‘O medo não faz nada. Precisa coragem’: a saga de 46 anos para um povo xavante voltar à própria terra

Patrícia Cornils, The Intercept Brasil

“NASCI NA ALDEIA UMRÉRURÉ, antes do contato.” Assim Carolina Rewaptu começa a me contar sua vida. Ela nasceu em 1960, quando os xavante Marãiwatsédé tsipodo, “povo de Marãiwatsédé”, começavam a enfrentar o cerco dos brancos. Marãiwatsédé foi o último grupo xavante contatado pelos brancos, porque vivia ao norte do Mato Grosso, na fronteira com o Pará. Em pouco tempo, o significado de “contato” – o contato com os brancos – desabou sobre suas cabeças. Carolina tinha seis anos quando três aviões da Força Aérea Brasileira, a FAB, pousaram na aldeia onde vivia. Pessoas que falavam uma língua diferente da sua disseram que mais brancos viriam para ocupar a terra. Que eram muitos. E quem ficasse seria massacrado.

Embarcaram todos, sem seus pertences, sem saber para onde, sem saber por quanto tempo. Com medo, embarcaram sem tempo de entender, juntos, o que estava para acontecer. Em quatro ou cinco viagens, a FAB removeu cerca de 260 pessoas – os números não são precisos; não há sequer uma lista conhecida dos nomes de quem foi embarcado – para uma missão salesianana Terra Indígena São Marcos, terra de outro grupo xavante, distante 457 quilômetros.

Na chegada a São Marcos, a comunidade indígena foi desmantelada. Os missionários separaram as famílias, mandaram crianças para o internato e os adultos foram distribuídos pelas casas da comunidade, sem saber onde estavam os demais. Nos dias seguintes, começaram a adoecer. Havia uma epidemia de sarampo em São Marcos e, em três semanas, mais de 80 pessoas morreram. Alguns textos falam em 83 mortos. Outros, 85.

Com a expulsão, começou também a luta do povo de Marãiwatsédé para retornar à sua terra de origem. Uma saga que durou 46 anos. Retomar a terra foi a maneira de os sobreviventes restituírem a verdade e a justiça possíveis num mundo agora determinado pelos outros – nós, os waradzu, os “brancos”.

Carolina sobreviveu. É tsahiwe, “guerreira”. Ela também é dahoimananhiptete, “persistente”. Para defender seu povo e manter sua cultura, aprendeu português e superou o medo de se expor e de falar para os Xavante e para os waradzu. Mulheres xavantes falam principalmente dentro de suas casas. Carolina fala em todos os lugares. Ela é cacica de uma das sete aldeias da Terra Indígena Marãiwatsédé e uma das poucas Feminino de cacique de uma tribo.do povo Xavante. Aprendeu a ler para ensinar seus camaradas. “O medo não faz nada. Precisa coragem”, é uma das coisas que Carolina nos diz várias vezes.

Graduada em Licenciatura pela Universidade do Estado do Mato Grosso, a Unemat, foi professora e diretora da escola da Terra Indígena Pimentel Barbosa, onde coordenava professores xavantes, todos homens. Quando precisou escolher entre ser ela mesma ou fazer o que se espera tradicionalmente de uma mulher, decidiu não abrir mão de estudar.

Carolina assumiu um papel público reservado a homens também entre o povo Xavante. Não desistiu. Mas ainda ouve, quando sua liderança incomoda, pi’õ, “mulher”. Nem sempre responde. E segue.

Ao contrário da Odisseia grega, sua narrativa não tem só um protagonista nem termina com o retorno para casa. Começou antes de ela nascer e continuará depois de sua morte. É a história dos A’uwe Uptabi, nome que os Xavante dão a si mesmos e que significa “o povo verdadeiro”. São os A’uwe Uptabi de Marãiwatsédé, ou simplesmente A’uwe. Aqueles que conseguiram voltar porque seu legado é a memória da terra. “Os velhos falavam do conhecimento e das memórias do território sagrado de Marãiwatsédé. Eles deixaram tudo para nós. Nunca deixaram [de contar] essa história”, diz Carolina.

