A Quarentena, a ilusão do Normal e a Fenda

Por que, nas crises, nos sentimos tão impelidos a voltar à normalidade de uma vida sacrificada e vazia, na máquina capitalista? Surgiu uma fenda imensa. Nada garante que o não-mundo de antes retornará

Por Claudio Medeiros e Victor Galdino*, em Outras Palavras

Conta-se que nos chegou a primeira grande epidemia por uma barca dinamarquesa de nome Navarre que aporta à Capital do Império no dia 3 de dezembro de 1849. Nada constando sobre o risco oferecido pelos miasmas que transpiram nas madeiras podres do calabouço dos navios, teve a embarcação livre trânsito no porto do Rio de Janeiro. Assim que o consignatário da barca viu a enfermidade que castigava a bordo, tratou de vendê-la e a tripulação dispersou-se. Alguns marinheiros passaram para navios vizinhos, alguns correram para uma public house mantida por um francês de nome Frank, na Rua da Misericórdia. Os que moravam próximo às praias vizinhas dos ancoradouros, assim como aqueles que residiam nas ruas da Misericórdia, S. José, Direita e becos adjacentes, foram vítimas prediletas da peste.

O Hotel de Neptuno, na Rua da Misericórdia, a tal public house de Frank, defronte da de Neptuno, o Hotel da Califórnia, na Rua Fresca, e a casa de New York no Beco do Cotovelo eram alguns desses estabelecimentos, junto à orla, que careciam da boa fama junto à autoridade policial. A clientela de marinheiros de navios de guerra e mercantes, cada qual a se servir de idioma próprio, consumia em semelhantes casas o duplo serviço de inferninho e pernoite. O presidente da Junta de Higiene Pública solicitaria auxílio policial contra a existência de certas casas de hospedaria, por causa de hóspedes que, “entregando-se a repetidas orgias, saem dali afetados da febre amarela, e uma grande parte deles é vítimas de tais excessos e do mal que em semelhantes casas parece estar localizado”.1 A mando do Imperador, o Visconde de Mont’Alegre remete à Câmara providências para evitar a permanência da peste. Assim se institucionalizaria com pioneirismo o sequestro dos afetados – o regime de quarentena.

A quarentena, enquanto tecnologia não profilática, seria a própria materialização jurídica do tratamento dado à doença na época. O que fazia o higienista senão assistir policialescamente ao paciente pedindo-lhe uma contribuição para o tratamento através de sua adesão a uma dieta de reclusão? A dura alternativa de deixar perecer ao desamparo os míseros marinheiros doentes, ou de relaxar a quarentena, permitindo a ida de médicos a bordo, ou de suspendê-la, não era signo de ausência do poder político. A decisão de reunir num mesmo local pessoas afetadas, e em local separado aquelas que com elas tiveram algum tipo de contato não era tomada sem ponderação. A quarentena era uma prática positiva de transferência do ofício da cura para o processo natural de adaptação do indivíduo a um clima que não lhe é habitual, adaptação da economia humana estrangeira ao clima tropical. Era, portanto, uma prática cientificamente prevista. Era normal que um regime de quarentena quisesse dizer que tanto poderiam ser 40 dias como 40 semanas – ou mesmo 40 meses. O imperativo era que não saíssem de lá senão quando aclimatados, ou seja, curados. Ou mortos.

