Profissionais do SUS enfrentam o coronavírus no corpo a corpo e reivindicam testes, equipamentos de proteção, e informação por parte de gestores e autoridades
Por Marina Amaral, Alice Maciel, Andrea DiP, Thiago Domenici, Julia Dolce, Rute Pina, Joana Suarez, Bárbara D\’Osualdo, Anna Beatriz Anjos, Rafael Oliveira, A Pública
“Nós estamos no começo da pandemia, e já estamos tendo contaminação de funcionários e toda essa dificuldade com UTI. E isso com a orientação das pessoas de ficarem em casa. Imagina se não tivesse essa orientação, como seria”, pergunta Waldir *, enfermeiro que trabalha em duas unidades do SUS em São Paulo. “A palavra é descaso”, diz, referindo-se ao presidente Jair Bolsonaro, depois de ouvir o discurso em rede nacional em que o presidente minimizou a gravidade da pandemia e reclamou das quarentenas decretadas pelos governadores.
Como a maioria dos 20 profissionais de saúde pública de cinco estados (São Paulo, Minas Gerais, Pernambuco, Alagoas e Rio Grande do Sul) que falaram com a Agência Pública nesta semana, W. pediu anonimato — o medo de processos administrativos e outras retaliações é geral, apesar da diversidade das unidades do SUS. Enfermeiro há 15 anos, ele trabalha em uma Unidade de Pronto Atendimento na zona noroeste, periferia da capital paulista. Na quarta-feira, quando falou à reportagem por telefone, estava há uma semana afastado do trabalho por apresentar sintomas de infecção por coronavírus, como tosse seca e falta de ar. Outras quatro colegas da enfermaria foram afastadas do trabalho. Nenhum dos profissionais conseguiu fazer o teste para coronavírus.
W. tem certeza que ficou doente por causa das condições de trabalho na UPA, com capacidade de atender mais de 60 mil pacientes. “O pior é a falta de proteção”, diz. Segundo ele, o único acessório que não falta são as luvas. “As máscaras estão totalmente racionadas, quando tem. E, de acordo com a orientação do fabricante, o uso deve ser feito por duas horas porque ela perde a eficácia depois desse tempo. Eles querem que a gente use por seis horas. São quatro horas desprotegidos”, aponta. “Essa falta de EPIs está gerando uma exposição desnecessária da nossa saúde e dos nossos familiares.”
Também os pacientes ficam expostos pela falta de equipamentos de proteção para os profissionais. De acordo com o Victor Grabois, presidente da Sociedade Brasileira para a Qualidade do Cuidado e Segurança do Paciente (Sobrasp), em entrevista ao site da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) enquanto “se espera que, na comunidade em geral, um portador do vírus infecte de 2 a 3 pessoas, no âmbito dos serviços de saúde um profissional de saúde que esteja contaminado pode infectar até 9 pessoas”.
Na unidade de W., os aventais, que segundo o protocolo do Ministério de Saúde, devem ser “impermeáveis e descartáveis” passeiam de uma ala à outra, já que também o isolamento dos pacientes não é eficiente. “Os pacientes ficam na sala de emergência um do lado do outro, os leitos divididos apenas por cortinas. E você cuida de pacientes que estão com Covid-19, e dos que não estão, com o mesmo avental”, afirma, entre a indignação e a frustração.
W. voltará ao trabalho em abril, quando se espera um pico de casos em São Paulo. Enfermeiro há 15 anos por vocação — “eu gosto de cuidar das pessoas e as pessoas precisam de cuidado” — ele quer participar da batalha, mas teme não dar conta se não houver um apoio maior do governo ao SUS. “Eu não sei se vou aguentar voltar nessas condições. Para mim, tem que ter material de trabalho. É frustrante, deprimente e agonizante saber que vai ter tubo para um e não vai ter para outro… É algo que eu não quero nem pensar agora, vai ser muito dano psicológico [para os profissionais da saúde]”, ele diz, que tenta controlar a ansiedade fazendo terapia por Skype. “Ninguém cuida da gente. Ou a gente se cuida, ou adoece”, alerta.
