Do Ibase
A nossa maior expressão popular, festiva e dançante de identidade e vitalidade, o carnaval, é uma fortaleza cultural e política que cimenta o essencial do que nos une como povo e nação. Mostrou que está muito vivo e tem possibilidades de ser mais do que uma festa. O carnaval nos mostra o que somos e o que não somos, mas sobretudo o que podemos ser: um povo alegre e feliz, de bem consigo mesmo. A licença de extravasar e romper, misturando alegria e crítica, sem vergonha ou medo de ser feliz, mesmo momentaneamente, vira modo de ser e agir. Isso apesar da intolerância com a exuberante diversidade brasileira, a viseira estreita e o moralismo excludente oficialmente assumido na política e praticado como censura à irrestrita liberdade de expressão no nosso modo de fazer política que emana de Brasília. Não dá para controlar a liberdade do carnaval. A gente não precisa estar na rua ou se sentir carnavalesco para viver o clima, ele nos invade, toma conta e dita o ritmo. Grande respiro e refresco energético para o que pode vir pela frente.
E temos muita coisa pela frente! Politicamente, estamos cada vez mais perdendo sentido e rumo do viver democraticamente. Sorrateiramente, exatamente durante os dias de carnaval, o capitão presidente deu eco a um desabafo autoritário de um dos numerosos generais que o cercam no Palácio, conclamando via redes sociais “seguidores” a se manifestar contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF), vistos como entraves para implantar seu projeto de poder de populismo autoritário. A coisa em si é gravíssima pela afronta que representa à institucionalidade democrática de pesos e contrapesos, representada pela divisão e autonomia de poderes executivo, legislativo e judiciário. Ao mesmo tempo, é um teste à resiliência institucional ainda existente, que nos permite não estar plenamente vivendo um regime ditatorial. Mas, até quando?
Tenho pensado muito sobre o fosso que se criou e vem se alargando entre o que se passa na esfera do “oficialismo” e o que acontece nos territórios em que vivemos, especialmente daquela maioria condenada ao “sacrifício” cotidiano. Num quadro assim, o que significa e representa para esta cidadania a democracia institucional em termos substantivos? Sim, ainda temos presidente, governadores, prefeitos, senadores, deputados federais e estaduais e vereadores legitimados pelo voto. Mesmo apequenado pela perda de visão estratégica, o STF mantém sua autonomia relativa. E novas eleições locais estão agendadas. Mas tal rito basto para caracterizar uma democracia de fato?
Democracia é um pacto institucional e constitucional de convivência, compartilhamento e fortalecimento do que é comum entre todas e todos em meio às contradições das estruturas e relações sociais concretas, das vivências, interesses, visões, relações de forças e lutas, que emergem em cada momento histórico. Não é um projeto em si mesmo, mas é base para transformar oposições, discordâncias, conflitos, abertos ou não, de forças de destruição mútua e domínio absoluto de vitoriosos em forças virtuosas de construção de soluções possíveis, em base a princípios éticos compartilhados. A busca da maior justiça ecossocial possível, como defino o desafio democrático de dimensões planetárias, está no centro deste referencial ético que a própria humanidade, com seus povos e culturas, foi destilando, como conquistas e marcos históricos civilizacionais. Sem dúvida, a expressão legal disso, na Constituição, nas leis e normas complementares, na institucionalidade, é indispensável para diferenciar uma situação democrática de outra onde tais princípios deixam de ser referência fundamental.
Alinho-me aos que colocam no centro desta infraestrutura ética os princípios e valores éticos da justiça e da liberdade para todas e todos, sem distinção, como as duas faces da mesma moeda, sem o que tudo mais perde sentido. A eles associo o princípio da diversidade, pois não pode existir igualdade e liberdade sem respeito às múltiplas diversidades que nos caracterizam como humanidade. Outro princípio incontornável é o da solidariedade, pois temos diferentes momentos de vida entre nascimento e a morte e portamos diferentes necessidades, que dependem da solidariedade individual e coletiva. A isso acrescento o princípio da participação como direito e responsabilidade individual e coletiva para a efetividade de todos os princípios. Muitos outros princípios e valores podem se juntar e somar estrategicamente no processo de renovação e revitalização que é condição sine qua non de qualquer democracia histórica substantiva. A esses acrescendo desde já, pois vem se impondo na onda avassaladora das mobilizações recentes pelo planeta, o princípio ético e comum da integridade da biosfera para a própria existência da humanidade.
Afirme e reafirme aqui a coisa mais central elementar e central da institucionalidade e da constitucionalidade de qualquer democracia; “o poder emana do povo e só em seu nome pode ser exercido”. Traduzindo em termos políticos, a única força instituinte e constituinte legítima da democracia – literalmente, por sua origem, demo (povo) + cracia (força, poder) – nas sociedades concretas é a cidadania ativa e de sua capacidade depende a democracia efetiva. Mais cidadania é mais democracia. Limitações à cidadania são limitações e perda de substância da própria democracia.
As formas e a radicalidade de tais princípios muda com as situações e os momentos da sociedade, mas, do ponto de vista político em que vejo a questão, não dá para reconhecer institucionalidade e constitucionalidade democrática sem que tais princípios estejam presentes e definam os limites e as possibilidades dos pactos de governabilidade possível. No centro da questão democrática está a questão do como se constitui e se exerce o poder político de Estado. A sua forma autoritária/ditatorial se constitui pela usurpação e imposição do poder estatal por um conjunto de interesses e forças, civis e/ou militares, que passa a se atribuir a si o poder absoluto, inclusive o poder de instituir e constituir. A sua forma democrática é definida quando o poder instituinte e constituinte é expressão a mais ampla possível da cidadania mobilizada em situações concretas da sociedade em questão.