Para prevenir e suspender o progresso da febre amarela, os navios considerados focos de infecção eram colocados em lugar afastado da cidade, conservando entre si a maior distância possível; eram forçados a subir barra afora, a fim de serem descarregados, lavados e fumegados nas ilhas para isso destinadas. Um novo lazareto seria construído na Ilha do Bom Jesus (atualmente integrada à do Fundão). Os doentes a bordo são obrigados a recolherem-se nos lazaretos. E não só os marinheiros, como todos os moradores da região portuária, seriam visitados duas vezes ao dia pelos médicos que fiscalizavam o estado de limpeza e de arejamento, dando um destino aos doentes que fossem encontrados. Além da Santa Casa, do Hospital da Marinha e de uma enfermaria a ser criada na Rua da Misericórdia, seriam estabelecidos mais dois lazaretos: o da Rua do Livramento e outro de “extraordinária mortalidade”, estabelecido na Gamboa pelo Dr. Peixoto, do qual se ouviu dizer “que quantos entravam para aquele lazareto de lá iam para o cemitério”2. Em todos os aposentos das casas dos doentes da epidemia eram feitas fumigações cloruretadas; e aquele em que houver permanecido o doente, será mais que todos lavado, caiado e fumegado.

A prática de controle da epidemia passará pelo confinamento dos amarelentos nos hospitais, e por uma terapêutica do território. Se a atmosfera está infectada, faz-se urgente transportar os doentes dos navios para lazaretos nas áreas extremas da cidade e expô-los aos ares salubres das ilhas. Anular momentaneamente a atmosfera epidêmica no território se faz acendendo fogueiras de lenha, alcatrão e aroeira nas praias e sobre as sepulturas, encomendando meios adequados e espaços exclusivos para a sepultura dos infelizes, disparando canhões para purificar os ares, incinerando roupas, móveis e pertences das vítimas da epidemia, lançando cal virgem sobre o chão das casas, baixando normas de asseio corporal e temperança alimentar, proibindo a devassidão pública para que não se despertasse a doença pela via dos abusos venéreos, para que não se deboche demais da ira divina.

Instaurado o toque de recolher, atormentada era a impressão que encontrava o navio que tentasse aportar: as fogueiras nas praias e os fios de fumaça subindo dos subúrbios, a cidade febril sob o sol de fevereiro; o efeito do creosote, da terebintina, a ação enérgica das águas de Labarraque, que, ao serem aplicados para frear a decomposição dos miasmas, ardiam as vistas já chorosas. “Qual é a família que não vê assustada escoarem-se os dias, acreditando sempre que o dia seguinte pode talvez ser de luto? Quantos não veem os seus últimos recursos exaustos, e choram na impossibilidade de acudirem às mais urgentes necessidades de suas famílias?”3 Monta-se um aspecto de desamparo geral, a sensação de indolência nos transeuntes, quando não as ruas desertas, pois o Visconde orienta que mendigos sejam recolhidos, que exercícios militares sejam suspensos, que quaisquer obras que remexessem o solo sejam interrompidas. Em seguida surgiram paliativos em proveito do asseio público. Praias, praças, ruas e cocheiras diariamente limpas das sujeiras. Ordena-se que os tais tigres, os escravizados seminus sob os pesados fardos de dejetos em seus crânios, fizessem os despejos “ao mar o mais longe das praias que for possível; fazendo-se para isto, o quanto antes, em diferentes pontos do litoral, pontes estreitas.”4 Ordena-se que cadeias fossem alternadamente esvaziadas para manutenção, fazendo asfaltar o solo, caiá-las, lavá-las e fumegá-las repetidas vezes; e os presos obrigados a lavarem-se e mudarem de roupa, fornecendo-se uma muda aos pobres.

Pobres torravam fundos para arcar com as modestas honrarias fúnebres, e a resolução para muitos corpos pardos atacados da febre eram valas coletivas, quando não amanheciam cheirando nas vielas. Morria-se, e morria-se às claras. O chefe da intendência de polícia aciona a Câmara pedindo que se mande fixar o preço dos caixões, dos artigos para enterros, do frete dos corpos. Havia quem especulasse com a dor popular, exigindo o cocheiro das carroças fúnebres uma taxa além da quantia previamente combinada. Uma infeliz companhia artística italiana encontrou quase toda a morte no flagelo. Os abastados da alfândega, o comissariado, a classe política, a burguesia urbana subiam para a Tijuca e Petrópolis. Os que cá embaixo penavam cruzavam com cadáveres nas ruas ou com o cheiro da cera queimando das procissões clandestinas.

