Por uma Filosofia Popular Brasileira

Ela precisa abandonar a ideia tola de neutralidade para perder-se na potência ainda amordaçada das ruas, rodar nas encruzilhadas, reivindicar a radicalidade das macumbas. E ser gira: mudança e festa; saber, corpo e rebeldia

Por Rafael Haddock-Lobo, na Revista Cultparceira editorial de Outras Palavras

Meu pai veio da Aruanda e a nossa mãe é Iansã.
Ô, gira, deixa a gira girar.

Em 1977, Roberto Gomes publicava seu primeiro livro, Crítica da razão tupiniquim, no qual apresentava algumas sérias provocações à produção filosófica brasileira. A importância do livro é tanta, embora aparentemente ignorada pela comunidade filosófica, que Darcy Ribeiro chegou a afirmar, quando do seu lançamento, que o Brasil teria voltado, afinal, a filosofar. Dois anos depois, em 1979, Gerd Bornheim, filósofo brasileiro e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), publicou o ensaio “Filosofia e realidade nacional”: defendia que uma filosofia dita brasileira precisa ser substantiva, e não meramente adjetiva. Isso quer dizer que não basta produzir uma filosofia em território nacional para dizer que no Brasil se faz filosofia brasileira.

Gerd Bornheim chama atenção de que é preciso algo mais para que façamos uma filosofia brasileira – fato para o qual o provocativo livro de Roberto Gomes já atentara antes. Ambos apontam que a filosofia precisa se debruçar sobre a singularidade de nossas questões (múltiplas, diversas, plurais) e abandonar as ideias de neutralidade e universalidade que, junto com a colonização, chegam em nossas academias de contrabando. Sem isso, não conseguiremos abandonar seu patamar elitista e ter algum contato real com aquilo que, das ruas, provoca o verdadeiro pensamento.

É nesse sentido que venho tentando afirmar que a filosofia brasileira, para ser digna desse nome, precisa ser uma filosofia popular brasileira. Uma filosofia produzida com base em uma experimentação efetiva dos saberes e culturas produzidos por aquilo que a elite chama de “popular”. É claro que esses saberes são elaborados independentemente da academia, mas meu intuito é, justamente, mostrar o quanto esta perde ao não se conectar com a potente produção que se encontra em andamento nas ruas.

Diante dessa pluralidade, ou dessa multiplicidade de vozes e sotaques, uma filosofia “brasileira” seria aquela que, sem clamor identitário ou nacional, assumiria perspectivas dessas vozes e desses sotaques, a fim de produzir um pensamento que emerja dessas experiências. Buscando reunir esses elementos, passeando pelos pensamentos dxs grandes filósofxs do Candomblé (como Mãe Beata de Iemanjá, Mãe Stella de Oxóssi, Omindarewa, Professor Agenor); de filósofxs afro-brasileirxs (como Sueli Carneiro, Abdias Nascimento, Lélia Gonzalez, Nego Bispo, Uã Flor do Nascimento, Renato Noguera, Marcelo Moraes); de filósofxs ameríndixs (como Davi Kopenawa, Ailton Krenak, Tonkire Akrãtikatêjê, José Urutau Guajajara, Sandra Guarani Nhandewa), acabo me encontrando com dois pensadores que, juntos ou separados, me ajudam hoje a recolocar essa constante provocação endereçada à filosofia. São eles Luiz Antonio Simas, um filósofo-historiador (das ruas), e Luiz Rufino, um filósofo-pedagogo (das encruzilhadas), cuja produção intelectual é preciosa para pensar uma vez mais o que seria uma filosofia brasileira, através justamente de uma relação imprescindível entre filosofia e macumba.

Eles nos chamam a atenção para o fato de que tal debruçar sobre a cultura popular brasileira só pode acontecer se o filósofo, abandonando seus escritórios, suas bibliotecas, e mesmo suas salas de aula, pegar seu caderninho de anotações, como fizeram tão bem Walter Benjamin e Guimarães Rosa, e sair dos muros das universidades e se dirigir às ruas, aberto aos encontros que as encruzilhadas propiciam. Esse movimento de saída da academia às ruas, que poderia ser compreendido como um giro ético-político tal como parece acontecer na filosofia ocidental contemporânea, parece ter uma configuração um pouco diferente quando se dá em nossas terras.