Voltando ao meu ponto de partida, aqui entra a questão da perda de vitalidade e de substância da democracia brasileira. Ainda não estamos numa situação ditatorial, mas caminhamos a passos largos e perigosos para tal inferno, que muitos no Brasil já vivemos. Temos uma Constituição e instituições, e consequentemente políticas, que vem perdendo capacidade de ser tanto referência democrática como condições de democratização da sociedade. A Constituição de 1988, apesar dos limites originários pois definida nos marcos de uma conciliação de interesses, sem uma constituinte exclusiva, expressão do “estado da cidadania” – movimentos e organizações sociais emergentes, nível de mobilização popular contra a ditadura, qualidade dos debates públicos e grau de hegemonia dos princípios e valores democráticos no seio da sociedade civil como pacto fundante, papel da mídia, entre tantos – acabou definindo pontos de um processo potencialmente democratizador. Apesar de limitar a possibilidade de mudanças estruturais nos “pétreos privilégios” de propriedade, admitiu a legitimidade de um conjunto expressivo de direitos sociais e ambientais fundamentais, com recursos orçamentários para saúde, educação, previdência social. Estava dada uma base institucional e constitucional para começar, ao menos, um verdadeiro processo transformador da insustentável situação social de exclusão de grandes maiorias. E soubemos tirar partido disto com inovadoras políticas sociais como o Sistema Único de Saúde (SUS), a ampla cobertura com as rede de educação básica, a democratização do acesso à universidade, o aumento do salário mínimo, o bolsa família, reconhecimento de direitos de indígenas e povos tradicionais sobre seus territórios, a ampla participação social na formulação e monitoramento de políticas públicas, entre tantas outras.
Mas, desde meados da década passada, em vez de uma nova onda de radicalização da democracia, entramos numa onda de sua desconstrução e volta a um capitalismo selvagem. Pior, com aval do Congresso Nacional e sua lógica de federação de bancadas de interesses corporativos – boi, bíblia, bala – foram feitas mudanças constitucionais que excluíram o que era o seu núcleo democratizador fundamental: redução de direitos trabalhistas e previdenciários, mudança na distribuição de recursos orçamentários para saúde e educação, mudanças nas regras e nas políticas de áreas protegidas e territórios indígenas, para lembrar os mais impactantes.
O fato é que mais de metade da população economicamente ativa (PEA) está desempregada, desalentada ou na informalidade. A miséria e a perda de dignidade são vistas nas ruas de nossas cidades e periferias. A colonização da Amazônia é hoje política oficial, com propostas de abrir os bens comuns protegidas à ganância do extrativismo. A violência seletiva contra pobres e negros é regra, com licença para matar. Enfim, já vivemos um regime de “necropolítica”, que domina, oprime e silencia. Racismo, patriarcalismo, homofobia, xenofobia, enfim a intolerância é legitimada pelo próprio poder instituído. Milicianos frequentam palácios e atuam livremente em motins policiais, chacinas nas prisões lotadas pipocam pelo país. Enfim, um quadro desagregador e de ruptura com o pacto ético na base da democracia.
No Brasil, mata-se a tiros negros, moradores de favelas, crianças, indígenas, homossexuais. Mas mata-se ainda mais com o desmonte de direitos e políticas de inclusão social e de busca de equidade. Aqui cabe colocar a questão central do momento: estrategicamente o poder instituído, com apoio de seus “seguidores” fanáticos e intolerantes, está matando o sonho que com democracia podemos fazer um país melhor e bom para todas e todos, sem discriminações. Estamos destruindo a maior força transformadora nas democracias: a cidadania viva em ação, motivada por ideais mobilizadores que seja possível a liberdade de sonhos e lutar por sonhos, de se expressar e ser ouvido, de afirmar sua condição de iguais na diversidade, de ter direito a trabalho, renda, segurança, moradia, água e saneamento, proteção social, de ter acesso à educação, de ter a sua própria fé e religiosidade. Tudo isto está sendo negado. Negado e muitas vezes transformado em lei impositiva.
Termino levantando mais algumas questões. Como democratas convictos de suas virtudes e poder transformador ecossocial, para onde olhar mais? O que priorizar estrategicamente? As bravatas do capitão a partir do Palácio do Planalto cercado de militares não podem ser ignoradas. Temos o dever de não negligencia seus potenciais riscos e fazer resistência às suas propostas rumo a um populismo autoritário. Mas daí, ou do Congresso ou do STF nada pode surgir que seja capaz de recriar condições para a democracia voltar a ser esperança e florescer entre nós. Mas, para isso, temos uma tarefa estratégica inadiável e difícil: despertar um vigoroso sonho e a esperança democrática no seio daquela maioria da cidadania que vive nos territórios de sacrifício. Ouso dizer que a sociedade brasileira não se livra de um novo, potente e destruidor do autoritarismo sem um grande imaginário democrático mobilizador no seio da sociedade civil. Precisamos voltar à pratica emancipatória da liberdade de pensar e se organizar, baseado naquele conjunto de princípios e valores éticos que dão sentido à democracia e podem funcionar como o cimento agregador de um grande bloco de forças ancoradas nos territórios concretos de vivência da exclusão, da violência, da fome e miséria, da negação de direitos, do racismo e tudo mais. Só assim podem emergir movimentos irresistíveis de cidadania.
As resistências se impõem por causa de como se move o poder que está desconstruindo os fundamentos democráticos. Mas são insuficientes. Transformemos as trincheiras que já temos em espaços de reflexão e construção estratégica para o amanhã. O Carnaval é uma fonte de inspiração político-cultural para a cidadania.
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Foto de Ronaldo Caldas / ASCOM / MinC