À espera do auxílio emergencial: “A gente vai ficando sem ter o que comer em casa”

Desespero e pressa: reunimos uma dezena de histórias da população potencialmente beneficiária do programa impactada pelo coronavírus para mostrar o desafio operacional de fazer o dinheiro chegar até elas

Por Ciro Barros, José Cícero da Silva, Thiago Domenici, Agência Pública

Maior de 18 anos, sem emprego formal, sem receber diretamente outros benefícios do governo, com renda familiar por pessoa inferior a meio salário mínimo, sem renda tributável superior a R$ 28.559 em 2018 e prestadora de serviços como Microempreendedor Individual (MEI), Marilene Raquel da Silva Lemos se enquadra nas categorias definidas para o pagamento do auxílio emergencial, uma transferência direta de recursos do governo federal voltada para trabalhadores impactados economicamente pelas medidas de quarentena. O governo federal lançou nesta terça-feira um aplicativo, um site e uma linha telefônica para começar a cadastrar a população elegível ao benefício de R$ 600 durante três meses – o valor pode chegar a R$ 1.200 para mães solteiras e ser recebido por até duas pessoas da mesma família no período. Quando foi entrevistada, porém, Marilene ainda não sabia como conseguir o benefício. “As informações não estão chegando como têm que chegar”, reclamou.

“Começo de ano é sempre difícil, mas quando veio a pandemia eu entrei em choque”, relata. Moradora do Jardim Santo Eduardo, no extremo sul de São Paulo, ela é dona de uma pequena confecção de roupas dedicada à temática da cultura afro-brasileira, batizada de Pérola Negra. Ela viu sua renda cair quase 100% quando a quarentena imposta como medida sanitária necessária para evitar o avanço do novo coronavírus passou a vigorar no estado de São Paulo. Ela diz que também aderiu à medida e tentou migrar as vendas para a internet, mas não teve muito sucesso. “Nesse tempo que eu não saí na rua pra vender, eu vendi duas peças. Uma de R$ 90 e uma de R$ 70”, relata.

Prestes a completar um mês em casa, Marilene vê a situação da família piorar. “Somos em sete, cinco adultos e duas crianças. No momento, só eu estava trabalhando, minha vó tem a renda dela [do INSS] e minha mãe é dona do lar. Tem duas irmãs que estão desempregadas já faz algum tempo”, relata. Na casa dela, a única renda fixa para os sete moradores vem de um benefício recebido pela avó, o Benefício de Prestação Continuada (BPC), no valor de R$1.045, um salário mínimo. “Algumas pessoas estão nos ajudando com cestas básicas, mas as contas estão todas paradas, [em relação aos] meus cartões todo mundo me ligando o tempo todo”, lamenta. Ela diz que o clima está a cada dia mais tenso em sua casa, com as crianças agitadas e que ela “quase surtou” na semana passada.

Alheios às discussões palacianas e ao vaivém político a respeito do auxílio emergencial, milhões de trabalhadores aguardam os R$ 600 anunciados pelo governo para tentar enfrentar a crise econômica trazida pela quarentena.

Quarentena comprometeu renda de três dos quatro membros da família de Vanessa

Além dos MEIs, categoria na qual Marilene se enquadra, estão elegíveis ao benefício todos os brasileiros maiores de 18 anos, sem emprego formal, que não recebem benefícios previdenciários ou assistenciais do governo federal exceto o Bolsa Família. Esses brasileiros precisam ter renda familiar per capita de até meio salário mínimo ou renda familiar mensal total de até três salários mínimos (R$ 3.135) até 20 de março de 2020, além de não terem rendimentos tributáveis superiores a R$ 28.559 em 2018. Também podem receber os contribuintes individuais do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) ou trabalhadores informais que estejam ativos no Cadastro Único do governo federal, uma base de dados formada para contabilizar a população elegível para programas sociais.

