Sim, estamos em 2020 e este texto é sobre trabalho escravo, mais especificamente sobre trabalho escravo contemporâneo
Por: Aldrey Riechel e Nicole Matos, em Amazônia.org.br
“É claro que falar do trabalho escravo no século 21 parece algo anacrônico, mas a verdade é que o Brasil, apesar de ter abolido formalmente a escravidão em 1888, manteve formas de exploração semelhantes.”, afirma o cientista político e jornalista Leonardo Sakamoto.
Os dados confirmam a necessidade do tema. No Brasil, 50.731 já foram libertados de trabalhos análogos à escravidão de 1995 até 2018, segundo dados da Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT).
E para explicar e mostrar mais sobre o assunto, Sakamoto convidou diversos especialistas de dentro e fora do Brasil para juntos escreverem o livro “Escravidão Contemporânea”, da Editora Contexto.
O lançamento do livro aconteceu ontem, dia 28 de janeiro, conhecido como o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, criado pelo governo em 2009 após o assassinato de três auditores fiscais do trabalho, Nélson José da Silva, João Batista Soares Lage, Eratóstenes de Almeida Gonçalves e seu motorista Aílton Pereira de Oliveira, neste mesmo dia em 2004, quando fiscalizavam fazendas da zona rural de Unaí (MG). Esse é um dia para lembrar a sociedade brasileira que o trabalho análogo à escravidão ainda é realidade no Brasil.
Em entrevista ao site Amazônia.org.br, Sakamato fala sobre o livro, sobre o tema, sobre a Amazônia e conta que para erradicarmos o trabalho escravo por completo precisamos de mudanças na sociedade.
Você pode falar sobre a importância desse livro para os dias atuais, onde há muitas pessoas que ignoram o fato de que existe trabalho análogo à escravidão no Brasil e no mundo?
O livro pretende ser uma obra de referência sobre o tema, explicando para as pessoas leigas o que é o trabalho escravo contemporâneo, como ele surge e se desenvolve, como é combatido, como se insere na economia, e não só para as pessoas leigas, mas também pretende ser uma obra de ajuda para as instituições civil, do governo, empresariais, que também combatem esse crime.
É claro que falar do trabalho escravo no século 21 parece algo anacrônico, mas a verdade é que o Brasil, apesar de ter abolido formalmente a escravidão em 1888, manteve formas de exploração semelhantes. O livro não é apenas um alerta, mas também é um subsídio para a ação.
Em um dos capítulos escrito por frei Xavier Plassat que atua há 35 anos atendendo vítimas do trabalho escravo na Amazônia, apresenta-se dados sobre o perfil dos sobreviventes, pode nos contar um pouco mais sobre o trabalho escravo que existe na Amazônia?
A maior parte dos resgatados de trabalho escravo no Brasil tem entre 18 e 44 anos, são homens, analfabetos ou têm apenas até a quarta série, são de áreas com baixo nível de desenvolvimento humano, baixa oportunidades de trabalhos e rendas. Eles acabam sendo obrigados a irem trabalhar em outras regiões onde há mais empregos, deixando de lado sua família para poder sobreviver.
O trabalho escravo na Amazônia se encontra principalmente em fazendas de gado, em áreas de extração de madeiras nativas, em carvoarias que servem a indústria siderúrgica e também em atividades como a produção de soja voltada para a exportação.
Lembrando que o trabalho escravo na Amazônia faz parte de uma cesta de crimes, nós temos a super exploração da dignidade humana, mas também o desmatamento ilegal, corrupção, grilagem de terras, crimes fiscais, todos envolvidos no mesmo pacote.
No livro, Kevin Bales fala sobre a relação do trabalho escravo com as mudanças climáticas, quais são elas?
Ele lançou recentemente um livro que fala sobre a relação da escravidão contemporânea com a questão ambiental. Kevin traz uma análise mostrando que trabalho escravo está diretamente relacionado com as mudanças climáticas, porque é usado sistematicamente em atividades que estão relacionadas ao desmatamento ilegal e com a poluição do ar.
Parte significativa da importância de manter as florestas em pé não se deve simplesmente por ajudar no equilíbrio do oxigênio, não é apenas isso, a madeira é basicamente carbono imobilizado, quando você desmata e depois queima, você está pegando aquele carbono que está imobilizado no formato de madeira e de seres vivos nas árvores e acaba jogando na atmosfera, contribuindo para o efeito estufa e consequentemente para o aumento da temperatura do planeta e, portanto para a ocorrência de mudanças climáticas extremas.
Então o Kevin Bales faz essa conexão entre o trabalho escravo que é usado em atividades muitas vezes criminosa, como o desmatamento ilegal, que vira um crime utilizado para cometer outro, não só no Brasil, mas em outros países. Existe desmatamento ilegal com utilizações de forma contemporânea de escravidão em outras florestas tropicais pelo planeta.
O capítulo é um dos mais interessantes exatamente por estar analisando uma coisa que as pessoas não percebem, muita gente fica preocupada com o trabalho escravo, outros com a questão ambiental, mas as duas questões estão conectadas. A lição que Kevin deixa no capítulo é que não vamos ter um mundo melhor, saudável, e não vamos conseguir combater o aquecimento global se não combatermos a questão da superexploração dos trabalhadores, se não garantirmos qualidade de vida para as pessoas. Da mesma forma, você não vai combater o trabalho escravo se não pensar em políticas específicas para trabalhadores que atuam junto de atividades que sejam danosas para o meio ambiente. É uma coisa casada, nunca a palavra socioambiental fez tanto sentido.