O relato de W. é um retrato do que está acontecendo nesse momento em boa parte do sistema público da Saúde. A maioria dos entrevistados desta reportagem — médicos e enfermeiros de hospitais públicos, que dependem de verbas do SUS, e de unidades que compõem a rede de atendimento primário, UBS, UPA, SAMU, em localidades grandes e pequenas, no Sul, Sudeste e Nordeste do país, relataram como principais problemas a persistente falta de equipamentos de proteção e a dificuldade de isolar pacientes com segurança. Desde o dia 13 de março, o Cofen (Conselho Federal de Enfermagem) recebeu 1.374 denúncias de falta ou escassez de EPI. Um pouco menos do que as denúncias registradas pelo Conselho Federal de Medicina: entre os dias 19 e 24 de março foram mais de 1500, principalmente por falta de equipamentos de proteção individual. O estado de São Paulo, o mais afetado pela pandemia, lidera o ranking nacional, com 449 reclamações, seguido por Minas Gerais, com 187; Rio Grande do Sul com 175 e Rio de Janeiro, com 148 denúncias.
Há exceções: médicos de hospitais bem aparelhados, como o Hospital de Transplantes de São Paulo, o hospital Mário Covas, com UTIs de referência, ou como o Hospital Municipal M’Boi Mirim, administrado pelo Einstein, disseram ter recebido os equipamentos completos e as orientações de como usar.
Também no maior hospital de Recife, em Pernambuco, médicos e funcionários da enfermagem receberam os EPIs nesta semana. Mas ali foi na marra; a presidente do Sindicato dos Enfermeiros no Estado (Seepe), Ludmila Outtes, em Recife, chegou a ser ameaçada depois que os enfermeiros anunciaram uma greve — considerada ilegal pelo governo estadual —, por causa da alarmante escassez de material de proteção. No dia 19, véspera da data marcada para a paralisação, equipes da Secretaria da Fazenda, Procon e Polícia Militar entraram em uma loja de produtos hospitalares em Boa Viagem, na Zona Sul do Recife, e recolheram máscaras para abastecimento da rede pública.
Mas apesar dos EPIs obtidos por médicos e enfermagem no Hospital da Restauração, em Recife, as assistentes sociais, psicólogas, fisioterapeutas, que lidam diariamente com o público, além de maqueiros e serventes, só receberam luvas; dependem da solidariedade das enfermeiras para conseguir as máscaras. “Elas sabem o risco que estamos correndo nesse hospital, que recebe pacientes do Estado inteiro, em ambientes que contrariam totalmente o protocolo do MS, e não tem janelas, e o ventilador fica o dia todo espalhando tudo”, contou uma dessas profissionais. Ela também chama a atenção para a presença de idosos, como ela, no atendimento direto aos pacientes, muitas vezes sem equipamento de proteção. “Se a Vigilância Sanitária chegar no hospital, vai ver muitos idosos trabalhando no atendimento ao público, e trabalhando sem as EPIs necessárias”, diz.
Outra entrevistada, funcionária do SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência), que realiza o atendimento pré-hospitalar e o transporte de pacientes para unidades hospitalares, disse que os profissionais de sua unidade, mesmo com sintomas respiratórios, estão sendo “orientados a ir ao hospital e não a ficar em casa, como as autoridades informam”. Questionada sobre as orientações transmitidas às unidades, em especial ao SUS, em referência a profissionais de saúde com sintomas, a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo respondeu após a publicação da reportagem que as orientações aos profissionais de saúde têm sido comunicadas por meio de webconferências, documentos técnicos e nos serviços de saúde. A resposta completa está aqui.
“Pessoalmente, estou extremamente abalada, com medo de contaminar nossa família ou qualquer outra pessoa. Não tenho conseguido dormir e meus colegas fazem o mesmo relato”, desabafou.
Como disse um médico, referindo-se à desigualdade na distribuição dos recursos do SUS: “Tudo depende de onde você está” — em qual unidade, cidade e região.
Testes é reivindicação unânime, apesar das diferenças
A falta de testes para o coronavírus, porém, é uma preocupação de todos os profissionais ouvidos. Com exceção de médicos do Hospital de Transplantes de São Paulo, nenhum outro profissional relatou a realização de testes para os trabalhadores do setor. Ontem, o Conselho Regional de Medicina de São Paulo enviou um ofício ao Ministério da Saúde pedindo que todos os médicos e profissionais da área que estejam em contato com pacientes sejam testados, caso apresentem sintomas da doença, leves ou graves. A medida, segundo o Conselho, é “fundamental para a contenção da doença e uma forma de evitar uma possível falta de médicos”.
