Quando as máscaras caem: política, religiosidade e desavenças entre parentes. Por Gilvander Moreira*

Quem é minha mãe e meus irmãos?” (Mc 3,33), perguntou Jesus Cristo em plena missão no meio do povo. Jesus também brigou com parentes? Desde a última campanha eleitoral, temos ouvido falar de briga entre parentes, em grupos de família no WhatsApp, via telefone ou presencialmente. Como resultado destes embates, parentes se afastam, saem dos grupos de WhatsApp, porque discordam de posturas uns dos outros.  A evolução tecnológica colocou celulares nas mãos da maioria da população. Com isso a comunicação virtual se acelerou e possibilitou revelar o que há de bom nas pessoas, mas também o que há de pior e execrável. Hoje em dia é cada vez mais raro ouvir falar sobre um grupo de família no WhatsApp em que não tenha ocorrido chateação e discórdia entre parentes. Para além do grupo, muitos se bloqueiam definitivamente. 

Ocorre que tudo tem mesmo um limite e diante de tremenda desigualdade social sendo reproduzida cotidianamente, já não dá mais para suportar posturas capitalistas, egoístas, distribuição de fake news (armas de opressão) e a disseminação de visões religiosas absurdas e preconceituosas, que são, na prática, idolátricas.  Difícil tolerar pessoas que usam reiteradamente em vão o nome de Deus e torturam textos bíblicos para tirar conclusões que justificam  discriminação, preconceito e posturas que ofendem os empobrecidos e as maiorias sociais e étnicas no Brasil e no mundo. Não é atitude criminosa e genocida ficar publicando em grupos de WhatsApp de família e em outros lugares fake news e afirmações irresponsáveis e imorais incitando as pessoas a se exporem a se contaminarem e a contaminar outras pessoas com o perigoso coronavírus? Essa atitude diabólica pode levar à morte de milhares de irmãs e irmãos nossos. Isso não pode ser atitude de ser humano e muito menos de quem se diz pessoa cristã. 

Basta de tanta ignorância e analfabetismo político, religioso, econômico, social e ambiental. Não dá para conceber que pessoas possam continuar defendendo o (des)presidente da República diante da realidade que demonstra que ele está desestruturando o país, aumentando a violência e a desigualdade social. Só quem não ama o próximo e está em um oásis ou em uma bolha, longe da realidade dos empobrecidos, ou quem tem como único interesse a manutenção de privilégios ou o usufruto das benesses dessa máquina de moer vidas, que é o capitalismo, pode ainda se apegar em defender o que é indefensável sobre todos os aspectos, como é o caso do     facínora presidente, sua familícia e seus comparsas. 

Causa asco a atitude de quem continua chamando de comunista todos/as aqueles/as que questionam as atrocidades que o (des)presidente vem cometendo diariamente ao longo de seu desgoverno, mas, em especial, no contexto mais recente no qual se espera de qualquer governante o mínimo de competência e humanidade no enfrentamento da pandemia do coronavírus e não atitudes imprudentes e perversas como as que ele vem tomando. Espera-se de um governante, como virtudes essenciais, no mínimo, a prudência, o respeito à imprensa, aos cientistas, em especial, aqueles/as da área da saúde e da infectologia.  Mas, nem isto temos verificado por parte do (des)governo federal no Brasil. Ele e seus asseclas seguem com  ignorância, desmantelando as políticas sociais, educacionais e culturais da plural população brasileira. Ao que tudo indica, a síntese “Quanto pior, melhor” é o retrato fiel do desgoverno e de seus seguidores conhecidos por “gado” que chegam ao limite menosprezando até os nossos anciãos, porque só se interessam pela riqueza que a classe trabalhadora pode produzir para eles.

Não dá para tolerar posturas religiosas alienadas de quem diz que ama a Deus, “Deus acima de tudo”, mas não questiona essa engrenagem de violência que segue matando milhões de pessoas. Muitos falsos pastores, falsos padres e falsos cristãos estão sendo cúmplices de opressores sociais e violências no Brasil, porque reduzem a religião à autoajuda e à idolátrica teologia da prosperidade. Reduzem Deus a um quebra-galho para resolver “o meu problema” ou, no máximo “o problema da minha família”. E os problemas e os sofrimentos dos outros, das outras famílias?  Não devemos ter solidariedade para com quem está sofrendo por ser injustiçado?

O que está matando o povo no Brasil, nos EUA, na Europa, no Japão, na América Latina e na África, é, principalmente, o capitalismo e os capitalistas. Por que não questionar os capitalistas, os banqueiros, a turma do agronegócio? Os donos do agronegócio, por exemplo, com sua ganância desmesurada,  segundo pesquisas científicas, são os responsáveis por mais de 700 mil pessoas contraírem câncer por ano no Brasil, pelo uso indiscriminado de centenas de  agrotóxicos no afã de produzir mais e assim obter maior lucro a qualquer custo, mesmo que este custo seja contabilizado no crescente número de mortes humanas e de outras espécies naturais por doenças diversas que tem nos venenos sua origem. Cegos ou cegados, aqueles/as que levantam essa cortina de fumaça vendo “comunismo” em tudo escondem as verdadeiras causas da injustiça social, da violência e da superexploração do povo e antes, sim, auxiliam a manter o status quo opressor.