Quando os waradzu vieram

A tentativa de genocídio dos xavante de Marãiwatsédé começou antes de sua remoção em aviões. No início dos anos 1960, posseiros e empreendimentos econômicos chegaram à região e se tornaram frequentes as “caçadas” aos índios para aterrorizá-los, expulsá-los de suas terras e tomá-las. Adultos foram mortos nas matas e deixados ou queimados ali mesmo. Pessoas morreram ao recolher roupas contaminadas por doenças ou comida envenenada deixada pelos brancos. Crianças desapareceram, aldeias foram invadidas e seus habitantes, assassinados. A palavra “homicídio”, porém, nunca é usada para descrever esse processo. A palavra “justiça” também não é sequer considerada, até hoje, em relação a essas mortes. A história registrada é a dos colonizadores. Os índios, no entanto, lembram-se bem de como as coisas aconteceram.

Com assassinatos e ameaças cada vez mais intensos, esses xavantes decidiram se concentrar em uma aldeia próxima à Fazenda Suiá-Missú, recentemente instalada no local. Ali, acreditavam, estariam menos vulneráveis. Mas os ataques assumiram outra modalidade. Em uma região com pouquíssima mão de obra disponível, eles foram usados para derrubar matas, construir pistas de pouso para aviões, fazer roçados, formar pastos. Sem receber nada a não ser facas, alguma roupa e alguma comida, trabalharam em condições análogas à escravidão até os donos do empreendimento considerarem que já não eram úteis.

Então, foram removidos para um local a 60 quilômetros da sede, onde não havia condições de caça nem de plantio, pois as terras ficavam inundadas oito meses ao ano. Mais gente morreu. Depois de um ano e pouco, decidiram voltar para perto da sede da fazenda. Já não eram bem-vindos. Em 1966, chegaram os aviões da FAB, em um acordo até hoje mal esclarecido entre os proprietários da fazenda, o governo brasileiro e os padres das missões salesianas.

“Com o último embarque acabou tudo, acabou a autonomia dos A’uwê de Marãiwatsédé. Aqui é o fim, é o fim das vivências, das práticas rituais, dos grupos de jovens, das pinturas, das expedições de caça, da vivência na mata densa. Passamos a contar o tempo do waradzu, a estar no espaço do waradzu, a traduzir o nosso mundo para ser entendido pelo waradzu. O tempo, quando aconteceu a nossa expulsão e a nossa retomada, passou a ser vigiado pelo tempo da justiça do waradzu. O espaço ou território da terra indígena, das fazendas, das cidades, ou seja, dos waradzu, passaram a fazer parte das nossas vidas. E precisávamos entendê-los cada vez mais para negociar nossa sobrevivência”, escreve Cosme Rite, filho mais velho de Carolina, em sua dissertação de mestrado na Universidade de Brasília.

As pessoas que morreram na missão salesiana foram enterradas em uma vala comum. Seus parentes se lembram da carreta onde os corpos eram amontoados, do trator que a puxava e os empurrava para dentro da vala. Carregam, além da perda, a marca de um desrespeito profundo que não poupou nem os mortos. Nenhum rito de sepultamento, nenhum túmulo.

O primeiro colonizador

Este é o momento de voltar a 1966 e falar de Ariosto da Riva. Todo o povo A’uwe Uptabi de Marãiwatsédé conhece esse nome. No mundo dos brancos, Da Riva é conhecido como “o último bandeirante”, desbravador, fundador de cidades no Mato Grosso (Naviraí, Alta Floresta, Paranaíta, Apiacás). É uma espécie de herói do progresso. Entre os Xavante, ele é lembrado como um predador.

Ariosto da Riva era dono da Fazenda Suiá-Missú. Comprou do governo do Mato Grosso uma imensidão de terras na região de Marãiwatsédé, em áreas que o próprio governo e sertanistas haviam recomendado demarcar como terras indígenas. Em termos atuais, o governo do Mato Grosso privatizou a terra xavante para Ariosto da Riva.