A divulgação das empresas por meio da Lista Suja do Trabalho escravo é uma medida que ajuda a punir aquelas que usaram mão-de-obra escrava? Essa é uma medida que traz resultados?
Acho que mais do que punir, a importância de fazer essa relação é outra. A Lista Suja do Trabalho Escravo, criada pelo governo federal em 2003 pela área de direitos humanos, trouxe uma transparência sem igual para a economia brasileira. Até agora ela tem sido feita de forma técnica, tem divulgado nomes dos empregadores flagrados com mão de obra análogas ao dos escravos, que tiveram direitos a defesa administrativa.
A lista suja trouxe informação de qualidade e partir daí essa informação permitiu que as empresa brasileiras e estrangeiras adotassem políticas corporativas com relação às suas cadeias de valor, portanto aos bens que compravam ou vendiam, como também ao crédito que emprestavam. Não se define simplesmente a um boicote à empresa que está na lista suja, eu acho que cabe a empresa, cada unidade produtiva do Brasil pode tomar sua própria iniciativa, todas as ações tomadas seja de corte, de pressão ou de contribuição, porque tem empresas que investem em uma que tenha problemas para que ela volta a operar sem problemas.
O importante é que essa informação engaje o setor produtivo e o setor financeiro brasileiro para que cumpram uma tarefa importante de ajudar a combater o trabalho escravo e ao mesmo tempo garantir a melhoria da qualidade dos negócios no Brasil.
Isso é fundamental, quando o sistema financeiro combate o trabalho escravo não está fazendo um favor ao trabalhador, ele está melhorando a qualidade dos negócios realizados no Brasil e a qualidade dos produtos brasileiros vendidos dentro e fora do país, ou seja estamos melhorando as nossas chances econômicas no exterior.
Vira e mexe algum governo tenta mudar, tenta diminuir, tenta atacar e reduzir o alcance da lista suja. É importante que a lista continue sendo defendida e continue sendo esse instrumento de transparência sem interferência dos governos, porque essa interferência resultaria no fim da lista. Afinal de contas o mundo já sabe que a gente usa trabalho escravo, eles querem saber o que estamos fazendo para combater e mostrar que estamos sim combatendo ao contrário de muitos outros países.
De acordo com o artigo 243 da Constituição Federal as propriedades rurais e urbanas de qualquer região do país onde forem localizadas a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário. Essa lei é aplicada?
A alteração do artigo aconteceu em 2014, após 19 anos de lutas no Congresso Nacional em torno do que ficou conhecido como a PEC do Trabalho Escravo, ela tramitou em diversas formas e diversos modelos O que acontece é que aprovamos a mudança no artigo, o que foi uma vitória para o movimento anti-escravista, uma vitória para os direitos humanos para a dignidade moral no Brasil, apesar de haver processos já tramitando e demandando o confisco das terras e de vários juízes e procuradores pedirem o interditamento de terras, essa emenda (81/2014) nunca foi regulamentada por pressão da bancada ruralista no Congresso Nacional. Por isso até agora não tivemos nenhum confisco ou a interdição de propriedades flagradas por trabalho escravo.
A gente espera que essa pressão reduza, ou que percebam que isso apenas contribui para reduzir os instrumentos de controles desse crime.
Diante da impunidade no campo, a falta de aplicação das leis e diminuição de fiscalização podemos dizer que o trabalho escravo compensa no Brasil?
É complicado dizer que a fiscalização está diminuindo. Podemos dizer que há uma pressão muito grande por parte da bancada ruralista, de pessoas diretamente interessadas, e não há também vontade política do governo em garantir uma estrutura para a fiscalização de contratação de pessoas, contudo ainda continua tendo fiscalização de trabalho escravo no Brasil, os números são semelhantes aos de outros anos de fiscalizações já ocorridas.
Podemos dizer que o governo não atua no sentido de promover e de tornar o combate ao trabalho escravo uma prioridade, apesar de todo mundo ser contra e repudiar, na prática não são todos os governos, políticos, empresas ou todas as organizações da sociedade que consideram o trabalho escravo um alvo prioritário.
Nós temos uma situação que é complicada hoje no Brasil, temos um governo que é refratário à efetivação de direitos humanos, na questão das leis trabalhistas, e isso enfraquece o combate ao trabalho escravo. Neste momento estamos numa trincheira tendo que manter as conquistas que tivemos em anos anteriores. O mundo está de olho no Brasil, durante anos evoluímos e criamos políticas que acabaram se tornando referência no combate ao trabalho escravo, mas essa vitrine está virando vidraça. Pode ser ruim para o Brasil caso haja retrocessos nas leis e nas medidas. Se a lista suja deixar de ter o seu caráter informativo, se for manipulada, se a fiscalização não conseguir resgatar trabalhadores, teremos um problema.
Como podemos pôr um ponto final na existência do trabalho escravo?
Eu acho que a gente consegue através de aplicações de políticas públicas eficazes a reduzir consideravelmente o trabalho escravo no Brasil e no mundo. A erradicação completa depende de mudanças não na questão do trabalho escravo, mas em mudanças da própria sociedade que vivemos. O capitalismo como tal tem algumas características que são bastante danosas, porque trabalho escravo não é uma doença, é um sintoma, é um indicador de que algo está errado nesse organismo, e o organismo é a sociedade.
Precisamos garantir que o mundo seja regido por regras mais justas e humanas e não apenas pela busca da lucratividade.
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Resgate de trabalhadores em Sandolândia, Tocantins. (Foto: Ministério do Trabalho)