Muitos tipos de oração transferem para Deus responsabilidades que são nossas. Rezar ou orar para Deus acudir os desempregados, os doentes … não pode se tornar uma forma de lavarmos as nossas mãos, como Pilatos, diante das injustiças sociais que causam tantas mazelas e sofrimentos. É contraditório ser capitalista (egoísta, competidor/a, consumista, individualista) e ser pessoa cristã. Ou se é pessoa cristã ou se é capitalista. Não dá para servir a Deus e ao capital, ao mesmo tempo. Segundo o Evangelho de Jesus Cristo, pessoa cristã precisa ser anticapitalista, cultivar estilo de vida simples e austero e ser pessoa que gera fraternidade. Frei Humberto, padre carmelita holandês que trabalhou por mais de 40 anos no noroeste de Minas Gerais, um dia me disse: “A causa principal de todos os sofrimentos do povo é o capitalismo. Por isso, em toda missa que celebro, faço uma prece para que aconteça reforma agrária no Brasil.” Quando entrei para o seminário, em 1981, um frei me disse: “A solução para superar as injustiças sociais no Brasil é acabar com o capitalismo e implantar aqui o socialismo. Só que não podemos dizer isso para o povo, senão seremos considerados subversivos e comunistas”. Por que não podemos discutir o capitalismo, essa máquina de moer vidas? Reproduzir a opressão capitalista sempre pode?

Muitos padres e pastores não questionam o capitalismo e as práticas capitalistas, por ignorância ou porque lhes interessa mentir para o povo para controlá-lo e continuar acumulando riquezas e privilégios por meio de ofertas, como o dízimo, por exemplo. Interessa aos falsos padres e falsos pastores manter o povo na ignorância religiosa e manter postura política covarde, não confessada, mas que apoia quem mata como, por exemplo, aquela adotada pela bancada evangélica no Congresso Nacional, na qual mais de 100 pastores apoiam a bancada ruralista, a do boi, que, pelo agronegócio (monoculturas irrigadas com uso indiscriminado de agrotóxico) está desertificando o Brasil, disseminando doenças diversas, mas, principalmente, o câncer, acabando com as nascentes de água e com espécies animais e vegetais necessárias ao equilíbrio da natureza.

Recordemos sempre: chefes religiosos condenaram Jesus Cristo à morte. Nosso salvador Jesus Cristo foi torturado pelos podres poderes da política, da economia e da religião. Como pode alguém que se diz pessoa cristã defender quem defende tortura, defender quem aplaude milicianos (jagunços), defender quem já liberou mais de 600 tipos de agrotóxicos em 2019, defender quem mente descaradamente e divulga fake news?

Com a quarentena exigida pela pandemia do coronavírus, os capitalistas estão desesperados, porque estão vendo o tanto que dependem da classe trabalhadora. Se os trabalhadores param de trabalhar, o lucro dos patrões se dissolve como castelo de areia na praia. Por isso incitam as pessoas a voltarem ao trabalho e, na prática, a entrar na fila do matadouro, porque sabem que terão prejuízos que querem suprimir, mesmo que a custa de vidas humanas. Isto é necropolítica, é escolher quem deve viver e quem deve ser morto. Não é postura ética, é idolatria do capital e da morte. Quem está alardeando isso ama o ídolo capital.

Ponham o dedo na consciência, por amor às crianças, aos idosos, às pessoas com saúde frágil, ao Deus da vida e às próximas gerações. Parem de distribuir fake news, armas de morte e de insensatez. É preciso conhecer os verdadeiros inimigos e eles estão pousando de “cidadãos de bem”, mas são, sim, cidadãos de bens. Observem o que a Mãe Terra está nos mostrando neste momento tão sensível com a pandemia do coronavírus. O tempo está nos exigindo reflexão, lucidez, conversão e humanização.

Enfim, os véus caíram, as máscaras também. As desavenças entre parentes nos fazem recordar que Jesus Cristo perguntou: “Quem é minha mãe e meus irmãos?” (Mc 3,33). E se voltando para seus discípulos e discípulas, arrematou: “Quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mc 3,35). O Evangelho de Lucas explicita: “Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática” (Lucas 8,21). Ou seja, para além dos laços sanguíneos, devemos nos sentir membros da família humana que luta pela construção de um mundo para além do capitalismo, um mundo justo economicamente, solidário socialmente, ético, plural culturalmente, (macro)ecumênico religiosamente, sustentável ecologicamente e responsável geracionalmente. Em fim, até ser encontrado remédio ou vacina para a COVID-19, ficar em casa em quarentena é defender a vida. Eis um imperativo ético do momento gravíssimo que atravessamos[2].

07/04/2020.

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 – Coronavírus – A importância do uso de máscaras de proteção – Dr. Fabiano Hueb – 06/4/2020

2 – Capitalismo nu, por Wilson Ramos Filho, o Xixo – 27/3/2020

3 – Roda Viva com o biólogo Atila Iamarino – 30/03/2020

4 – COVID-19 e o Capitalismo em Estado Crítico – uma conversa com Ricardo Abramovay

*Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.

[2] Gratidão à Alenice Baeta, pós-doutora em Arqueologia, e à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fizeram a revisão deste texto.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

1 × cinco =