Alan de Faria, UOL
Assim que a antropóloga Sandra Benites foi anunciada como a mais nova integrante da equipe do Museu de Arte de São Paulo, seu nome pipocou em diversos sites dedicados ao universo cultural. Pudera: com a nomeação, ela se tornou a primeira curadora indígena contratada por um museu do país.
“Sou muito tímida para lidar com a mídia. Nem pensei que teria destaque na imprensa, mas, para a minha surpresa, ocorreu justamente o contrário”, confessa ela, que é da etnia Guarani Nhandeva. “Acredito que a conjectura política atual, com rotineiros ataques aos indígenas e a outros grupos minoritários em nossa sociedade, tenha colaborado para essa informação ter chamado tanta atenção.”
A conversa de Universa com Sandra ocorreu em 24 de janeiro, um dia após o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ter declarado, em um vídeo no YouTube para anunciar a criação do Conselho da Amazônia, que “cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós”. Sentindo-se ofendida com a fala, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) protocolou uma representação na Procuradoria-Geral da República (PGR) contra ele pelo crime de racismo.
“Ele é o tipo de brasileiro que generaliza todas as questões, que crê que todos devem pensar e agir igual a ele, quando, na realidade, o mundo avança justamente na diversidade”, diz Sandra sobre o presidente. Para ela, embora seja complicado confrontá-lo, “nossos parentes não têm medo, e seguimos resistindo para contar nossa própria história e manter nossa memória viva”.
Mais arte afrodescendente, indígena e feminina
Chamar a atenção para a cultura, as lutas e as conquistas indígenas será um dos principais desafios de Sandra como curadora adjunta de arte brasileira do Masp.
Embora já comece a atuar na função neste ano, vindo a São Paulo quando for necessário para reuniões e outras atividades — atualmente mora no Rio de Janeiro —, será em 2021 que ela terá papel fundamental nas exposições que a instituição paulistana irá lançar, visto que toda a programação do museu se dedicará às histórias indígenas ao redor do mundo.
“Não será um trabalho fácil. No Brasil, segundo dados do IBGE de 2010, há cerca de 900 mil indígenas divididos em 305 etnias e que falam 274 línguas. Há ainda aqueles que residem em espaços urbanos. A minha grande preocupação é sobre como criar projetos que abarquem a realidade de todos esses povos”, afirma a curadora.
Sandra confessa que, a princípio, pensou em não aceitar o convite feito por Adriano Pedrosa, diretor-artístico do Masp — a primeira visita dela ao prédio localizado na avenida Paulista ocorreu em 2017, quando foi chamada para ser uma das palestrantes de um seminário promovido pelo museu. “Ao consultar meus amigos, eles disseram que eu deveria, sim, assumir o trabalho. Já era tempo de uma das nossas também ocupar este lugar”, declara.
Para Pedrosa, a contratação de Sandra e os eixos temáticos anuais da programação colaboram para a possibilidade de encontrar narrativas sobre ou em torno da arte que sejam, elas mesmas, mais diversas, inclusivas e plurais.
“Em 2014, não havia artistas afrodescendentes ou indígenas na mostra do acervo. O número de mulheres era reduzido”, afirma ele. “Hoje, depois de um ano inteiro dedicado às Histórias Afro-Atlânticas, em 2018, a primeira fileira de obras nos cavaletes de vidro do segundo andar é toda composta por trabalhos de artistas afrodescendentes doados nos últimos anos”, conta. “Do mesmo modo, depois de ‘Histórias Feministas’, em 2019, conseguimos adquirir 296 obras feitas por artistas que se identificam com o gênero feminino.”
Inspiração na avó materna
Sandra pretende sugerir aos projetos expositivos do Masp muito do que aprendeu com seus familiares, na aldeia Porto Lindo, no Mato Grosso do Sul, onde nasceu há 46 anos — completados amanhã, dia 6. Promete, por exemplo, muito canto e muita dança. Segundo a pesquisadora, essas duas tradições, usadas pelos indígenas independentemente do momento sociopolítico, servem de instrumentos de transformação e colaboram no entendimento de questões próprias da sociedade.
