“O Brasil não conhece a Amazônia. O Brasil não respeita a Amazônia”

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Por que é vantajoso zerar o desmatamento da Amazônia? Foi esta pergunta que motivou o professor Ricardo Abramovay a escrever o livro “Amazônia: Por uma economia do conhecimento da natureza”, lançado em outubro deste ano pela Editora Elefante.

Este não é o primeiro livro do autor sobre o tema, reconhecido por seu vasto trabalho acadêmico, Abramovay ressalta em entrevista ao site Amazônia.org.br a importância em falar sobre meio ambiente e a Amazônia: “O Brasil não conhece a Amazônia. O Brasil não respeita a Amazônia. Tem preconceito contra os povos que vivem na floresta, por desconhecimento”, afirma.

Longe de só apontar problemas, o livro que foi requisitado por organizações ambientais e sociais, traz ao grande público soluções e tenta “traduzir” conceitos econômicos e científicos para a compreensão do que é viável e sustentável para o bioma, além de comprovar que é possível produzir e conservar: “quando o Brasil fez declinar o desmatamento na Amazônia em 80%, no período entre 2004 e 2012, a produção agropecuária, tanto a produção da soja como a produção de carne aumentou”.

Ricardo Abramovay é professor Sênior do Programa de Ciência Ambiental do IEE/USP e mantém uma página com sua biografia e artigos publicados.

A entrevista é de Nicole Matos e Aldrey Riechel, publicada por Amazônia.org.br.

Eis a entrevista.

Como que foi escrever o livro Amazônia: Por uma economia do conhecimento da natureza?

Uma das coisas legais de escrever algo assim é que você tem que conversar com muita gente. Esse livro não é uma pesquisa original minha, não sou um pesquisador que vai a campo descobrir coisas novas, não tem nada nesse livro que seja uma novidade com relação à bibliografia existente. Ele tem a ambição de ser uma síntese do que há de mais importante nessa bibliografia, baseada tanto no esforço de traduzir uma literatura técnica numa linguagem acessível, mas rigorosa, como em traduzir conversas que tive com inúmeros pesquisadores e ativistas sobre as suas atividades.

Você já escreveu outros livros relacionados ao meio ambiente, como que foi falar sobre a amazônia nesse livro e quais os assuntos abordados?

Esse livro foi feito por uma encomenda de sete organizações não governamentais: GreenpeaceWWFAPIBArtigo 19ConectasEngajamundo e ISA. Me pediram um estudo com a seguinte pergunta: “por que que é vantajoso zerar o desmatamento sobre o ângulo, econômico, político e cultural?”. A estratégia que adotei para responder consiste em cinco proposições básicas, que são os cinco capítulos do livro.

A primeira proposição é que o crescimento econômico da Amazônia não depende do desmatamento, aliás quando o Brasil fez declinar o desmatamento da Amazônia em 80%, no período entre 2004 e 2012, a produção agropecuária, tanto a produção de soja como a produção de carne aumentou. Portanto a ideia de que para aumentar a produção precisa desmatar, os dados mostram exatamente o contrário.

Além disso, um argumento que se usa muito com relação a Amazônia é que “tudo bem a floresta é importante, mas as pessoas são mais importantes e lá vivem 25 milhões, portanto nós temos que desmatar se queremos propiciar alguma coisa para essas pessoas”. Se esse argumento fosse verdadeiro o desmatamento acelerado que a Amazônia sofreu nas últimas duas décadas teria propiciado um desenvolvimento social imenso e não foi o que aconteceu, 98% dos municípios da Amazônia tem um índice de progresso social inferior à média dos municípios brasileiros.

Hoje a região tem condições sociais bem piores que as do nordeste, a grande maioria da população não tem acesso a água encanada, não tem acesso a saneamento básico, ou seja, o desmatamento não propiciou melhoria de condições de vida.

E as duas culturas mais praticadas na Amazônia que são a soja e a carne, são caracterizadas por baixa geração de emprego, no caso da soja você tem o efeito multiplicador de empregos que seria o processamento da soja, mas não há, o Brasil exporta soja em grão e os frigoríficos mais importantes também não são geradores de empregos e na grande maioria não estão localizados na região.