1850 foi a oportunidade política e sanitária para se fazer valer certa novidade: uma nova sensibilidade olfativa animada pela emergência de uma morte limpa e invisibilizada de um cadáver higiênico. Onde antes se enxergava a doméstica integração do teatro da vida com o teatro da morte, onde vivos e mortos “faziam companhia uns aos outros nos velórios em casa, atravessavam juntos ruas familiares, os vivos enterravam os mortos em templos onde estes haviam sido batizados, tinham casado, confessado, assistido a missas e cometido ações menos devotas”5; onde antes isso se enxergava, o que se verá é o cadáver assumindo o signo de doença, sede da doença, e não tanto estímulo para preces e súplicas. A individualização do cadáver, do caixão e do túmulo aparecem por razões que não são teológico-religiosas de respeito ao cadáver, mas político-sanitárias de policiamento dos vivos. Para que os vivos estejam ao abrigo dos mortos é preciso que os mortos sejam tão bem controlados quanto os vivos. Não uma ideia religiosa, portanto, mas policial, médica. Isto porque, junto aos órfãos, víúvas, padres e cadáveres, soma-se ao elenco da morte o nariz do higienista. O caráter escatológico do regime de práticas funerárias, a visibilidade do cadáver chorado dias a fio, a prática do luto, tudo isso será objeto de inquietação e suspeita. Agora que a encomendação da alma não isenta o corpo morto das suas imundícies e dos efeitos da putrefação, ao medo do inferno soma-se o medo do morto. É provável que o cal virgem aplicado sobre o cadáver e o uso de defumadores da liturgia competissem com os odores dos corpos dentro das igrejas. Mas à parte o aspecto do infectado, o que tornou possível a mudança da sensibilidade olfativa de melindrosos homens de ciência? A epidemia de 1850 não reservará apenas lugar distinto para a sepultura: há algo de fundamental no cotidiano da morte que sofrerá uma mudança sensível e isso na medida da frequência com que epidemias mais ou menos avassaladoras varrerão a cidade mais tarde. Tem-se certo número de pequenos pânicos alimentados pela exposição de cadáveres e pela maneira como os médicos avaliam nos jornais o efeito nocivo dos odores. Talvez não se trate apenas de reduzir este acontecimento à aparição de nova sensibilidade diante da morte, mas de interrogar sobre esse novo objeto ausente na paisagem mundana e na liturgia fúnebre do XVIII: a patologização do cadáver, a visibilidade do cadáver, o cadáver no que pesa ao perigo que exerce para o estado sanitário da cidade. Com um detalhe a mais: as forças que fazem emergir o cadáver sob o signo do patológico, do perigo, e que nos conduzem progressivamente a um “desencantamento do rito fúnebre” se confundem intimamente com as técnicas de desinfecção da vida e da realidade urbanas. Ambas fizeram parte de uma tarefa política que teve como plano de reflexão certa imagem condenável da vida urbana, e teve como finalidade última a desarticulação dos agentes miasmáticos em seus focos de emissão. Como assim?

