Em Brumadinho, a Vale causa outros crimes. Por Gilvander Moreira*

Na sociedade capitalista atual, o processo de desterritorialização acontece de forma sorrateira e, muitas vezes, onde se menos espera. Até o dia 25 de janeiro de 2019, a comunidade rural de Ponte das Almorreimas, em Brumadinho, MG, era um lugar tranquilo, bom de viver e conviver: comunidade simples com as famílias produzindo em regime de agricultura familiar, com fortes laços de amizade e ajuda mútua, em um bioma bastante preservado, onde o silêncio durante o dia era a tônica e à noite, tão bela quanto a vesperata em Diamantina, era a sinfonia do cantar dos pássaros, sapos e grilos. Ponte das Almorreimas se constituía como um território “espaço de segurança afetiva, “lar”, “abrigo físico”, “espaço de redes sociais” e “olhares múltiplos” (SANTOS, 1994 e 2000; HAESBAERT, 2004; SAQUET, 2007). 

Um dos vários idosos existentes na comunidade, o Sr. Norival José Alves, com mais de 100 anos, há quase 50 anos convivendo e trabalhando em Ponte das Almorreimas, nos diz: “Aqui tinha água pra todo lado, várias lagoas e um córrego com muita água que desembocava no rio Paraopeba. Depois que chegou a mineração aqui na região, as águas só vêm diminuindo.” Em um círculo negativo, o crime/tragédia da Vale e do Estado, iniciado dia 25 de janeiro de 2019, na Mina do Córrego do Feijão, está gerando muitos outros crimes no município de Brumadinho, MG, e em muitos outros municípios da bacia do rio Paraopeba.

Conforme Relatórios das CPIs da Assembleia Legislativa de Minas Gerais e da Câmara Federal, planejado com requintes de crueldade, o crime/tragédia da mineradora Vale e do Estado se iniciou dia 25 de janeiro de 2019, às 12h28, sepultando vivas 272 pessoas que estavam trabalhando na mina de Córrego do Feijão ou estavam na Pousada Nova Estância, logo abaixo da Mina de Córrego do Feijão. É importante frisar que o crime não é só da Vale, mas também do Estado, pois o Governo de Minas Gerais concedeu licenciamento ambiental, não fiscaliza como deveria a exploração minerária e renovou a licença para a Vale retomar as atividades na Mina de Córrego do Feijão.

Mesmo não sendo inundada pelos 12,7 milhões de metros cúbicos de lama tóxica que desceram córrego abaixo até invadir o rio Paraopeba, matando todos os seres vivos da fauna aquática, por estar acima de Córrego do Feijão, a Comunidade e o Território de Ponte das Almorreimas perdeu vários parentes e amigos no crime e, pior, a Vale montou na Comunidade uma fazenda para receber inicialmente os animais feridos encontrados na lama tóxica. Depois, a Vale comprou a fazenda Lajinha, em Ponte das Almorreimas, para servir de depósito da lama tóxica retirada, via bombeamento em uma espécie de mineroduto, do córrego do Carvão, logo abaixo do palco do crime. Assim, a contaminação está sendo transferida para o território de Ponte das Almorreimas.

A Vale foi condenada judicialmente a construir uma nova estação de captação de água no rio Paraopeba, porque com o rompimento da barragem inviabilizou a captação de água no rio Paraopeba, feita pelo Governo de Minas Gerais e COPASA e inaugurada em 2015, com promessa de garantir segurança hídrica para Belo Horizonte e Região Metropolitana (RMBH) por 25 anos. O rio Paraopeba era responsável por 50% do abastecimento de BH e RMBH. A Vale, o Governo de Minas Gerais e a COPASA escolheram o território de Ponte das Almorreimas como local para se construir a nova captação de água para retardar o colapso hídrico em Belo Horizonte e Região Metropolitana, com 5 milhões de habitantes. “A Vale comete crimes e nós é que temos que pagar a conta?”, questionam muitas pessoas na comunidade.

A Vale já comprou várias fazendas na região. “Para quê? A Vale tem planos de ampliar a mineração na região?”, perguntam indignados os moradores diante de vários indícios. A região tem histórico de mineração de ouro por garimpeiros. Há autorização para pesquisa minerária na região. A Vale demoliu parte de um grande e extenso muro histórico e arqueológico existente em Ponte das Almorreimas, ao lado da antiga igrejinha de São Vicente de Paulo. Idosos da comunidade, como o Sr. Norival e o Sr. Raimundo, 70 anos, atestam que o muro é muito antigo: do tempo da escravidão. Atestam também que sessenta anos atrás, ao capinar nas lavouras de milho, feijão e mandioca, volta e meia encontravam cacos de cerâmica e objetos antigos que os levavam a crer que a região tenha sido habitada por indígenas antes da chegada dos não indígenas. 