A segunda ideia é importante porque muita gente diz “tudo bem, desmatar é ruim, mais ao menos quando você está desmatando você está gerando renda e portanto algum benefício para os mais pobres você está gerando”. Os cálculos mostram que a renda gerada pelo desmatamento, em primeiro lugar, é muito baixa e, em segundo lugar, o desmatamento é uma atividade que se apoia predominantemente em práticas ilegais, 90% do que foi desmatado agora sobre o governo Bolsonaro, corresponde a desmatamento ilegal, e é aí que entra a parte política da história. O desmatamento ilegal não é só uma atividade econômica não permitida pela lei, ele supõe a constituição de uma rede composta por grilagem, extração ilegal de madeira, muitas vezes por garimpo ilegal, e essas atividades para serem levadas adiante se apoiam na criminalidade. Algo que se traduziu bem no último dia do fogo em outubro de 2019 quando houve uma organização da queimada.

As pessoas muitas vezes tem a imagem de que as atividades de desmatamento são feitas por pessoas individualmente ou isoladamente que estão desesperadas e que tem que desmatar para plantar e poder comer alguma coisa, não é assim que funciona. O desmatamento é organizado por atividades que poderiam ser caracterizadas como quadrilhas, porque são organizações locais que levam adiante e contratam pessoas para fazer essa atividades ilegais, interromper isso significa certa perda de renda, uma renda pequena e que deriva de procedimentos altamente comprometedores da vida cívica e da vida democrática.

O terceiro ponto é que muito frequente as pessoas dizem que a Amazônia tem áreas protegidas demais. De fato metade da Amazônia brasileira corresponde a unidades de conservação, territórios indígenas, reservas extrativistas, parques estaduais e nacionais e assim por diante, mas o Brasil entre 2004 e 2012 foi o país que deu a maior contribuição individual na luta contra as mudanças climáticas, reduzindo em 80% o desmatamento na Amazônia, passou de 27 mil km² para menos de 5 mil km², isso se deve em grande parte a implantação de áreas protegidas, porque quem era grileiro tinha uma expectativa muito baixa de que a terra invadida poderia ser legalizada, porque nenhum cartório, nenhuma autoridade iria aceitar a legalização dessa área. Isso foi um fator fundamental para inibir o desmatamento.

Áreas protegidas são áreas muito importantes para que os serviços ecossistêmicos da Amazônia continuem existindo e é uma conquista democrática no Brasil que desde a redemocratização até agora metade da Amazônia tenha sido convertida em áreas protegidas.

A quarta proposição do livro é que essas áreas protegidas, apesar da baixa expectativas de legalização de quem grila e invade, estão sistematicamente sendo invadidas. Antes do governo Bolsonaro elas estavam sendo invadidas para exploração de madeira e para garimpo ilegal, depois a sinalização que o poder executivo deu para a sociedade é que a fiscalização e as multas são algo que não deveriam estar acontecendo e, portanto isso funcionou culturalmente como uma espécie de autorização para que as pessoas passassem a invadir inclusive as áreas de conservação.

Nesse aumento que chegou a quase 10 mil km² no desmatamento em 2019, uma parte muito grande (e isso não acontecia antes) corresponde a áreas protegidas, porque agora sim as pessoas têm uma expectativa de regularização. O decreto aprovado agora de certa forma corrobora isso que torna o reconhecimento da propriedade privada autodeclaratório, você invade e você diz “isso é meu”.

E a quinta ideia na qual o livro aborda é o combate ao preconceito segundo qual apenas o Brasil tem a legislação florestal mais rigorosa do mundo e sofre por isso. Essa ideia é absurda porque faz parte do processo de desenvolvimento o fato de que, conforme a riqueza da sociedade aumenta, as sociedades passam a dar mais valor às suas áreas florestais e isso acontece em todos os países desenvolvidos, então o livro mostra que no Japão, na Suécia, até mesmo nos Estados Unidos, na França e etc., não é “quem quiser vai lá e desmata e só no Brasil que é proibido”. Isso é um completo absurdo e algo cômico. No entanto é o que predomina no discurso brasileiro sobre esse tema e muitas vezes até por parte de pessoas ligadas ao agronegócio.

Qual a relevância que o livro traz para as pessoas hoje em dia?

O Brasil não conhece a Amazônia. O Brasil não respeita a Amazônia. O Brasil tem preconceito contra os povos que vivem na floresta, por desconhecimento. Acabamos de completar a década de biodiversidade, decretada pela ONU, com um Brasil que não respeita e não valoriza o fato de ser um país detentor da maior biodiversidade do planeta.

