Após 15 anos da morte de Dorothy Stang, a impunidade ainda persiste em Anapu

Por Maria Fernanda Ribeiro, Amazônia Real

Palavras como generosidade, renúncia, doação, dignidade, solidariedade, sacrifício, coragem, justiça e amor foram as mais proferidas durante as celebrações que marcaram os 15 anos da morte da missionária Dorothy Stang, aos 73 anos, no município de Anapu, no Pará. Irmã Doti, como era conhecida, foi assassinada por dois pistoleiros e seu corpo atravessado por seis tiros enquanto caminhava por uma estrada de terra do PDS Esperança, Projeto de Desenvolvimento Sustentável que ela criou para assentar famílias pobres da Transamazônica. Era uma manhã de 12 de fevereiro de 2005.

Os convidados, mulheres e homens do campo em sua maioria, chegaram cedo para acompanhar a missa daquela que defendia a causa do trabalhador e pagou com a vida seu amor pela floresta. Mas, o clima não era de tristeza, e sim de luta e resistência de quem colheu a semente que Dorothy não apenas plantou, como se tornou.

“Nunca em Anapu um fazendeiro morreu pelas mãos de trabalhadores. Nunca”. Esses eram os dizeres de um dos cartazes que decoravam o Centro de Formação São Rafael, o local escolhido para relembrar os feitos da missionária americana e de um legado que só cresce. É neste local onde ela também está enterrada. Sua morte se tornou um símbolo da luta por reforma agrária e Anapu é internacionalmente conhecida por ser o município onde ela foi assassinada.

A missionária norte-americana da Ordem das Irmãs de Notre Dame de Namur, nascida em Dayton, Ohio, chegou ao Brasil em 1966 e batalhava por um modelo de assentamento que incomodava os grandes detentores de terras e grileiros. Pioneira no conceito de sustentabilidade na Amazônia, ela criou os Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS), que tinham como objetivo a garantia de renda para famílias pobres, desde que elas preservassem a floresta. As primeiras ameaças começaram a surgir no ano de 2000 e proteção policial foi sugerida a ela, que recusou, a não ser que a segurança fosse uma garantia para todos. O que não era o caso.

Antonia Silva Lima, 64 anos, dona Tonica, lembra bem do tremor que sentiu nas pernas ao receber a notícia da morte da amiga. Seguidora fiel de Dorothy, ela aproveitou os 15 anos da morte para a homenagear com a composição de uma música, que é no fundo um grito de resistência. “Com ameaça ou sem ameaça, eu estou na luta. Pela justiça da luta, eu não fujo”, diz parte do refrão.

As irmãs Jane Dwyer e Katia Webster, que assumiram a responsabilidade de continuar o trabalho de Dorothy pela mesma ordem missionária católica, cuidaram dos preparativos da solenidade, que lembrou não só da amiga missionária, mas de todos aqueles que sofreram e sofrem com a violência e ameaças escancaradas em Anapu em um conflito por terra e pela terra que parece não ter fim.

“A situação hoje é pior do que quando a Dorothy morreu. Não tem como lutar muito porque não tem apoio e está sendo dito publicamente que quem tem dinheiro para comprar é o dono da terra. A gente sabe de ameaças por vídeos que circulam em mensagens, de reunião com fazendeiros. Apesar de a gente não ter relação com esses eles, cria um ambiente de medo e de insegurança. Mas a vida é uma ameaça e um risco e da luta não fujo”, afirma irmã Jane.

De 2005 a 2019, de acordo com levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT), foram 23 pessoas assassinadas, somente em Anapu, entre lideranças, sem-terra, assentados e trabalhadores rurais. No entanto, o modus operandi dos últimos assassinatos mudou no que parece ter como intuito descaracterizar as execuções para que elas não sejam configuradas como conflitos por terra e sim como crimes comuns: elas agora acontecem pelas vias públicas cidade. Os nomes de todos esses mártires estão estampados em uma cruz vermelha fincada ao lado do túmulo de Dorothy.

Irmã Jane sabe explicar como e por que o nome de cada um deles foi parar ali. Segundo ela, há ainda os casos de pessoas e famílias inteiras que não suportaram as ameaças e foram embora de suas terras. Não é o caso de Tonica, que conta já ter sido ameaçada diversas vezes, sendo a última na semana passada, quando soube que um áudio da rede social Whatsapp a alertava a não voltar para casa porque seria melhor para ela, mas ela voltou.

“Quando mataram Dorothy achavam que estavam cortando o trabalho dela pela raiz e que nós todos iríamos embora. Mas não nos acovardamos, não nos amedrontamos e nasceram muitas Dorothy”. Tonica é moradora do PDS Esperança, localizado às margens da rodovia Transamazônica.

Dom João Muniz Alves, bispo da Diocese do Xingu, foi um dos presentes na cerimônia. Segundo ele, Dorothy está em toda a história do povo de Anapu, da saúde à educação, mas, sobretudo, deve ser celebrada pela criação dos PDS’s.