A Vale alega que está agindo dentro da legalidade. De fato, o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, expediu decreto de utilidade pública desapropriando terrenos para a construção de nova captação de água para a COPASA, que está sendo feita pela Vale. O preço arbitrado na desapropriação – compra forçada – é injusto e atropela vários direitos das famílias.

Os moradores estão muito indignados e revoltados, pois “viver aqui virou um inferno”. “A Vale invadiu nossa comunidade e parece que pode tudo e compra todos”. “Barulho ensurdecedor e poeira infernal.” “Até o nosso direito de ir e vir está sendo violado, pois a estrada que antes era muito simples, agora foi alargada, mas está com trânsito infernal”. “A Vale está sacrificando nossa comunidade e nosso território”, desabafam moradores A comunidade de Ponte das Almorreimas se tornou mais uma zona de sacrifício do “sistema minerário, que é criminoso”, segundo Dom Vicente Ferreira, bispo auxiliar da Arquidiocese de Belo Horizonte. 

Essa realidade violentadora nos faz recordar do pensador camaronese Achille Mbembe que, a partir da teoria do biopoder de Foucault, ajuda-nos a perceber a relação dos podres poderes do sistema do capital que determina quem pode viver, quem pode morrer, produz inimigos e destrói corpos, definindo, enfim, o direito de matar, tudo isso oficializado como Estado de Direito sob a égide de “interesse social” / “utilidade pública” até para processo de mineração devastadora que causa inúmeros processos de desterritorialização. Esse processo visa expurgar comunidades deixando-as em situação de precarização crescente e de reclusão social. Nessa dominação dos territórios verifica-se uma necropolítica camuflada de democracia neoliberal, na prática um processo de nova colonização que impõe violentamente, mais do que um escravismo, uma política de extermínio.

Enfim, nessa lógica da necropolítica, à Comunidade e ao Território de Ponte das Almorreimas foi imposto violentamente pela mineradora Vale e pelo Estado um território de sacrifico ao deus do capital – “zona de sacrifício” (BULLARD, 2004). Por isso, eis nesse caso concreto do crime/tragédia da Vale e do Estado injustiça socioambiental gerando vários outros crimes.

Referências.

BULLARD, Robert. Enfrentando o racismo ambiental no século XXI. In: ACSELRAD, Henri; PÁDUA, José Augusto de; HERCULANO, Selene (orgs). Justiça Ambiental e Cidadania. Delume Lumará, São Paulo, 2004.

HAESBAERT, R. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multi- territorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.

SANTOS, M. Território globalização e fragmentação. São Paulo: Hucitec, 1994. 

_______. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 2000. 

SAQUET, M. A. Abordagens e concepções de território. São Paulo: Expressão Popular, 2007. 

Belo Horizonte, MG, 30/12/2019.

Obs.: Os filmes e vídeos nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado acima.

1 – Vale sacrificando o território de Ponte das Almorreimas, em Brumadinho, MG: violência! Vídeo 1 – 26/12/2019.

2 – “Vale comete crime e nós é que pagamos?” Ponte das Almorreimas, Brumadinho, MG. Vídeo 2 – 26/12/2019.

3 – “Vale pode tudo e compra todos?” (Cláudia). E Dom Vicente: Ponte das Almorreimas, Brumadinho/MG. Vídeo 3 – 26/12/2019.

4 – Dom Vicente: “Sistema minerário é criminoso”. Vale na Ponte das Almorreimas, Brumadinho/MG. Vídeo 4 – 26/12/2019.

5 – Dom Vicente: “Não espere outra barragem romper”. Vale na Ponte das Almorreimas/Brumadinho/MG Vídeo 5 – 26/12/2019.


*Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail:  [email protected] – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br – www.twitter.com/gilvanderluis –Facebook: Gilvander Moreira III

Muro histórico e arqueológico demolido pela mineradora Vale, em Ponte das Almorreimas, comunidade rural de Brumadinho, MG, dia 12/12/2019. Ao fundo, a antiga igrejinha de São Vicente de Paulo. Foto: A. Baeta.

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