Ao invés disso ser uma vantagem, um trunfo para nós, muitos governos brasileiros, mas sobretudo o governo Bolsonaro, trataram a Amazônia como um almoxarifado, onde você vai buscar energia e matérias primas baratas e não como o local detentor de uma riqueza que se exprime, por exemplo, no fato de que nós somos um país que se fala quase 200 línguas. Quais são os países do mundo em que se fala 200 línguas?.

Esse livro é um pequeno esforço, somado ao esforço de tantos pesquisadores de trazer isso numa linguagem acessível, de trazer também uma ideia muito importante para o Brasil e é pouco valorizada, que é o papel que o ativismo tem no processo de desenvolvimento. Se nós fizermos na Amazônia um desenvolvimento capaz de se apoiar na economia da floresta em pé, isso tem que ser feito com base no trabalho dos ativistas. Porque os ativistas da Amazônia são, em primeiro lugar as pessoas que estão produzindo trabalho científico publicado em revistas internacionais, eles conhecem de perto as populações locais, eles têm iniciativas empresariais voltadas à valorização da floresta em pé que às vezes contrasta com a ideia atual de ativismo, de ver o ativista como aquele que faz simplesmente denúncias, o ativismo na Amazônia é propositivo.

Sobre a declaração do presidente da república quando ainda era candidato “Nós vamos acabar com o ativismo no Brasil”, se acabar com o ativismo na Amazônia, acaba com a Amazônia, porque acaba a luta pela defesa e pela valorização dos povos da floresta.

A invasão do escritório do Saúde e Alegria e a prisão dos quatro ativistas é uma expressão dessa brutal falta de respeito com a Amazônia, desse preconceito e desse desconhecimento, tanto da Amazônia, quanto daqueles que trabalham para valorizar a economia da floresta em pé.

Qual sua opinião sobre as políticas ambientais que estão sendo adotadas pelo atual governo?

São políticas antiambientais porque elas destruíram a fiscalização sobre atos ambientalmente nocivos e sobretudo são políticas que transmitiram a mensagem de que haveria mudanças no sentido de atenuar as exigências de respeito à biodiversidade, de que haveria uma indústria de multas e além disso é uma política que não é dotada de estratégias.

Brasil foi o país que isoladamente deu a maior contribuição contra as mudanças climáticas entre 2004 e 2012, reduzindo em 80% as emissões. Isso foi feito sobre a base de tomada de controle, todos os órgãos do estado voltados a reduzir o desmatamento e a punir quem desmatava, de acordos entre populações locais e produtores agropecuários e das grandes trades que comercializam produtos agropecuários, que se materializou na Moratória da Soja, pelas quais as trades se comprometiam a não comprar sojas de áreas desmatadas depois de 2008. Da mesma forma a União dos Produtores de Cana-de-açúcar, a Única, se comprometeu e foi contra a expansão da cana em direção à Amazônia e ao Pantanal.

Essas duas conquistas civilizatórias estão sendo contestadas agora pelo setor privado. O que mudou no comportamento do setor privado? Por que primeiro ele topou o acordo da Moratória da Soja e agora ele não está mais topando? O que mudou foi a relação com o governo, na medida em que o governo federal passa a sinalizar para as pessoas que preservação, respeito a biodiversidade é algo que não valoriza, o próprio setor privado aproveita essa ideia para ter comportamentos cada vez mais predatórios.

No livro você homenageia Bertha Becker, qual o legado que você acredita que ela deixou para nós?

O legado da Bertha Becker é o conhecimento, o princípio básico do trabalho da Bertha não era o de que a floresta tem que ficar intocada como uma redoma, mas sim que a floresta em primeiro lugar tem que ser reconhecida e em segundo lugar que tem que ser explorada com base na junção entre conhecimentos tradicionais e conhecimento científicos e por empresa que tenham como propósito a manutenção tanto da integridade dos serviços ecossistêmicos fornecidos pela floresta, como das populações que habitam a floresta.

E a Bertha Becker teve um papel muito importante na Academia Brasileira de Ciências, destacando como a Amazônia precisa cada vez mais de ciência. Neste governo infelizmente a ciência é considerada uma manifestação espiritual sobre a qual pesam suspeitas. A economia do conhecimento da natureza no que depender do governo não vai se desenvolver. Felizmente há forças e movimentos sociais vindos da sociedade, das empresas, dos jovens e dos cientistas que vão no sentido contrário.

Na foto a queimada criminosa na Parna Jamanxim/Foto: Victor Moriyama/Greenpeace/24/08/2019

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