Como somos produtos da colonialidade, isto é, desde a colonização do pensamento até o assassinato de habitantes nativos, sequestro, escravização e estupros de negros, esse giro ético-político certamente se dá de modo diferente em terras tupiniquins: aqui é preciso promover o giro a partir daquilo que é, ao mesmo tempo, mais próprio, mais comum, mais banal, mas também mais escondido, mais temido, mas causador de vergonha, que, junto a Rufino e Simas, chamo de macumba. Se o termo pejorativo macumba é usado como ofensa, para diminuir os saberes das religiosidades africanas e ameríndias que se encruzam em nosso solo, devemos, seguindo a performatividade queer, potencializar tal termo para extrair dele o máximo, a fim de afirmar a relevância epistemológica, estética, ética e política das macumbas.

Macumba, então, passa a ser pensada na perspectiva de uma filosofia da cultura popular brasileira, com base não apenas nas práticas religiosas afro-ameríndias, como os candomblés, as umbandas, os batuques, os catimbós, as juremas, os tambores de minas, mas também das capoeiras, dos sambas de roda, dos fundos de quintal, dos jongos e de todas as rodas que promovem outras epistemologias e que, por serem de fato populares, isto é, originárias das ruas, são por isso mesmo revolucionárias.

Entretanto, um giro macumbístico como esse que ocorreria ao Sul, que é certamente tão ético e político como o ocidental ou mais, porque é também poético e epistemológico, não pode tão somente tomar a forma de um giro, no sentido de reviravolta, virada ou tantos outros nomes que se dá a um novo rumo de certo pensamento. Como me lembrou Rodrigo do Amaral Ferreira, se falo de giro macumbístico, o que preciso marcar é que tal giro se transforma em gira.

A gira, o feminino do giro, sua feição mulher, que, não apenas gira como o giro no sentido de mudar, desviar, promover deslocamentos, mas que também gira como a festa, a roda, o encontro que abre os caminhos e que é marcada pelo termo quimbundo njira. Falo, portanto, de uma gira macumbística da filosofia brasileira, gira através da qual a filosofia brasileira, antes apenas adjetivada como uma produção do território nacional, pode vir a encarnar a brasilidade das ruas, tornar-se substantivo produzido por corpos, músicas, sonoridades, cores, espíritos, cheiros e tantas outras coisas que jamais compreenderá nossa vã academia.

E esse “jamais compreender” é, aqui, imperativo, pois a ideia de compreensão, atividade unicamente mental, é o que impede a própria relação com o conhecimento macumbeiro, que precisa ser sentido pelo corpo como um todo, experimentado por sentidos e razões múltiplas para que, em vez de ser compreendido, prendido, apreendido, aprendido na forma de sujeito e objeto, ele seja incorporado, tateado, degustado, cheirado, ouvido, cantado. Só assim ele poderá baixar, ainda que sempre provisória e precariamente, assombrando-nos e sendo, tal conhecimento, muito mais o “sujeito” dessa relação.

Por fim, ao contrário de Hegel, que afirma que o Espírito se fenomenaliza por meio de diversas e subsequentes etapas arquitetadas pela Razão, afirmo que os espíritos baixam através de diferentes giras, sem ordem nem razão prévias, guiadas apenas pelo imperativo do “deixa vir quem tem de vir” – como dizia minha falecida mãe de santo Concheta Perroni. É por essa razão que essa gira macumbística força a filosofia a se constituir como uma espécie de “empirismo radical”, no qual a hipérbole da noção de experiência é tamanha que os próprios lugares de sujeito e objeto, de consciência e mundo, ou qualquer outro dualismo epistemológico, encruzam-se de tal maneira que não podemos mais definir com precisão os limites entre o dentro e o fora, mas apenas marcar o encontro no coração da encruzilhada.

E assim, só assim, a filosofia, em vez de barrar ou atrapalhar o que vem das ruas, pode deixar a gira girar – imperativo, enfim, de uma filosofia popular brasileira.

Rafael Haddock-Lobo é doutor em Filosofia pela PUC-Rio e professor do Departamento de Filosofia da UFRJ e da UERJ


Imagem: Cristian Cravo

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