A imagem da cidade colonial retrógrada e anti-higiênica, os primeiros impulsos de contenção da aglomeração nauseabunda e, mais tarde, o nascimento do indivíduo favelado, foram filhos de uma mesma economia sanitária ativada com pioneirismo através dos primeiros estados de quarentena. A quarentena foi outrora o cordão sanitário emergencial que durou enquanto perdurassem circunstâncias epidêmicas. Enquanto o único cordão sanitário permanente, a utopia realizada da quarentena absoluta encontrou na “metrópole moderna” seu mais presente modo de expressão. O efetivo processo de despatologização ou desinfecção da cidade, em marcha a partir dos primeiros estados de emergência, só se realizaria em um projeto de profilaxia racial e social. Foi neste movimento que projetos de aburguesamento da rua, na passagem do XIX para o XX, passaram por uma condenação dos hábitos coloniais e empreenderam não apenas a radical remodelação do perímetro urbano do Rio de Janeiro, mas uma normatização dos nossos corpos segundo o parâmetro do domesticável. Antes mesmo de Pereira Passos, achou-se preferível dar ouvidos a assomos de vaidade, e encobrir a miséria e o desamparo das habitações populares sob o clarão majestoso do edifício neoclássico. Sacrificam-se gordas somas em homenagem às afetações de uma elite de lambedores da pereba terceiro-mundista. Ficou aí traçado como vocação dos governos inventar um século XX de bulevares, à sombra das confeitarias para desfile da sobrecasaca.

Mas vencida a cruzada pelo cadáver higiênico, o aparato policial e científico agregará às suas urgências o combate à insalubridade das habitações coletivas. Diferentemente, as forças que investem os cortiços desde a década de 1870 (tivemos outras duas notáveis epidemias de febre amarela: 1875 e 1876) foram pautadas pela divisão, pela interdição, pelo imperativo de isolar, de despejar, desocupar, constituindo por isso um bloco, um tipo estratégico cuja lógica flertou com a violência e cujo alvo foi um setor específico da população da cidade: certas “aglomerações anônimas e difusas”, segundo a expressão do prefeito higienista Barata Ribeiro, quer dizer, os negros sobretudo, mas também o novo imigrante. Para que isso fosse um dia possível, o dispositivo médico-higienista se concentrou em tornar o cortiço e seus integrantes uma ameaça ao estado sanitário da cidade, à beleza ofuscante da nossa paisagem, à moralidade dos costumes, à segurança de uma sociedade de estrutura escravocrata. Nasce daí esse sujeito fronteiriço: o morador de cortiços, que habita o limiar da cidade e da não cidade, amálgama do corpo anti-higiênico e do criminoso em potencial, do antiestético e do subversivo, do lar e da rua. Sujeito indesejável que resistirá, na passagem do século XIX para o XX, às investidas policiais para despejá-lo do coração da cidade.

Porém não será mais a epidemia e sim a polícia que se tornará um caso de saúde pública. Só que agora, prescindindo do enunciado médico sobre os perigos da epidemia, a quarentena estará prestes a se metamorfosear em política de segurança pública. O que a sustenta é certa perspectiva de que a polícia concentra suas energias em produzir pânico. Um afeto de pânico justificando uma política de segurança pública, a política de segurança pública sabendo reinventar o pânico. Pânico reinventando-se por outros meios, dentro de um mesmo ciclo, quantas vezes for necessário, para marcar nos corpos as cicatrizes dessa memória. Eis um debate que teria lugar de sobra nas circunstâncias que darão abertura para as políticas de segurança no Rio de Janeiro no século XXI. Mas talvez não nas circunstâncias de meados do XIX. Nos antigos surtos epidêmicos, o poder de polícia não se justificava nele mesmo: havia que dar suas razões científicas. Não era um poder que se autoalimentava e se autorreproduzia, suas aberrações não se restringiam à reprodução de afetos de pânico nem se justificavam apenas na seguridade da propriedade privada. De fato, o poder nos tempos áureos de práticas higienistas é um poder que produz sujeitos, não um poder tirano, destrutivo e fora de si.

