Um dia, um vírus

por Regina Angela Landim Bruno*

No filme “Um dia um gato” dirigido por Vojtech Jasny (Checoslováquia, 1963) a história se passa em um vilarejo que recebe uma comitiva circense da qual fazem parte um mágico e um gato que usa óculos escuros. O gato possui poderes mágicos e ao tirar os óculos colore as pessoas de acordo com seus sentimentos e personalidades.

Os mentirosos são roxos. Os ladrões, cinzas. Os falsos, amarelos e os apaixonados, vermelhos.

À semelhança do filme, o novo coronavírus fez aflorar, tal como o gato, nossos sentimentos e desejos. Deu visibilidade ao que há de melhor e de também de pior em nós, pessoas. Trouxe à luz nossa humanidade e nossa desumanidade, faces de um mesmo processo.

Quero falar sobretudo da reinvenção da humanidade. Vivemos um tempo afeito ao despertar das solidariedades que entreabre portas para deixar passar réstias de luz; que alarga as fronteiras humanas, rearruma relações sociais e entremeia ainda que superficialmente condições e posições de classe diferenciadas.

Por exemplo, nos hospitais, as pessoas responsáveis pela limpeza de invisíveis repentinamente ganharam notoriedade:

“- Antes do vírus ninguém me via quando eu entrava no quarto para fazer a limpeza, Ninguém me dava bom dia nem dizia obrigado. Hoje é só aparecer na porta  com minha vassoura e meu balde que recebo um bom dia e um sorriso. Eu estou levando o vírus embora”, disse sabiamente uma faxineira terceirizada e tensa porque suas férias foram suspensas e ela ainda não sabe se terá direito à passagem do busão.

“Cuidem-se bem, por favor,” transformou-se em palavra-chave em nossa relação com o outro, substituindo todo e qualquer cumprimento entre as pessoas, por esse mundo afora. Ante a possibilidade de o mundo se acabar muita gente beijou a boca de quem não devia e pegou na mão de quem não conhecia, bem ao estilo do samba de Assis Valente cantado por Carmen Miranda. E foram tantos os meu benzinho, paixão de minha vida, rainha minha, coração, amor, meu anjo, extravasados em zaps, e-mails, telefone ou entreouvidos nos murais das janelas, ultrapassando as paredes finas das casas e amortecendo o som de brigas, gritos e sussurros! Esposos e esposas há-décadas-dormindo-juntos-mas-separados renovaram seus votos do tempo do primeiro encontro e do primeiro encantamento.

“-Eu quero um beijo na boca. Vamos reviver a nossa juventude”, disse ele.

Algumas respiraram fundo e tiveram a coragem de se separarem.

Muitos perdoaram ingratidões, cumprimentaram afetivamente seus desafetos, relevaram as desavenças, relembraram antigos amores e amigos ou buscaram o aconchego da família.

Além disso, segredos são revelados, facetas são descobertas. Solidariedades rasas são rapidamente desfeitas. .

Um dia o namorado da enfermeira-chefe telefonou terminando o namoro sob o argumento de que deveria proteger seus pais, já idosos. Ao que a amiga prontamente rebateu: “-Ele tem outra, esquece ele”.

É grande o incentivo da sociedade civil à manutenção do isolamento social, apesar das desavenças, das disputas e das indecisões da sociedade política. Para amenizar a solidão poetas, músicos e cantores do planeta ocuparam o lugar nobre das janelas, dos terraços, dos telhados, das lages e dos novos espaços virtuais, numa sinfonia que é soma de todas as cores, de todos os ritmos, de todas as rimas e de todos os cantos. No Rio, um bravo bombeiro é aplaudido pelos moradores em quarentena ao executar em seu trompete !eu sei que vou te amar” do alto da escada Magirus, a 50 metros do chão.

Como parte do isolamento social a violência contra a mulher aumentou reinventando mais uma vez nosso patriarcalismo tosco, cruel, agora “coronavirado”. Os assassinatos  dos povos indígenas, permanece.

E o som do panelaço  incomoda. 

Curiosamente renasceu a vontade de andar nu. Aquele rapaz, aparentemente indiferente, mas, vaidoso e atento a tudo e a todos aboletou seu belo corpo na varanda do apartamento e de lá não mais saiu. Outro reivindicou o direito de todo mundo andar nu, alegando que a roupa é dispensável.

Dentre outras cores o vírus também registrou  verde-oliva dos porões. O cinza escuro de  uma presidência da República e de seus comparsas mergulhados no desprezo à vida e na pulsão da morte …do outro.  O furta-cor de uma sociedade ambivalente na qual a mesma pessoa participa do panelaço e na hora seguinte defende a redução do salário do zelador de seu prédio, caso haja diminuição da jornada de trabalho. O amarelo ouro ganância de empresários predadores voltados para a mineração.

Em contrapartida, e felizmente, disputa espaço o branco-verde dedicação e compromisso dos médicos, enfermeiros e auxiliares. O azul-esperança das comunidades sociais nas regiões carentes que “vivem pertinho do céu.” e a força de sua organização. O branco-experiência e vida dos idosos e das idosas. 

A percepção sobre o vírus e o momento é diferenciada,. A realidade de cada um/a tambem. “Todo o mundo não vai morrer um dia!” diz alguém. “Quando essa greve passar eu vou ao Maraca”, informa outro. “Te levo para tomar um café da manhã, promete o moço . “Deus está querendo que o povo do mundo seja  humilde”, afirma o homem. Como posso me proteger se falta água ?! O que posso fazer se dividimos a mesma colher?!, diz uma “moradora” de rua.

No carinho de amigos e amigas. No afeto de alunos e alunas. Na amizade de colegas. Na proteção da família. No apoio da amiga de sempre. No amor da filha amada. Na partilha de um mesmo sonho com copines feministas, encontro garra para lutar, energia para seguir em frente. Abraço um rumo, uma bandeira e rio das amenidades que nos enternecem. 

Mas para “o mundo amanhecer em paz”, não basta “um dia  chegarmos diferentes de nosso jeito de sempre chegar”. Solidariedade plena não rima como egoísmo, preconceito e desigualdade social. A solidariedade só consegue recriar nossa humanidade se tivermos vontade de juntas/os rompermos a imensa desigualdade existente desfazermos a seletividade e acabarmos de vez com o preconceito enraizado no corpo, na mente e n’ alma.

 “Vamos nessa”!!

01 de abril 2020.

*Programa de Pós-graduação de C. Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro CPDA/UFRRJ

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