Segundo estimativas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), feitas com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua de 2018, caso o governo consiga atender a toda a população, inclusive a que está fora das bases cadastrais, e que é elegível ao benefício, seria necessário atender um total de 36,4 milhões de famílias ou 117,5 milhões de pessoas ao custo de R$ 99,6 bilhões. O governo federal aprovou por Medida Provisória um crédito extraordinário de R$ 98,2 bilhões para o auxílio. “[Atender essa população] É um grande desafio operacional. A ação precisa ser rápida e precisa ser segura. É preciso um equilíbrio entre rapidez e segurança”, aponta Letícia Bartholo, pesquisadora e gestora governamental em exercício na Diretoria de Estudos e Políticas Sociais (Disoc) do Ipea.

Um dos maiores desafios é cadastrar trabalhadores informais que não estejam nas bases cadastrais mais utilizadas pelo governo – como a do programa Bolsa Família e o Cadastro Único. Nessa situação está, por exemplo, a manicure Vanessa Silva. Mesmo com dez anos de trabalho em um salão de beleza no bairro de Perdizes, na zona oeste de São Paulo, ela nunca foi formalizada ou fez um cadastro como MEI. Também diz não receber Bolsa Família ou estar no Cadastro Único, base de dados da população de baixa renda mantida pelo Ministério da Cidadania. Sem poder fazer as unhas das clientes endinheiradas do bairro nobre onde trabalha, vem fazendo alguns serviços na própria casa. Vanessa trabalhava por comissão no salão de beleza e disputava com as demais manicures de lá. A renda, paga por quinzena, variava entre R$ 400 e R$ 800. Com a quarentena, está oferecendo seus serviços às vizinhas do bairro do Jaraguá, na zona norte de São Paulo. Mas o trabalho não tem sido suficiente. “A minha renda caiu bastante. Bastante mesmo”, relata. Segundo ela, a queda da renda familiar chegou à casa dos 90%.

A família de Vanessa tinha três fontes de renda. Ela é mãe solteira, mora com quatro filhos, dois deles, em idade para trabalhar, também ajudavam nas contas de casa. No entanto, a renda dos filhos também foi comprometida. Por conta da quarentena, seus dois filhos, que trabalham na indústria têxtil, tiveram os contratos suspensos. “Em janeiro, eu tive que parar de trabalhar porque fui fazer uma cirurgia. Quando eu estava para voltar ao trabalho, o salão fechou por causa da quarentena. Aí não deu para voltar”, relata. “Se durar mais um mês, vai ser difícil. As contas vêm, os custos de casa não param. Os meus filhos não sabem se vai ter pagamento agora”, diz.

Em situação semelhante, Amauri Cunha Soares viu desaparecer o trabalho informal como servente de pedreiro há aproximadamente um mês e meio. Diz que as coisas já estavam difíceis há mais tempo, mas que agora não encontra serviço nenhum. “Há seis, sete meses ainda dava pra conseguir alguma coisa, mas no momento agora é zero”, conta. “Vai acabando o dinheiro. A gente vai ficando sem ter o que comer dentro de casa. A despensa só vai esvaziando. O impacto é monstruoso não só na minha casa, mas na de todos os brasileiros”, desabafa. O filho, registrado, tem sido a única fonte fixa de renda. A esposa, diarista, também está em quarentena. Segundo ele, a renda da família caiu 80%. “Já está impossível de sustentar a casa. O trabalhador autônomo está ferrado”, diz.

Anderson*, 60 anos, é morador de rua há 16 anos em São Paulo. Sem Cadastro Único, Bolsa Família ou qualquer benefício estatal, vive de bico como guardador de carros e doações de comerciantes da região de Campos Elíseos, em São Paulo. “Eu já tentei fazer cadastro antes, mas nunca deu certo”, diz. Atualmente, Anderson paga R$ 10 diários para dormir numa pensão da região. “Antes eu tinha de onde tirar, mas agora, sem movimento e os comércios fechados, tá complicado de bancar”, conta. Grupo de risco, ele afirma que não tem medo da Covid-19 e mostra no braço que tomou a vacina contra gripe recentemente num posto de saúde local. “O pessoal lá é meu conhecido e me vacinou”, explica, sabendo que a vacina não resolve a situação de vulnerabilidade a que está ainda exposto diante do coronavírus. “Eu tento lavar as mãos quando dá.” Sua maior preocupação, no entanto, é poder se alimentar e bancar o aluguel diário da pensão como fazia antes da pandemia.

