Nas enchentes de BH, síntese de um projeto fracassado

Rio Leitão foi canalizado para dar espaço à urbanização e ao automóvel; mas sua força ainda ressurge em dias de tempestade como as da última semana. Catástrofes poderiam ser evitadas, caso tivéssemos aprendido a conviver com nossos rios

Por Roberto Andrés, em Outras Palavras

Na terça-feira, diversos rios de Belo Horizonte transbordaram, entrando em casas, bares, arrastando carros. Esses eventos serão cada vez mais frequentes com o aquecimento do planeta. Mas o stress ambiental que a ocupação humana gera vem de longe.

A história do córrego do Leitão ilustra bem isso.

“Era uma vez um leitão que parecia manso, mas era bravo e sujo. Quando enchia, entrava até na casa dos outros. O córrego do Leitão não respeitava nada. Hoje o Leitão está por baixo dessa nova e ampla avenida. Cenas de enchentes, você nunca mais verá.”

De onde é esta frase?

Esse texto é dito por um narrador de voz grave, estilo Cid Moreira, em um vídeo veiculado pela Prefeitura de Belo Horizonte na década de 1960. Naquele momento, a Prefeitura tocava o projeto NOVA BH 66, que preparou a cidade para o progresso rodoviário que viria.

Córregos foram cobertos; árvores, cortadas; os trilhos do bonde, sepultados; mais de um milhão de metros quadrados de vias, asfaltados. O córrego do Leitão foi transformado em um personagem malvado, sujo e feio, na publicidade da Prefeitura. Mas a história era outra.

Era uma vez um Leitão que serpenteava límpido por um vale repleto de árvores frondosas e sabiás. Margeava um arraial e desembocava no ribeirão Arrudas. Esse Leitão abrigava peixes, fornecia água para as pessoas e era lugar de brincadeiras infantis.

Um dia, apareceu naquelas paragens uma espécie de Lobo Mau: a comissão construtora da nova Capital de Minas Gerais. Esse pessoal não respeitava nada e logo começou a jogar esgoto no córrego, retificar seu leito em canais de concreto, construir nas suas áreas de cheia.

O Leitão seguiu sua vida de rio: diminuir na seca, vazar nas chuvas. Só que agora suas várzeas estavam ocupadas por prédios, casas, ruas. E suas águas estavam contaminadas pelo cocô dos moradores – na pressa de inaugurar a capital, deixou-se para depois a separação do esgoto.

Tudo isso levou às situações que o vídeo da Prefeitura expunha, mas a promessa de que “cenas de enchente, você não vai ver nunca mais” obviamente não se cumpriu. Não foram poucas as vezes que o córrego encheu, transformando a avenida Prudente de Morais em um piscinão.

Talvez o governo militar, um tipo de Lobo Mau com a espingarda do caçador, acreditasse que cobrir o córrego faria com que ele deixasse de existir. Com a impermeabilização do solo e a canalização dos afluentes, a água passou a chegar cada vez mais forte e rápida aos rios.

O desrespeito aos limites naturais na ocupação do território urbano foi a ponta de lança da destruição planetária. As águas sempre foram o termômetro desse modo de vida em que as outras espécies não cabem nas escolhas do modo de vida humano — da sociedade ocidental, diga-se.

Porque os povos ameríndios sempre souberam lidar com a natureza de modo muito mais inteligente. Agora, o aquecimento do planeta tornará esses eventos cada vez mais frequentes. A mudança de paradigma é para anteontem.

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