A atual pandemia do Covid-19 nos coloca diante de uma situação nova, sem precedentes: uma incapacidade coletiva de experienciar o que existe de intolerável em um regime de quarentena, simplesmente admitindo-o como coeso dentro da normalidade vigente. É preciso cautela aqui: não há margem para negacionismo, não é disso que se trata. Hoje, tudo se passa como se a quarentena fosse em si o remédio para o apocalipse, como se sua existência fosse estranha à urgência para encará-la como alternativa (de fato, incontornável, no grau de catástrofe a que chegamos) indissociável da crise de certos modelos de sociabilidade cristalizados no capitalismo e no antropoceno. Crises são geralmente encruzilhadas que permitem questionar se queremos ou não acreditar que haverá retorno à normalidade. E particularmente no capitalismo, a questão sobre a natureza da normalidade se confunde com a questão sobre o porquê nos sentimos tão irreversivelmente impelidos a resgatá-la em situações de crise. Se o que chamamos normalidade significa retomar uma vida sacrificada no desempenho de um papel de miséria física e moral na máquina capitalista, a questão seria então como disputar a imagem do “retorno” no pós-apocalipse. Como disputar o “retorno à normalidade”, ou melhor, o que significará o “retorno”? A arena será pela disputa do retorno, já que os donos do dinheiro e das comunicações tentarão fornecer imagens de retorno previamente consumadas. Talvez, no meio do caminho, os governos percam o controle sobre as pessoas, mas tudo indica que a resposta a isso será uma radicalização da quarentena no sentido de lidar com o problema da aglomeração e da circulação de pessoas. E é capaz que mesmo as pessoas resistentes à quarentena reproduzam o imaginário de que “quando tudo voltar ao normal…” Os governos certamente virão se antecipar, as empresas, os patrões, para definir o que vai ser o nosso retorno. Antes de retornarmos, é claro, o retorno terá cara e endereço. O retorno de fato vai existir – e nos telejornais ele já existe, mas não significa dizer que o amanhã não vai ser como antes. Melhor ainda: o que significa esse “não vai ser mais como antes?” Significa que as sociedades serão mais vulneráveis? Ou diremos que nada será como antes porque a partir de então viveremos na expectativa de que pandemias ocorrerão em razão de uma crise planetária-ambiental em marcha? Ou porque haverá a geração de um trauma, um trauma psíquico e também econômico, financeiro etc? Ou porque as relações de trabalho irão mudar drasticamente?

Como se deu o retorno em outros momentos historicamente parecidos, se tivermos em vista exclusivamente o fato de que o Rio de Janeiro foi laboratório de catástrofes epidêmicas mais ou menos semelhantes? Como dissemos, o retorno, ao longo da sucessão das epidemias de febre amarela ocorridas no XIX, foi o retorno da quarentena expandindo raios de ação: em princípio, o quadriculamento nos cemitérios, depois o quadriculamento dos vivos garantido pela reinvenção estrutural da cidade, através de reformas de “melhoramento” urbano, capitalização do solo, gentrificação, racismo e necropolítica. Se, neste momento, é tão óbvio assim que todo mundo precise retomar a normalidade é porque alguma construção complexa vem sendo mobilizada de modo a revelar-se como diagrama prioritário dos agenciamentos de forças. Essa construção, formatada e condensada em imagens ditas realistas, pode nos aparecer como algo desejável e mais: como o que desejamos antes de qualquer coisa. É esta hierarquia que nos parece o segredo da dificuldade de visualizar uma vida outra. Por outro lado, uma crise abre precedentes para que se escancare a arbitrariedade das práticas policiais que conferem realidade e materialidade à organização da quarentena. Essa crise será cedo ou tarde experienciada, e nesta rápida subida do estado de letargia, tudo dependerá de quais espíritos do passado seremos chamados a conjurar: aqueles espíritos que são a projeção da imagem de uma fantasia, fantasia que é sintoma de uma criação subjetiva mórbida de adaptação a um estado patológico: a normalidade; ou aqueles espíritos que nos assombram com a visão ameaçadora de que não existe “retorno” possível (visão essa contra a qual os fascistas revezarão seus postos e se reerguerão em proporções ainda mais gigantescas).