No final da década de 1950, a família Ometto, de empresários do setor açucareiro em São Paulo, adquiriu participação majoritária no empreendimento de Da Riva, com uma porção de 685 mil hectares. Para dar ideia do tamanho, o Distrito Federal tem 577 mil hectares. Com os recursos da venda, Da Riva criou o empreendimento de colonização privada que batizou de Alta Floresta.

“Primeiro colonizador”, diz Carolina, que conheceu mais de uma geração de colonizadores, sobre Da Riva. “Falava que era herói porque ocupou Marãiwatsédé. Mas este foi um crime dele.”

Removidos os índios, os “heróis desbravadores” se beneficiaram diretamente de sua ausência, não só pela propriedade e ocupação das terras, mas também com incentivos governamentais e financiamentos concedidos pela Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia, a Sudam.

Em 1984, 18 anos depois da expulsão de suas terras, um grupo xavante de Marãiwatsédé se reuniu na Terra Indígena Pimentel Barbosa, onde fundaram a aldeia Água Branca. Ali, começaram a se reorganizar e a articular politicamente a volta para as terras ancestrais de seu povo. Em 1992, a Funai instalou um grupo de trabalho para identificar suas terras. Sob a coordenação das antropólogas Patrícia de Mendonça Rodrigues e Iara Ferraz, o grupo estabeleceu uma área de 200 mil hectares para a Terra Indígena Marãiwatsédé.

Ao saber que Marãiwatsédé seria restituída a seus habitantes originais, políticos locais, articulados com o governador do estado do Mato Grosso e com a diretoria da Agip no Brasil, decidiram aplicar sua própria, ilegal e antiquíssima política indigenista: impedir os A’uwe de voltar e tomar, eles mesmos, a sua terra.

Em 1998, a Terra Indígena Marãiwatsédé foi homologada pelo governo federal com 165,24 mil hectares, mas estava ocupada por fazendeiros. Os invasores iniciaram uma guerra jurídica e, com isso, adiaram a volta dos Xavante. Mas não os pararam. Em 2003, um grupo de guerreiros, com apoio de xavantes de Parabubure, São Marcos e Kuluene, saiu de Pimentel Barbosa para retomar a terra.

Em uma ponte, encontraram uma barreira de fazendeiros e posseiros armados que contavam com o apoio do então prefeito de Alto Boa Vista. “As pessoas que queriam impedir a retomada estavam acampadas na ponte”, ela se lembra. “Estavam armados, tinham também facões, foices. E nós sem nada. Ficamos frente a frente. Tivemos coragem”. Houve pontes queimadas para impedir a passagem dos índios, barreiras e tiros. Houve índios perseguidos e ameaçados de morte quando saíam do acampamento e um atentado contra a vida de um dos filhos de Damião Paridzané.

Pense um pouco no que é viver à beira de uma estrada de terra, da terra vermelha do Mato Grosso, usada por caminhões de gado, soja, milho. Resistiram durante dez meses, ameaçados pelos invasores e em condições precárias. Três crianças morreram e foram enterradas bem nos limites da terra. Em agosto de 2004, depois de uma decisão unânime da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal pelo direito de retorno dos Xavante à terra, eles decidiram sair do acostamento. Enganaram os seguranças de uma das fazendas estabelecidas na terra indígena e conseguiram entrar em uma pequena parte, 10% do território homologado. A essa altura, a invasão iniciada pelos fazendeiros e posseiros em 1992 ocupava os outros 90%.

Foram necessários 20 longos anos desde o anúncio, pela Agip, da devolução das terras aos A’uwe Uptabi e 14 anos desde a homologação da Terra Indígena Marãiwatsédé até que, no final de 2012, o governo federal realizasse a desintrusão.

Em 2012, ao fazer o levantamento dos não indígenas que viviam em Marãiwatsédé, o Ministério Público Federal constatou a presença de um grupo de 22 grandes posseiros – incluindo prefeitos, ex-prefeitos, vereadores, pastores, empresários e um desembargador. E mesmo depois de retirados de lá, políticos da região organizaram várias tentativas de reinvasão em 2013, 2014 e 2016.