“Ela é um ícone, uma mulher sensível ao sofrimento do povo e que serve de esperança, sobretudo num momento de tantas crises que o nosso país está passando. A gente espera que fazendo memória mais pessoas possam assumir as lutas com coragem, assim como ela assumiu. Infelizmente, a Justiça aqui é lenta e o povo se sente desprotegido”, diz ele.

Assim como Dorothy, as irmãs Jane e Kátia apostam na filosofia da floresta em pé e da agricultura familiar como projeto de coletividade e bem-estar para as comunidades carentes, que terão o que comer e onde viver. “A agricultura familiar é o que dá comida para a população brasileira. Quem vive em comunidade e trabalha na roça não pede esmola, não passa fome, não dorme no meio da rua, ele produz tanto que consegue compartilhar”, dizem.

No entanto, o Pará é um estado conhecido por ser um dos principais motores do desmatamento da Amazônia. Segundo dados do Imazon (Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia), organização independente de monitoramento de desmatamento na região, foram detectados 227 quilômetros quadrados de desmatamento na Amazônia Legal em dezembro de 2019, sendo o Pará o grande vilão, abocanhando 47% das estatísticas. Em levantamento anterior, com dados de novembro de 2019, dos 354 quilômetros quadrados desmatados, o Pará foi responsável por 58% e Anapu figurou em quarto lugar entre os dez mais críticos. E se sabe que de 70% a 80% de tudo que é derrubado na floresta, está atrelado à pecuária ilegal.  

Ameaçados e sem proteção

Relatos de trabalhadores que se sentem desprotegidos em Anapu é o que não faltam pela região. Erasmo Alves Teófilo, presidente da Cooperativa Agricultores Volta Grande do Xingu, é o caso mais recente. Erasmo é uma das vozes que tentam silenciar por conta de sua luta em defesa das famílias de trabalhadores rurais que sofrem com a violência e invasões de grileiros, madeireiros e fazendeiros em áreas destinadas à reforma agrária. Ele é cadeirante, milita no movimento social há dez anos e sente medo.

Erasmo defende o direito de 54 famílias de trabalhadores que vivem em comunidades na Gleba Bacajá, disputada por um fazendeiro. “Gado não pode valer mais do que gente! ‘Ah, mas ali cabe 2000 cabeças de gado’, mas também cabe tatu, paca, anta, onça e gente…”, critica Erasmo Teófilo.

Houve também a prisão, em março de 2018, do padre Amaro José Lopes, sucessor de Dorothy na CPT em Anapu. Também ameaçado de morte por defender famílias sem terra, ele foi acusado por suspeitas de crime de assédio sexual, incentivo à invasão de terras e a assassinatos, extorsão, constrangimento ilegal e lavagem de dinheiro, em um inquérito policial considerado frágil e inconsistente, cujas acusações parecem ter sido feitas para calá-lo. Ele ficou três meses preso.

Em novembro de 2019, a principal testemunha de defesa do processo contra o padre Amaro foi assassinada em Anapu, em uma estrada vicinal enquanto trabalhava de moto-taxista. Márcio Rodrigues dos Reis, 33, era casado e pai de quatro filhas. Nas celebrações de Dorothy, doações de alimentos foram recolhidas para ajudar a família. Uma das filhas, de um ano e meio de idade, reconheceu o pai entre as fotos com os rostos dos trabalhadores assassinados.

Andrade Silveira, o padre Joca, foi quem assumiu a paróquia Santa Luzia, no lugar de Amaro. Vindo do Rio Grande do Sul, ele afirma que apesar de serem 15 anos da morte da missionaria, a luta dela permanece atual, com mortes e perseguições. “O que aconteceu com ela não é isolado e somos o país que mais mata defensores no mundo, além da criminalização de líderes e defensores do meio ambiente. É um orgulho assumir esse trabalho, mas também pode ser uma angústia”, afirma.

A celebração terminou com um almoço comunitário e o plantio de 53 árvores.

Assassinos livres

De acordo com o Ministério Público do Pará, a morte da missionária foi encomendada pelos fazendeiros Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida, e Regivaldo Galvão, o Taradão. No total cinco pessoas foram envolvidas e julgadas pelo assassinato. Amair Feijoli da Cunha, o Tato, foi intermediário do crime. Rayfran das Neves Sales e o comparsa, Clodoaldo Carlos Batista, foram os executores de Dorothy. Taradão é o único que ainda cumpre pena em regime fechado. Ele foi preso no ano passado, 14 anos após o assassinato.

O fazendeiro Vitalmiro de Moura foi condenado a 30 anos como segundo mandante do crime. Amair foi condenado a 17 anos e Clodoaldo a 18 anos de prisão. Rayfran, autor dos seis disparos contra irmã Doti, foi condenado a 7 anos de prisão. Todos chegaram a cumprir pena, mas tiveram direito à progressão e ganharam a liberdade do regime fechado, gerando um clima de impunidade até os dias atuais em Anapu.

Imagem: De 2005 a 2019, de acordo com levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT), foram 23 pessoas assassinadas na região por causa dos conflitos no campo – (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)

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