“O ideal seria testar todo mundo como a Coréia fez. Nós não podemos fazer isso, somos 210 milhões de habitantes, mas os profissionais de saúde sem dúvida nenhuma devem ser testados”, diz a médica pneumologista, pesquisadora e docente da Fundação Oswaldo Cruz, Margareth Dalcolmo.
Sem os testes, que poderiam descartar a presença de vírus nos profissionais, também há casos de funcionários com sintomas que são afastados por um período maior do que seria necessário se fosse descartada a presença do vírus.
Uma realidade que já atinge profissionais da saúde da família e em outras unidades de saúde básica. “Recebemos apenas dois kits para exames de sintomáticos com jalecos descartáveis que já foram usados e não houve reposição”, afirmou uma profissional de Unidade da Família (USF) em Jordão, na zona sul de Recife. Com a falta de segurança, trabalhadores com mais de 60 anos ou doenças crônicas procuraram seus médicos e solicitaram afastamento. Restou apenas uma técnica de enfermagem para três equipes de saúde, pois não houve substituição de profissionais. A unidade tem recebido cerca de cinco casos de sintomas característicos da Covid-19 por dia.
No interior de São Paulo, a médica Nádia Miatta, que atua na coordenação da rede básica de saúde da região de Fernandópolis, disse à Pública que dois médicos (de um total de 20) e 20 profissionais da enfermagem (de 60) já foram afastados, o que aumenta o nervosismo das equipes, que se sentem despreparadas para lidar com a situação. “Tem muito médico entrando em pânico aqui, que não tem preparo psicológico, não tem preparo técnico para lidar com respirador, paciente grave em UTI”.
Na outra ponta do sistema, a sobrecarga dos médicos residentes nos grandes hospitais públicos — que já costumam acumular funções, também preocupa. “Muita gente ficou sintomática, foi afastada mas ainda não teve a confirmação e nem houve nenhuma comunicação oficial sobre os casos”, contou Mário*, residente da Santa Casa de São Paulo, que conversou com a Pública por telefone de casa, onde está desde que foi afastado por suspeita de coronavírus. Naquele mesmo dia (25), todos os residentes, independentemente da especialidade em que atuam, foram convocados a trabalhar em rodízio na tenda de triagem, montada na frente do hospital para atender os casos com sintomas respiratórios. Segundo ele, foi o colega, que tinha feito o exame em um hospital particular, quem o comunicou do resultado positivo para o vírus. Naquele momento ele já apresentava os sintomas que o levaram ao afastamento.
Procurada pela reportagem para comentar a questão dos profissionais afastados e das notificações, a Santa Casa de São Paulo informou “que os números relacionados ao Covid-19 são diariamente transmitidos aos órgãos oficiais”. E reafirmou seu “compromisso com a saúde da população acreditando que com ações em conjunto conseguiremos enfrentar esse momento difícil com sucesso”.
Não há estatísticas específicas divulgadas pelo Ministério da Saúde sobre casos de coronavírus entre profissionais de saúde, embora essa categoria tenha sido classificada como de “risco muito alto de exposição”, pelo Ministério Público do Trabalho. Na sexta-feira passada, duas profissionais de saúde — uma médica e uma técnica de enfermagem — morreram em São Paulo por suspeita de coronavírus. Nenhuma das duas estava entre os casos suspeitos de coronavírus registrados nas estatísticas oficiais. A Secretaria de Saúde de São Paulo diz não ter a contabilidade dos casos separadamente para os profissionais de saúde. Já no Rio Grande do Sul, médicos afirmam que a orientação é notificar e afastar os casos de trabalhadores da saúde com sintomas gripais e febre, que deverão passar por testes, raramente realizados. Em Gravataí, no interior, os médicos chegaram a chamar a Vigilância Sanitária para exigir o teste de uma trabalhadora de saúde, que deu positivo. No Rio de Janeiro, os próprios profissionais passaram a contar os casos, como revelou hoje o UOL. O Sindicato dos Enfermeiros do RJ contabilizou 80 profissionais em quarentena.
Quanto aos testes, apesar das reivindicações da Cremesp e das promessas do Ministério da Saúde de distribuir 22 milhões de testes, especialmente para os profissionais de saúde e segurança, o site do MS informava até ontem que apenas 32.576 testes haviam sido distribuídos. Podem ter sido menos, podem ter sido mais. Como mostrou a reportagem “A caixa-preta do coronavírus no Brasil”, transparência não é o forte do Ministério da Saúde, o que contribui para a insegurança dos profissionais de saúde e da população em geral.
