Uma fratura na ordem ultraliberal

Em todo mundo, ávidos defensores do mercado, como Macron, na França, agora defendem Estado forte. Até o truculento Trump vai remunerar trabalhadores em quarentena. Já Bolsonaro, na contramão, parece imune ao bom senso…

por Almir Felitte*, em Outras Palavras

Caros compatriotas, precisamos amanhã tirar lições do momento que atravessamos, questionar o modelo de desenvolvimento que nosso mundo escolheu há décadas e que mostra suas falhas à luz do dia, questionar as fraquezas de nossas democracias. O que revela esta pandemia é que a saúde gratuita independentemente de condições de renda, de história pessoal ou profissão, e nosso Estado de Bem-Estar Social não são custos ou encargos, mas bens preciosos, vantagens indispensáveis quando o destino bate à porta. O que esta pandemia revela é que existem bens e serviços que devem ficar fora das leis do mercado. Delegar a outros nossa alimentação, nossa proteção, nossa capacidade de cuidar de nosso modelo de vida é uma loucura. Devemos retomar o controle, construir mais do que já fazemos, uma França, uma Europa soberana que controlem firmemente seu destino nas mãos. As próximas semanas e os próximos meses necessitarão de decisões de ruptura neste sentido. Eu as assumirei”.

Há algumas semanas, seria inimaginável que tal discurso tivesse acontecido. Ainda mais da boca de quem veio: Macron, o “Presidente dos Ricos” que, há mais de dois anos, em toda sua intransigência, prende e espanca manifestantes franceses revoltados com sua agenda liberal de austeridade. Símbolo daquilo que a imprensa mundial tentou pintar como o centro ponderado que poderia ser a alternativa perfeita aos “extremismos” de direita e de esquerda, Macron e seu liberalismo não resistiram à pandemia do coronavírus.

O discurso do presidente francês nem de perto chega a ser uma ode ao comunismo, mas certamente desperta, mais uma vez, o ideal socialdemocrata europeu. Sinaliza, sem dúvidas, para a volta do Estado, para o rechaço às leis de mercado que liberais, em suas últimas 5 décadas de devaneios, já pensavam ser leis tão naturais quanto as da física, e coloca o bem comum como foco principal das políticas públicas. Não que eu creia que Macron será o nome certo a trilhar esse caminho para o povo francês. Liberais serão liberais, e eles já deram muitos motivos históricos para não alimentarem a confiança da esquerda. Mas não há como negar a mudança de ares que a crise trouxe para a ordem mundial.

E boa parte desta mudança pode se dever ao país que se prepara para assumir a hegemonia política e econômica global: a China. Primeiro epicentro do Covid-19, o gigante asiático parecia, de início, uma tragédia anunciada. Populoso, abrigando cerca de um quinto da população mundial, a China parecia o país “perfeito” para a expansão descontrolada de uma doença altamente contagiosa. Mas a atuação dos chineses na contenção da pandemia acabou virando exemplo a ser seguido por líderes de todo o mundo.

Com ações concentradas nas mãos do Estado, o país teve sucesso em praticamente isolar a doença na região de Wuhan, reduzindo os impactos de saúde, econômicos e sociais do vírus no restante do país. E não foi só no combate à doença que o Estado chinês tomou as rédeas da situação. Medidas que visaram a manutenção de produção e abastecimento básicos também se concentraram nas mãos do governo. Parafraseando Macron, a China não se entregou à loucura de delegar a capacidade de cuidar de seu modelo de vida a outros. Hoje, três meses após o susto, até mesmo a região de Wuhan já volta à normalidade enquanto a China exporta sua experiência para ajudar até grandes potências no combate ao coronavírus.

Enquanto isso, do outro lado do espectro político, lideranças de extrema-direita tornam inevitável a comparação. É triste ver as consequências da irresponsabilidade italiana, que, ainda no fim de fevereiro, quando contava apenas 17 mortos pela doença, anunciava medidas para proteger a economia e manter o fluxo de turistas para o país. A xenófoba e conservadora aliança entre o 5 Estrelas e a Liga resolveu subestimar a pandemia por interesses econômicos. Hoje, menos de um mês depois, já contam mais de 7.500 mortos no país que se tornou o epicentro do Covid-19 – posto que pode ser ultrapassado em instantes por uma Espanha cujo Estado Social vinha sendo destruído na última década pelo PP de Rajoy e cujo povo foi jogado à precariedade por uma Reforma Trabalhista que inspirou a brasileira.