Só na cidade de São Paulo, existem 24,3 mil moradores de rua, segundo dados da prefeitura. Como Anderson, pouco mais de 2 mil têm mais de 60 anos.

Migrantes e refugiados também sentem o impacto da crise

Antes da guerra civil tomar a Síria, em 2011, Muna Darweesh era professora e não pensava em vir ao Brasil, a não ser para visitar. Com a guerra civil, ela e a família tiveram que fugir do país. Saiu pelo Egito e conseguiu um voo para São Paulo há seis anos. Na capital paulista, conseguiu se estabelecer no bairro do Cambuci, onde começou a tirar o sustento de casa vendendo pratos de sua terra natal em frente à Mesquita Brasil. Anos depois, montou um pequeno negócio com o marido, Wessam Aljammal, engenheiro de formação. O casal especializou-se em montar bufês de comida síria em festas e eventos corporativos. Com a pandemia do coronavírus, porém, a renda dos eventos foi a zero. De renda fixa, apenas R$ 170 do Bolsa Família recebido por Muna – valor insuficiente para ela fazer frente às necessidades da família com quatro filhos, um deles autista.

“Ano passado eles diminuíram o valor do Bolsa Família”, relata Muna. Para se adaptar à crise, ela faz marmitas com pratos sírios para entrega delivery. “Não está vendendo muito bem, mas não temos outro trabalho. Desde o dia 13 de março, todos os eventos e festas foram cancelados. Eu tenho pouco dinheiro porque pago o aluguel da casa, e as contas, os boletos, estão esperando. Ninguém quer entender a nossa situação”, reclama. Ela diz que tentou negociar o custo do aluguel com o proprietário do imóvel onde mora, mas sem sucesso. “Eles nos tratam de um jeito muito grosseiro. O dono disse para o meu marido que cada um tem que cuidar da sua vida”, conta. “As pessoas também ligam aqui para pedir as marmitas e querem entregas de graça. Ligam de Osasco, São Bernardo do Campo. É muito longe!”, avalia.

Outro refugiado, o colombiano Julio Werner Alvarez, chegou ao Brasil em 2011 e diz que é o pior momento desde que cruzou a fronteira. Saiu de seu país natal após ter sido alvo de um atentado das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), grupo armado que defendia a tomada do Estado. “Estou sozinho no Brasil, só com Deus. Mas sem parente nenhum”, conta. Diz que sua esposa e quatro filhos foram assassinados pelo grupo armado em 1998, em Medellín, sua cidade natal. “As Farcs exigiam que liberássemos nossos filhos para a guerrilha, mas eu não entreguei e eles os mataram”, relembra. Ele conta ainda que foi alvo de um atentado a tiros e fugiu da Colômbia. Ficou com projéteis alojados no corpo, conseguiu removê-los em uma cirurgia feita no Sistema Único de Saúde (SUS).

Desde que chegou ao Brasil, Julio vem se ocupando de diversos trabalhos informais: já foi professor de inglês e espanhol, guia turístico, pintor e agricultor, mas foi como pedreiro que ganhava a vida até a chegada da quarentena. “Nunca sofri tanto para conseguir trabalho e arrumar comida. Está muito difícil. Só passei sofrimento todo esse ano. Sem trabalho, sem benefícios, sem nada”, lamenta. “Gostaria de saber o que posso fazer para correr atrás desses benefícios”, indaga. Julio afirma ter conseguido no último mês fazer três diárias na área da construção civil, ganhando cerca de R$ 160. Hoje troca moradia por comida junto a outros trabalhadores do setor.