Ela deve também utilizar vários dos ensinamentos de sua avó materna, que exerceu forte influência em sua formação. “Não conheci o meu avô materno, que morreu quando eu tinha apenas um ano de vida. Ele foi o primeiro cacique da aldeia, era um líder religioso também. Assim, quando ele faleceu, minha avó meio que assumiu o seu papel”, conta Sandra. “Ela dizia: ‘Somos seres humanos que têm que aprender a abraçar o mundo, pois o mundo não abraça você’.”
Foi por causa dessa ideia que Sandra, apesar de todas as dificuldades, predispôs-se a aprender português na escola que havia na aldeia. Vale lembrar que, naquela época, só se ensinava a “língua dos brancos” no colégio — atualmente, o conteúdo, por lei, deve ser bilíngue, direito assegurado pela Constituição de 1988. Querer entender o mundo que a rodeava, muito além da aldeia, a motivava.
Sandra casou-se com um guarani aos 16 anos e teve de interromper momentaneamente seus estudos quando, com o então marido (o casal está separado desde 2012) e três dos quatro filhos (o caçula ainda não nascera), mudou-se para Aracruz, no Espírito Santo, no ano 2000.
Por lá, teve a oportunidade de voltar à cadeira de uma escola para terminar o ensino fundamental e ainda fazer um curso de magistério direcionado para professores guaranis. Entre 2004 e 2012, deu aulas para séries iniciais e atuou como coordenadora pedagógica na Secretaria de Educação em Maricá, no Rio, auxiliando escolas indígenas.
Em tempo: os quatro filhos de Sandra se graduaram ou estão na universidade. Enquanto as meninas fizeram gestão ambiental e etnomatemática, os meninos — o mais novo tem 19 anos — estudam atualmente engenharia ambiental.
Apoio das lideranças indígenas para estudar
A vontade de instruir-se ainda mais a levou para mais longe: Florianópolis. Na Universidade Federal de Santa Catarina, formou-se, em 2015, em Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica. “Meu ex-marido não quis me acompanhar nessa jornada, criando um dilema para mim — afinal de contas, eu teria que ficar algumas semanas afastada dos meus filhos, sobretudo do mais novo, que tinha apenas 10 anos”, recorda.
Ela, então, consultou as lideranças indígenas, que apoiaram o seu desejo de continuar estudando. “Ia duas a três vezes por ano à UFSC, onde ficava cerca de 35 dias em cada temporada. Na turma, éramos em 70 indígenas, mas somente 15 mulheres”, conta. O número reduzido, para ela, devia-se à questão da maternidade, pois muitas mulheres paravam de frequentar as aulas por não terem com quem deixar as crianças. Seus filhos ficavam com o pai.
Em 2017, Sandra foi convidada para ser uma das curadoras da exposição “Dja Guata Porâ: Rio de Janeiro Indígena”, no Museu de Arte do Rio de Janeiro. Foi sua primeira experiência no mundo da arte. Em 2020, ela fará parte da equipe responsável pela mostra “Sawé”, sobre lideranças políticas indígenas, que também destacará o papel das mulheres na luta pela defesa dos territórios. A previsão é que seja aberta no segundo trimestre, no Sesc Ipiranga, em São Paulo.
Paralelamente aos trabalhos no Sesc e no Masp, Sandra toca um doutorado em Antropologia Social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio Janeiro, onde tem estudado como o povo guarani enxerga o corpo feminino. Por lá, ela já havia defendido sua tese de mestrado: “Viver na Língua Guarani Nhandeva (mulher falando)”.
“Na Academia, há muitas pesquisas com a assinatura masculina. Quero, no meu ensaio, retomar as histórias que a minha avó contava, ouvir as mulheres das aldeias sobre as questões femininas”, afirma Sandra. “Quero transformar esses depoimentos em um documento, registrá-los para futuras consultas e, assim, manter viva a história feminina de nosso povo.”
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Imagem: Sandra Benites é da etnia Guarani NhandevaImagem: Divulgação