opinião, é muito melhor negócio para o Brasil não entrar na Amazônia. A Floresta Amazônica presta um serviço ambiental crucial, que é a manutenção da estabilidade climática que temos no Centro-Oeste e no Sudeste. Se degradarmos a Amazônia, colocaremos em risco todo o agronegócio brasileiro, inclusive a cultura da cana.

IHU On-Line – O senhor também declarou que no longo prazo a medida pode prejudicar toda a agricultura de larga escala no Brasil e na Argentina. Por que isso tende a ocorrer?

Marcos Buckeridge – Ao longo dos anos, os climatologistas vêm demonstrando que a Amazônia exerce grande influência no clima da América do Sul. Chega a influenciar também a África e o hemisfério Norte. Na atmosfera, tudo está interconectado. Um dos pontos cruciais é a capacidade que a Floresta Amazônica tem de produzir vapor de água. A produção dele é tão grande que em certas ocasiões do ano forma-se um enorme corredor que vai da Amazônia até o Atlântico. Toda essa umidade é de grande importância para a agricultura que já se estabeleceu. Sem a Amazônia, provavelmente teríamos mudanças significativas no clima da América do Sul, de forma que vários países poderão ter seus sistemas agrícolas afetados. Como a Argentina é um importante produtor agrícola na região e também para o mundo, um efeito sobre os agronegócios brasileiro e argentino teria impacto na economia mundial.

IHU On-Line – Em que regiões do país o plantio de cana-de-açúcar é mais indicado? Por que não se utilizam essas terras?

Marcos Buckeridge – A cana-de-açúcar é uma gramínea de clima quente e necessita de bastante insolação. Necessita de bastante água, mas as variedades que usamos não se dão muito bem em regiões com umidade muito alta. Para que haja a produção e acúmulo do açúcar no corpo da cana, é preciso um estímulo de uma leve seca. Isto funciona bem no Sudeste e no Centro-Oeste e é o que tem ocorrido em geral no Brasil. A cana também pode funcionar no Nordeste, mas foi necessário grande esforço para desenvolver variedades que sobrevivam à seca muito intensa.

Outro ponto importante é a floração da cana. Quando a cana floresce, a produtividade do açúcar diminui, pois este é acumulado no corpo da planta para dar suporte à produção das flores. Sabemos que as melhores condições para a floração da cana são encontradas nas regiões mais próximas ao equador. Assim, plantar cana na Amazônia exigiria todo um esforço para evitar floração com adição de insumos agrícolas e outros tratos, o que aumentaria o custo de produção. Mesmo assim, não é garantido que a produtividade se mantenha com esses produtos.

IHU On-Line – O etanol pode ser considerado um produto competitivo no Brasil? Por que seu preço ainda não parece competir com o da gasolina?

Marcos Buckeridge – O etanol se tornou, sim, um produto competitivo no Brasil. Hoje, sem qualquer subsídio e devido aos avanços tecnológicos tanto no desenvolvimento genético da cana como dos automóveis flex que usamos, o bioetanol compete e atualmente ganha da gasolina. Na realidade, não há gasolina pura no Brasil. Quando enchemos o tanque com o que chamamos de gasolina, na verdade estamos também colocando etanol, pois o que usamos tem adição de quase um terço de etanol. Isso faz do Brasil um país único no mundo. É o país com a maior taxa de uso de energias renováveis no planeta. Ainda mais interessante é que podemos aumentar ainda mais a nossa eficiência. Podemos produzir mais etanol, e com os avanços recentes nas tecnologias eólica e solar, poderemos ser um dos primeiros países do mundo a poder chegar perto dos 100% de renováveis na matriz energética. Ainda estamos na dianteira. Temos que investir maciçamente em ciência e tecnologia na área de renováveis. É neste caminho que o mundo está indo e o Brasil poderá se beneficiar muito se se mantiver na fronteira do conhecimento e inovação nesta área. Tudo isso pode ser feito sem entrar na Amazônia. De fato, sem ela, nem teremos como atingir este patamar.

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