Segundo especialistas, modelo de produção espalha vírus selvagens mortais para organismos adoecidos por alimentos cheios de açúcares, gorduras e agrotóxicos
Por Cida de Oliveira, em Rede Brasil Atual / MST
A pandemia global da covid-19 ultrapassou o número de 1,26 bilhão de pessoas contaminadas e fez o número de mortos passar de 68 mil neste domingo (5), de acordo com o observatório da Universidade Johns Hopkins, dos Estados Unidos. Segundo a instituição – que tem sido a principal referência mundial sobre a doença no mundo, só no Brasil já eram 460 as vítimas fatais, com os infectados passando da casa dos 11 mil.
A ciência quer saber mais sobre o mecanismo pelo qual esse coronavírus – um entre tantos a infectar morcegos no mundo todo – chegou aos humanos, causando tamanha crise sanitária internacional. Uma das hipóteses é de que teria sido pelo contato humano com saliva e fezes do mamífero nas matas.
Uma coisa é certa: o encolhimento das florestas naturais tem colocado a humanidade cada vez mais em contato com patógenos causadores de zoonoses. Só que no organismo humano as manifestações têm sido mais graves. Haja vista a raiva, o Ebola e a Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars) que vitimou a China em 2000 – todas decorrentes de algum agente que infecta outros mamíferos.
Autor de Big Farms Make Big Flue (Grandes Fazendas Produzem Grandes Gripes), o biólogo evolucionista Rob Wallace acredita que o agronegócio baseados em extensas monoculturas é o responsável direto por essa transmissão. Em entrevista ao site alemão Marx21, ele foi taxativo: “O agronegócio colocará em risco milhões de vidas.”
“Esse fornecimento continuamente renovado de pessoas suscetíveis é o combustível para a evolução da virulência.” “Em outras palavras, a agroindústria está tão centrada nos lucros que fazer evoluir um vírus que poderia matar 1 bilhão de pessoa é considerado um risco que vale a pena”, afirmou.
Embora muitos patógenos silvestres estejam sendo extintos junto com suas espécies hospedeiras devido ao desmatamento, um subconjunto de infecções que antes se espalhavam relativamente rápido na floresta, mesmo que apenas por uma taxa irregular de encontros entre suas espécies hospedeiras típicas, agora está se propagando por populações humanas suscetíveis, cuja vulnerabilidade à infecção é muitas vezes exacerbada pelas atividades humanas. “Mesmo diante de vacinas eficazes, os surtos resultantes são caracterizados por maior extensão, duração e impulso. O que antes era um vazamento local agora é uma epidemia que atravessa as redes globais de viagens e comércio”.
A responsabilidade, segundo ele, é a do agronegócio como modo de produção de alimentos mesmo que apenas por uma questão de saúde pública. “A produção de alimentos altamente capitalizada depende de práticas que colocam em risco toda a humanidade. Neste caso, ajudando a desencadear uma nova pandemia mortal. Deveríamos exigir que os sistemas alimentares fossem socializados de modo a evitar que patógenos perigosos emergissem. Isso exigirá a reintegração da produção de alimentos às necessidades das comunidades rurais primeiro. Isso exigirá práticas agroecológicas que protejam o meio ambiente e os agricultores à medida que cultivam nossos alimentos. Em geral, precisamos curar as fendas metabólicas que separam nossas ecologias de nossas economias. Em suma, temos um planeta para vencer.”
Grupo de risco
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o novo coronavírus se espalha de forma mais agressiva entre pessoas idosas e entre aqueles com doenças crônicas não transmissíveis, como obesidade, hipertensão, diabetes ou debilitadas ou com baixa no sistema imunológico.
A indústria alimentícia surge logo como grande vilã da obesidade e diabetes, principalmente, com seus alimentos produzidos à base de açúcar, gorduras, farinhas ultraprocessadas e sódio com seu uso abusivo de açúcar e gorduras e sódio. No Brasil, segundo o Ministério da Saúde, 54% da população tem excesso de peso, sendo 57% do homens e 51% das mulheres. A frequência de diagnóstico de hipertensão arterial é de 24,3%, sendo maior em mulheres (26,4%) do que em homens (21,7%). Em relação ao diabetes, a prevalência é de 7,6% entre os brasileiros, sem distinção entre os sexos.
Em novembro de 2018, o Ministério da Saúde assinou acordo com a indústria alimentícia brasileira para reduzir, até 2022, o consumo de açúcar no país, que atualmente chega a 144 mil toneladas. Com a iniciativa, o Brasil se torna um dos primeiros países do mundo a buscar a redução no consumo de açúcar.
Mas o agronegócio, que têm como um dos pilares o uso cada vez maior de sementes transgênicas e agrotóxicos, também tem grande participação no adoecimento que coloca muitas pessoas no grupo de risco, aumentando as chances de complicação pela covid-19.
Maior consumidor mundial desses produtos, o Brasil reúne um volume cada vez maior de pesquisas sobre o impacto dos agrotóxicos ao meio ambiente e, principalmente, à saúde humana. O Instituto Nacional do Câncer (Inca) aponta que a exposição aos agrotóxicos aumenta em sete vezes a chance de câncer de pele. A equipe do professor Wanderlei Antônio Pignati, da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) constatou aumento de casos de câncer infanto-juvenil entre 2000 e 2005, quando o consumo de agrotóxicos aumentou 89% no estado naquele período.
Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo analisou a mortalidade por câncer e a utilização de agrotóxicos no Mato Grosso no período de 1998 a 2006. E constatou associação entre o uso desses produtos e a mortalidade por tumores de esôfago, estômago, pâncreas, encéfalo, próstata, leucemias e linfomas apenas nas faixas etárias de 60 a 69 anos e 70 anos ou mais.
Agrotóxico mais usado, o glifosato está cada vez mais presente no banco dos réus nos Estados Unidos, principalmente pela acusação de causar câncer em pessoas expostas. O Linfoma não-Hodgkin, que afeta principalmente o sistema imunológico, é um dos mais frequentes.
No último dia 24 de março completou 15 anos a Lei de Biossegurança (Lei 11.105)Sua promulgação está diretamente ligada a retrocessos ambientais e sanitários porque, ao retirar competências da União, sobretudo do Ibama e da Anvisa e quebrou o Sistema Nacional de Meio Ambiente ao concentrar as decisões sobre organismos geneticamente modificados (OGM) no âmbito da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio). Desde então esta supercomissão, com poder de dar a palavra final, aprovou todos os pedidos apresentados pelas empresas para liberação de transgênicos.
“Passada uma década e meia, os efeitos desastrosos desse atrelamento tecnológico aos interesses do mercado são sentidos no meio ambiente, na saúde e na minguante democracia. Mais de 90% das 94 variedades de plantas transgênicas liberadas no Brasil pertencem a grandes empresas estrangeiras. Praticamente não se encontram mais no mercado sementes que não sejam transgênicas. Não foram desenvolvidas novas plantas mais nutritivas e saborosas e o uso de agrotóxicos não diminuiu, pelo contrário”, diz trecho de documento assinado pelo Movimento Ciência Cidadã e pelo Grupo de Trabalho Biodiversidade, da Articulação Nacional de Agroecologia para marcar a triste data.
Os autores foram além. Destacaram o fato de as transnacionais dos transgênicos serem as mesmas dos agrotóxicos. E que a grande maioria das plantas geneticamente modificadas passou pela modificação justamente para resistir à aplicação de doses cada vez maiores de agrotóxicos. Assim, a promessa de que a adoção dos transgênicos levaria à redução do uso de agrotóxicos não passou de promessa.
O mercado para o produto cresceu no Brasil, tanto que atinge hoje cerca de US$ 10 bilhões anuais. “Os produtos mais vendidos continuam sendo herbicidas usados nas plantações transgênicas, como o glifosato e o 2,4-D, ambos classificados como potenciais cancerígenos pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer da Organização Mundial da Saúde”.
Quintal dessas empresas, o país regrediu à condição de colônia exportadora de commodities, com aproximadamente 50 milhões de hectares de lavouras transgênicas, sobre as quais são aplicados, todo ano, cerca de 700 milhões de litros de agrotóxicos, destacam os agrônomos Leonardo Melgarejo, do Ciência Cidadã, e Marciano Silva, do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), em artigo publicado no Brasil de Fato Rio Grande do Sul.
“Lavouras que, rompendo cadeias ecológicas, determinaram seleções negativas que multiplicam o número de insetos e plantas indesejáveis, de difícil controle, que se tornam imunes aos agrotóxicos e toxinas inseticidas que compõem os pacotes tecnológicos das lavouras geneticamente modificadas (GM). Com isso, são autorizados, sem estudo, o uso de novos agrotóxicos e são liberadas novas gerações de plantas GM, com tolerância a múltiplos herbicidas, provocando aplicação de caldas tóxicas sobre as quais não temos conhecimento científico”.
“E tudo isso vai parar na água, alterando o processo de desenvolvimento de todos os organismos e ampliando a fragilidade dos sistemas de proteção natural. Trata-se, portanto, não apenas da ocupação de territórios comprometidos com a produção de alimentos saudáveis onde agricultores e povos e comunidades tradicionais desenvolviam métodos amigáveis à natureza e indispensáveis para o todo. Defrontamo-nos com o avanço de crimes ambientais e contra a vida, de ecocídios e queimadas que ampliam o universo de populações desvalidas e asseguram um holocausto que promete ser devastador e concentrado entre os brasileiros esquecidos pelo Estado, desde o golpe”, destaca trecho do artigo.
Soberana e autoritária, a CTNBio instaurou um “estado de exceção” biotecnológico, segundo o Ciência Cidadã e a Articulação Nacional de Agroecologia. Afrouxou regras para as análises para acelerar ainda mais as liberações, além de dispensar planos de monitoramento pós-liberação comercial de eventos. Ou seja, não precisa mais verificar se determinado milho, por exemplo, está causando danos ambientais ou à saúde. Para se ter uma ideia da gravidade disso, uma experiência do cientista francês Gilles-Eric Séralini, em 2012, mostrou que ratos alimentados com uma variedade de milho transgênico da Monsanto desenvolveu enormes tumores.
Em tempo: a pandemia de covid-19 não foi motivo para o governo de Jair Bolsonaro (sem partido) segurar a sanha liberadora. Em março foi dado aval para mais mais 53 agrotóxicos (leia atos 17 e 22 no Diário Oficial da União). Somando-se os 101 liberados somente em 2020 aos 503 liberados em 2019, tem-se o total de 604 novas liberações em 15 meses.