Mas é bem provável que o incômodo posto de novo epicentro da pandemia não fique muito tempo nas mãos dos espanhóis. Isso porque, regado a um “terraplanismo” que já se tornou típico, o negacionismo de Trump para a gravidade da crise parece já ter levado os EUA a um ponto se volta. Próximo de bater os 70 mil casos e já tendo ultrapassado as mil mortes, os EUA também se incluem nos países que, mesmo com tempo, demoraram a agir por colocarem interesses econômicos a frente da preocupação humanitária.

Ao menos o governo norte-americano já se convenceu de que a ajuda estatal será essencial nos próximos tempos, aprovando o maior pacote de investimentos de sua história, totalizando US$ 2 trilhões. A ausência de um sistema verdadeiramente público de saúde, porém, pode tornar qualquer ajuda financeira insuficiente para conter o estrago do Covid-19 no país.

Pior mesmo é a situação brasileira. Com Bolsonaro interpretando o papel de “Trump pobre”, o coronavírus parece ter encontrado um aliado em nosso presidente. O negacionismo do governo para uma gravidade real da pandemia, que já se comprovou em outros países, é desesperador. Ao que tudo indica, com declarações absurdas que comparam o Covid-19 a uma “gripezinha”, Bolsonaro parece querer seguir o fracassado exemplo italiano de tentar manter a normalidade econômica do país. Há indícios, também, de que o governo esteja apostando na tática de “imunização por rebanho”, caminho já abandonado pelo Governo inglês de outra figura repugnante da direita mundial, Boris Johnson.

Ao mesmo tempo, os parasitas liberais que habitam no Estado brasileiro continuam repetindo seus mantras econômicos falidos. Paulo Guedes, no que poderia ser atribuído à insanidade não soubéssemos de seus interesses privados, teve a cara de pau de, em meio ao que deve ser uma das maiores crises da história do país, defender publicamente que a continuação das reformas liberais seria o melhor remédio para nossos problemas. As mesmas reformas liberais austeras que nos trouxeram ao atual abismo social e econômico que vivemos, em uma economia vacilante que já desacelerou em 2019, antes mesmo da pandemia.

Lê-se por aí, na internet, que o mundo acreditava que uma pandemia converteria ateus em cristãos, mas acabou convertendo liberais em keynesianos. Infelizmente, sequer este sintoma chegou aos mandatários de nosso país. Mas já há indícios de alguma mudança. Até mesmo liberais que, nos últimos anos, se empenharam em destruir o Estado brasileiro utilizando suas cadeiras cativas na mídia, como Monica de Bolle, Sardenberg, Miriam Leitão e afins, já receitam a intervenção estatal para salvar o país humana e economicamente. Numa frase que deveria lhe render, no mínimo, o confisco de todos seus bens pelo Estado, o bilionário Abílio Diniz, num momento de falta de vergonha ou extrema sinceridade, admitiu que “em momentos de crise, somos todos keynesianos”. Na bonança, o liberalismo continua garantindo seu bilhão.

Mas esse despertar da verdadeira distopia que é o liberalismo econômico não é novidade no mundo. Nas décadas de 1910 e 1920, entre duas Guerras Mundiais, em meio a uma pandemia e uma das maiores crises econômicas da história mundial, o sistema liberal também colapsou. À época, três saídas diferentes foram vislumbradas pela sociedade: a radicalização do poder popular via Socialismo, a reforma total do sistema capitalista via Estado Social e a radicalização do capitalismo via Nazifascismo. Mais ou menos 100 anos depois, as mesmas cartas parecem colocadas à mesa de todos os países.

Que em breve tenhamos líderes capazes de escolher o caminho certo para o Brasil, e que este caminho não seja tomado tarde demais. Certo é que cada dia fica mais claro que este líder não é Jair Bolsonaro.

*Advogado e estudioso de Políticas de Segurança Pública

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