O que eles denominam normalidade foi gerada no bojo do imperialismo colonial e de um consumismo baseado no esgotamento dos “recursos” do planeta. Somos produto desta normalidade, nós cultivamos o vírus da catástrofe. Somos nós a catástrofe, antes do vírus Covid-19. Nossa sociedade capitalista é a catástrofe, que há muito está aqui. Nosso mundo é uma máquina de morte que devora tudo ao seu redor em nome de uma monocultura de formas de vida: depois de tudo incendiar e consumir, deixa um campo aberto para a proliferação de pandemias diversas. Tratamos exclusivamente os sintomas no momento, mas não apenas no sentido médico: a quarenta metropolitana que já nos é familiar também recebe cuidados para que o retorno à normalidade seja realizado sem que a doença se torne não apenas inexistente como impossível. Repetimos: quem sabe a atual interiorização da quarentena e o esforço para torná-la uma evidência sejam formas de denegação do intolerável, coisa que fantasiamos para não encarar o fato de que há muito interiorizamos uma quarentena de implantação cotidiana (políticas de segurança pública, encarceramento em massa, extermínio da juventude negra, milícias no poder etc).

Pelo menos até o presente momento, este estado de emergência não inovou em termos de efeitos sociais, apenas nos ajudou a requalificar conceitualmente uma condição que é ainda a nossa, a condição de sobreviventes em uma democracia de milícias. É como se, submetidos à quarentena, nos fosse possível ter, por uma faísca do instante, uma visão retrospectiva de uma coisa muito cotidiana porém nem sempre óbvia em sua radicalidade. É claro que, se adotado esse diagnóstico escatológico, nenhuma visão retrospectiva do estado de “normalidade” permitirá um otimismo a ponto de se poder contar com o surgimento espontâneo de possíveis comunidades atraídas entre si por alguma vulnerabilidade compartilhada, uma reedição do universal da precariedade humana como fundamento de uma ética porvir. Ou quem sabe esta abertura para positividades que trabalhem nas frestas dos regimes de quarentena seja o próprio sintoma da nossa dificuldade de encarar apenas mais um diagnóstico de fim da história. O novo coronavírus mesmo nos diz no “Monólogo ao vírus”: “Graças a mim, por um tempo indefinido, vocês não trabalharão mais, suas crianças não irão mais à escola e, ainda assim, nada disso será como nas férias. As férias são o espaço que deve ser ocupado a todo custo enquanto se espera o retorno do trabalho. Mas, isso que se abre diante de vocês, graças a mim, não é um espaço delimitado — é uma fenda imensa. Eu desocupei vocês. Nada garante que o não-mundo de antes retornará”. Nada garante, mas há quem invista todas as suas forças nisso. Querem que sejamos normais novamente. Essa é a guerra em curso. Todo o resto é gerenciamento do sintoma

1BR RJAGCRJ 8.3.7 Fundo Câmara Municipal – Série Higiene Pública (Higiene e Saúde Pública / Avisos / 1850-1854). Página 587.

2“Senado. Sessão de 17 de abril e 1850”. Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 19 de abril de 1850, p. 1.

3“Comunicado”. Diário do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 24 de abril de 1850, p. 2.

4AGCRJ Códice 43.3.26 – Fundo Câmara Municipal – Série epidemias (Febre Amarela – Medidas Higiênicas – Portaria do Ministro do Império Visconde de Monte Alegre etc. – 1850).

5REIS, J. J. “O cotidiano da morte no Brasil oitocentista”. In: ALENCASTRO, L. F. História da vida privada no Brasil: Império. São Paulo: Cia. das Letras, 1997, p.140-1.

*Claudio Medeiros escreveu o livro Mármore e Barbárie: uma genealogia do olfato (não publicado). É carioca da Vila da Penha e professor de Filosofia da UFF de Campos dos Goytacazes.

Victor Galdino é doutor em filosofia e formado em psicanálise. Foi professor substituto de História da Filosofia na UFRJ. Trabalha com Filosofia do Imaginário, Ética e Filosofia Política.

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