“É um esforço de guerra”, diz especialista sobre operacionalização do auxílio

Luís Henrique Paiva, pesquisador e gestor governamental na Diretoria de Estudos e Políticas Sociais (Disoc) do Ipea, diz que um dos maiores desafios é operacionalizar a transferência de recursos de maneira rápida, levando em conta as restrições sanitárias – evitando a corrida, e a aglomeração, de pessoas aos Centros de Referência de Assistência Social (Cras) ou a agências bancárias da Caixa, por exemplo. Paiva, que é coautor de duas notas técnicas do Ipea que avaliam o auxílio emergencial, sugere que é preciso montar uma folha de pagamento e checar se as pessoas têm conta em algum outro banco. “Eventualmente vai ter gente que não vai ter. Temos que checar os cadastros para evitar duplicidades. Tudo isso sem gerar aglomerações para o saque desses recursos, o que seria muito problemático do ponto de vista sanitário. Estamos em frente a uma operação de guerra, mesmo entre os mais conhecidos que são o público do Bolsa Família e do Cadastro Único. Você ainda tem o público do MEI, o público dos contribuintes individuais e daquelas pessoas que não estão em lugar nenhum. Como você vai fazer para encontrá-las é um grande desafio”, avalia Paiva. “Essa situação vai testar a capacidade operacional do governo”, afirma.

Para fazer frente à questão dos trabalhadores sem cadastro nas bases oficiais do governo – como o Cadastro Único e o Bolsa Família –, o governo lançou ontem (7 de abril) um aplicativo, uma central telefônica [Atendimento telefônico pelo número 111] e um site para que a população elegível ao benefício faça o cadastro. Segundo o presidente da Caixa, cerca de 10 milhões de cadastros foram efetuados no dia do lançamento.

O governo fará Transferência Eletrônica Direta (TED) para qualquer banco para aqueles trabalhadores que não tiverem como acessar o aplicativo, e o pagamento será feito em uma conta digital e gratuita, sem taxas de movimentação. O saque poderá ser feito em lotéricas, em terminais de atendimento eletrônico e em agências de bancos públicos federais. Os pagamentos devem começar amanhã, dia 9.

Segundo os cálculos do Ipea, há pelo menos 10,9 milhões de pessoas elegíveis ao auxílio emergencial fora das bases cadastrais do governo. “O número é especulativo, pois não há dados atualizados”, diz Paiva, referindo-se aos cálculos feitos com base na Pnad Contínua de 2018.

Segundo o ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni, o número pode ser ainda maior. Nas entrevistas coletivas, Onyx disse que a população elegível e não cadastrada pode chegar a 20 milhões de pessoas. Os beneficiários do Bolsa Família vão receber o valor do benefício automaticamente atualizado para o valor do auxílio emergencial no próximo dia 16 de abril. “É preciso fazer uma folha de pagamentos e fazer esse dinheiro chegar nas pontas. Há essa opção das pessoas fazerem um registro online de forma simplificada, mas você teria que ter uma segunda camada desse sistema para fazer conferências, verificar se as pessoas não são formais, por exemplo. Não é um sistema fácil. Você tem todo um problema de unicidade cadastral. Você tem que saber que a mesma pessoa não fez o registro três vezes, por exemplo. Há uma série de procedimentos. A Caixa e a Dataprev tem uma expertise grande. O desafio é fazer isso com a rapidez que o tempo atual exige”, afirma Paiva.

O governo divulgou o calendário de pagamentos nesta terça-feira e devem ser criadas 30 milhões de contas digitais para o público-alvo. Resta saber se o dinheiro chegará com a velocidade que as pessoas necessitam.

Imagem: “Começo de ano é sempre difícil, mas quando veio a pandemia eu entrei em choque”, diz uma das entrevistadas pela Pública – José Cícero da Silva/Agência Pública

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