Até falta de água e sabão para lavar as mãos
Profissionais que atuam há muito tempo no SUS lembram que já enfrentavam uma situação difícil antes da epidemia, principalmente depois de 2016, quando o governo Temer editou a Emenda Constitucional 95 — conhecida como emenda “do fim do mundo”, que congelou por 20 anos os gastos com a saúde. Segundo um estudo da Comissão de Orçamento e Financiamento (Cofin) do Conselho Nacional de Saúde (CNS), publicado pelo site Marco Zero, de Recife, o SUS já perdeu R$ 20 bilhões de 2016 para cá. Além do déficit, o “investimento per capita anual é muito baixo e desigual nos territórios: há municípios em que o gasto por pessoa é de R$ 5 mil; em outros, R$ 280”, disse Islândia Carvalho, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Pernambuco em entrevista ao site.
Em Maceió, uma médica de um hospital referência para o tratamento de Covid-19 relatou à Pública que “a emergência conta com uma sala apenas de isolamento, sem banheiro, sem carrinho de parada, e sem ventilador mecânico”, o que a preocupa ainda mais pelo fato do hospital atender muitos pacientes com HIV, que já possuem a imunidade comprometida. “As enfermarias também não tem ventilador mecânico e, por muitas vezes, faltam medicações básicas como dipirona”, ela diz.
A assistente social Goretti*, que há mais de 40 anos trabalha no Hospital da Restauração, em Recife, tem longa prática em trabalhar em condições precárias. Atuando na maior emergência do estado de Pernambuco, estado que já contabiliza três mortos e 48 casos confirmados pelas contas do Ministério da Saúde, ela conta que faltava sabão — e até água — nos banheiros públicos do hospital, o que foi confirmado à Pública por mais quatro colegas. “Os profissionais estão angustiados, higienizando as salas por sua própria conta, levando álcool em gel e até sabão de casa”, diz.
“A gente deixou de fazer o atendimento nos leitos, mas as salas são muito pequenas, sem janelas, e não há como manter os 2 metros de distância dos pacientes”, diz uma psicóloga. Ela também relata, que além do risco inerente ao trabalho, especialmente pela falta de EPIs, a chefia pediu aos profissionais que distribuíssem panfletos aos pacientes e acompanhantes sobre o Covid-19. “Não tem como panfletar sem se aproximar das pessoas”, lamenta.
Nas cidades vizinhas à capital pernambucana, além da falta de equipamentos, muitos trabalhadores do interior têm vínculos precários, não são concursados, e estão se submetendo a qualquer condição ruim para não perder seus empregos. Conversamos com trabalhadores da saúde de Caruaru, Goiânia, Moreno, São Lourenço que disseram que estão comprando por conta própria materiais, capacete de proteção e até roupas de soldador, de construção civil, por meio da internet. “Estamos confeccionando nossos escudos faciais com folha de acetato e diadema (arco de cabeça). Quem está na ponta está morrendo de medo de adoecer”, desabafou uma profissional de unidade básica de saúde.
Procurada, a Secretarias de Saúde de Pernambuco não retornou até a publicação desta matéria.
Sorteio de máscaras
Em Minas Gerais, nem mesmo os profissionais que trabalham no hospital Eduardo de Menezes, referência para o tratamento de casos suspeitos de coronavírus de Belo Horizonte, estão se sentindo minimamente seguros. “Nós estamos passando um medo muito grande dentro do hospital nessa situação de coronavírus”, desabafou a técnica de enfermagem, Gabriela*, que trabalha no CTI.
Segundo ela, os técnicos de enfermagem estão usando o mesmo capote para atender duas pessoas. “A contaminação aumenta mais ainda porque se a gente usa um capote para dar banho no paciente ao lado, se um for positivo, o outro vai acabar virando um paciente positivo. O que vai aumentar o número de coronavírus aqui no nosso Estado, por falta de EPI (equipamento de proteção individual)”, denunciou.
Em apenas cinco dias, — 20 a 24 de março —, o Conselho Regional de Enfermagem (Coren-MG) recebeu quase trezentas denúncias de falta de equipamentos por telefone e email. O Ministério Público do Trabalho de Minas Gerais informou hoje que recebeu “quase 100 denúncias de diversas cidades mineiras sobre as condições de trabalho, que estão sendo cadastradas e triadas”. Segundo o MPT-MG as denúncia vêm de trabalhadores da rede pública e privada “e são provenientes tanto de grandes cidades como Belo Horizonte, Betim, Contagem e Uberlândia, como de pequenas cidades”. “Esses dados serão usados para subsidiar as próximas atuações do MPT-MG”, conclui a resposta à Pública.