O tempo dos brancos deixou sua marca sobre o território. De acordo com estudos realizados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o Inpe, até 2011 mais de 70% da vegetação nativa dentro da área demarcada havia sido devastada, fazendo de Marãiwatsédé uma das terras indígenas mais degradadas do Brasil.

‘Não me reconheço em nada. Ali eu morri’

Em 2018, quando nos encontramos para a entrevista, Carolina mostra os pés de milho das hortas de Madzabdzé e eu compreendo que eles estão ligados a tudo ali. Ao tempo da aldeia, aos bolos de milho de casamentos e lutos, aos rituais que marcam o crescimento das crianças, à chuva, aos animais que dançam na floresta – ela me contou que eles dançam.

Já o Marãiwatsédé tsipodo sabe que não se vive sem a mata e que sem eles a mata não vive. “Ali não existo mais”, diz um ancião indígena sobre áreas em que o cerrado foi transformado em campos de soja a perder de vista. “Não me reconheço em nada. Ali eu morri”.

Carolina aprendeu com as mulheres a encontrar sementes, cuidar delas e plantá-las. Aprendeu o calendário tradicional de coleta e de plantio. Desde a retomada de Marãiwatsédé, seu principal trabalho é recriar o mundo. Replantar não só as hortas, mas as árvores e as matas.

Na cultura A’uwe, as mulheres exercem o papel principal na , a “casa”. Cuidam das hortas, da coleta de frutas, mel, batatas, carás e inhames, plantas medicinais, de produtos do cerrado para artesanato. Sabem dos resguardos alimentares necessários para as mulheres grávidas, para os jovens que se preparam para rituais, para as pessoas mais velhas. Sabem de plantas para fortalecer os bebês, sabem preparar os alimentos tradicionais. E toda essa rotina das mulheres é acompanhada pelas crianças. É assim que elas aprendem.

Mais de meio século depois, 56 anos desde a expulsão, os Marãiwatsédé tsipodo nunca receberam, por parte do Estado brasileiro ou dos agentes privados, nenhum tipo de compensação ou reconhecimento da tentativa de genocídio. Com a chegada de Jair Bolsonaro à presidência, em 2018, voltaram a ser ameaçados. O deputado federal mais votado da história do Mato Grosso, Nelson Barbudo, do PSL, bolsonarista, e a prefeita de São Félix do Araguaia, Janailza Taveira Leite, do Solidariedade, gravaram, no final de novembro de 2018, um vídeo em que prometem “montar um processo” para “vencer a causa do Posto da Mata”. Sequer usam o nome do lugar: Terra Indígena Marãiwatsédé.

*No livro “Heroínas desta história – Mulheres em busca de justiça por familiares mortos pela ditadura”, junto ao depoimento de Carolina, são retratadas outras mulheres de diferentes segmentos: camponesas, indígenas, operárias, intelectuais, militantes de organizações políticas e de movimentos de bairro e também mulheres de classe média que nunca haviam lutado antes da morte dos seus. As histórias evidenciam faces menos conhecidas da repressão e mostram que os braços armados do estado atingiram inúmeras famílias e grupos sociais de diferentes formas e por diferentes motivos. À frente de todas elas, uma mulher que não se calou para seguir na luta por memória, verdade e justiça. 

Imagem: O perfil da cacica Carolina Rewaptu escrito por Patrícia Cornils é um dos 15 que compõem o livro “Heroínas desta história – Mulheres em busca de justiça por familiares mortos pela ditadura”, organizado por Carla Borges e Tatiana Merlino e editado pela Autêntica e o Instituto Vladimir Herzog. A obra, a ser lançada em março, apresenta a trajetória de vida e de luta de 15 mulheres que perderam familiares por meio da violência de estado durante a ditadura militar (1964-1985) – Foto: Mariana Leal/Instituto Vladimir Herzog

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

um × 1 =