Dentre os relatos ao Coren, enfermeiras contam que estão tendo de sortear máscaras cirúrgicas, ou que as máscaras estão sendo fornecidas apenas para os médicos, além dos casos de ausência total de material. Até o álcool está sendo racionado. Tem quem está tirando dinheiro do próprio bolso para comprar os equipamentos. Diante deste cenário, há enfermeiras que estão se isolando da família para preservar os filhos e companheiros, ou pedindo demissão.
Bruna*, enfermeira de uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Uberaba, no Triângulo mineiro, deixou o emprego na quarta-feira passada para preservar seus filhos de uma possível contaminação. “Lá onde eu trabalhava fornecem apenas uma máscara que vale por duas horas, para um plantão de 12 horas. O capote não é adequado, é um tecido muito fino. A gente não teve nenhum treinamento até hoje de manejo com esses pacientes. Nem o fluxo que está tendo em alguns lugares, que é o certo a se fazer, que é uma entrada específica para esses pacientes, o distanciamento, nós não tivemos”, contou.
Segundo Bruna, as pessoas que chegam na UPA com suspeita de coronavírus ficam em locais que não são isolados porque “só tem dois isolamentos com banheiro”. “A gente está trabalhando sem nenhuma condição, está muito tenso. Os médicos também estão muito nervosos, a maioria está alugando hotel para ficar isolado da família. Alguns enfermeiros também que tem essa possibilidade ou deixa com algum parente, ou está alugando hotel para ficar isolado”.
A enfermeira lamenta ter sido levada a se demitir: “Foi muito contra a minha vontade. Eu gosto de ser enfermeira, é um ideal meu. Se eu tivesse condições adequadas e treinamento, com certeza eu ficaria trabalhando. A gente se sente mal com isso porque não é o que eu gostaria. Eu gostaria de ter condições de treinamento, segurança para continuar trabalhando”.
Procurada, a Secretaria de Saúde de Minas Gerais não retornou até a publicação da matéria.
A Rede Fhemig, responsável pelo hospital Eduardo de Meneses, disse que todas as redes estão abastecidas com equipamentos de proteção individual e seguem as orientações das suas diretorias, amparadas pelo contingenciamento necessário estabelecido nos protocolos clínicos e nas portarias das instâncias estaduais e federais sobre a epidemia do COVID-19. Os EPI’s estão sendo fornecidos, especialmente as máscaras, de forma responsável aos profissionais cujo seu uso no atendimento é indispensável. Sabemos que esses itens se encontram em falta no mercado e é necessário que haja um contingenciamento para evitar extravios e o uso indiscriminado, o que acarretará, realmente, em riscos para servidores e pacientes.
Todos os critérios e materiais referentes aos equipamentos de proteção individual, assim como outras orientações aos profissionais de saúde, estão descritos na Norma Técnica nº 04/2020 – Orientações para Serviços de Saúde: Medidas de Prevenção e Controle que devem ser adotadas durante a assistência aos casos suspeitos ou confirmados de infecção pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2).
“O risco é ficar paralisado, não acordar no dia seguinte para trabalhar”
Na UBS Francisco Dias, em Osasco, região metropolitana de São Paulo, a médica Nathalia Neiva dos Santos está há uma semana na linha de frente porque sua unidade – que já atende muitos idosos – passou a ser referência para atendimentos de pacientes com sintomas respiratórios. Além de muitos pacientes com sintomas de gripe, ela diz que atendeu muita gente buscando orientação, sem saber como agir nesse momento, e casos de ansiedade, com a somatização de sintomas em pacientes idosos e ansiosos. “Os casos de ansiedade e síndrome do pânico estão começando, então a previsão é um aumento de casos de saúde mental”, diz. Inclusive entre a equipe médica.
“Enquanto trabalhadores, estamos com medo, lidamos com técnicos de enfermagem e agentes de saúde com medo, e temos que trabalhar para lidar com o stress e a fadiga dos trabalhadores. O risco é ficarmos paralisados e não conseguirmos acordar no dia seguinte para trabalhar. Então começamos, há dois dias, a fazer um momento de alongamento e relaxamento aqui na unidade, entre os profissionais, para nos dar mais condições de nos manter nesses dias”, conta.
A situação de tensão diante dos casos da pandemia, que se avolumam entre nós, a fez lembrar de outra crise, “com algumas semelhanças.” Em 2018, Nathalia trabalhou em Barra Longa (MG), em 2018, uma das cidades atingidas pela lama da Samarco na região de Mariana. O pior momento, lembra, foi quando as pessoas começaram a fazer exames que identificaram a contaminação por metal pesado. “Como não sabiam a fonte da contaminação, se era a água, os alimentos, o solo, as pessoas começaram a entrar em um pânico geral, por não conseguir identificar a fonte transmissora”, lembra. “Eu tinha a sensação de impotência. Enquanto profissional de saúde a gente quer dar conta do problema colocado, mas a solução não vem de mim, vem de um esforço de pessoas, e do próprio Estado na construção de políticas públicas. Então nos sentimos muito pequenos diante do problema”, diz.
Nathália também ficou revoltada com o discurso de Bolsonaro de quarta-feira, principalmente pelas informações equivocadas sobre a importância do isolamento social. “O que Bolsonaro faz agora é gerar confusão nas pessoas. A gente faz uma orientação em trabalho de formiguinha, em um esforço diário por meio de um protocolo internacional, e o presidente, usa de uma rede de transmissão para disseminar uma informação que entra em conflito com a nossa, em relação ao isolamento. Então é como enfrentar uma grande maré e perder a força. Estamos na frente das pessoas, expostas a uma contaminação, enquanto ele está no Palácio da Alvorada, na casa dele. Me sinto frustrada e injustiçada como grande parte dos trabalhadores de saúde”, diz.
Números do front
Não é fácil saber quantos profissionais de saúde estão na linha de frente do combate à epidemia nos 200 mil estabelecimentos que compõem o Sistema Único de Saúde, que reúne a rede pública e a rede privada filantrópica/conveniada. Em artigo recente no jornal O Globo, a pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca/Fiocruz, Maria Helena Machado, falou em “mais 3,5 milhões de funcionários de saúde que nele atuam”, qualificando-os de “patrimônio nacional” no âmbito da Saúde.
Nem todos, porém, atuam no front do atendimento direto ao paciente. Se restringirmos a busca no Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde do Brasil para as categorias que enfrentam a maior exposição – médicos, enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem, chegamos a 1,147 milhão de profissionais que atendem no SUS (dados de fevereiro de 2020). Destes 303 mil são médicos, a maioria clínico geral, e 31 mil residentes. Trabalham na enfermagem do SUS 843 mil profissionais – sendo 232 mil enfermeiros, 441 mil técnicos e quase 169 mil auxiliares. O estado de São Paulo, sozinho, concentra aproximadamente um quarto dos médicos (81 mil) e mais de 20% dos enfermeiros (50 mil).
A remuneração destes profissionais acompanha a desigualdade do SUS. Segundo o Cremesp, a rede privada concentra 3 vezes mais médicos do que a pública, o que contribui para a variação de salários dentro da mesma categoria. Em São Paulo, 62,4% dos médicos tem remuneração de até 16 mil reais, enquanto 20,4% recebem de 16 a 24 mil, e 13% mais do que 24 mil mensais.
Os dados são mais escassos em relação à enfermagem, que compõe o grosso da linha de frente. Os mais completos, embora desatualizados, são da Pesquisa Nacional da Enfermagem do Brasil, feita em parceria entre Cofen (Conselho Federal de Enfermagem) e Fiocruz e divulgada em 2015. Dos técnicos e auxiliares de enfermagem, 84,7% eram mulheres, maioria esmagadora também entre os enfermeiros, onde elas representavam 86% da categoria. Os brancos são maioria entre os enfermeiros, com 57,9% se declarando dessa cor/raça; já entre os técnicos e auxiliares o percentual maior se inverte: pretos e pardos somam 56%. Para efeito comparativo, já que os dados são de 2013, mais de 50% dos auxiliares e técnicos ganhava entre 681 e 2000 reais enquanto 58% dos enfermeiros recebiam entre 2 mil e 5 mil reais. Um dado importante que a pesquisa traz é o número de ocupações que cada profissional exerce: 28% dos enfermeiros e 24% de técnicos e auxiliares trabalhavam em duas atividades, e cerca de 3% em três.
*Os nomes foram modificados para preservar a identidade das fontes.
—
Imagem: Reprodução/ Marcello Casal Jr. /Agência Brasil