Por Maíra Mathias e Raquel Torres, em Outra Saúde
A MAIS NOVA VÍTIMA DA PANDEMIA
Em Brasília, a carreata partiu do Eixo Monumental – via de acesso à Praça dos Três Poderes, onde estão localizados o Congresso, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Palácio do Planalto – e parou em frente ao quartel general do Exército. Lá, o presidente Jair Bolsonaro se uniu aos manifestantes vestidos de verde a amarelo. Em cima da caçamba de uma caminhonete, discursou: “Nós não queremos negociar nada, nós queremos ação pelo Brasil. O que tinha de velho ficou para trás, nós temos um novo Brasil pela frente”. Os atos, que aconteceram em outras cidades país afora, pediam intervenção militar para o fechamento do parlamento e do Supremo. Cartazes e palavras de ordem defendiam um “novo AI-5”. Ontem, foi Dia do Exército.
Os manifestantes querem o fim do isolamento no combate ao novo coronavírus. Para isso, defendem a revogação das medidas adotadas por prefeitos e governadores. Em São Paulo, onde a carreata também aconteceu sábado, os protestos se voltaram contra João Doria (PSDB). Por meio do celular, Bolsonaro participou do ato de ontem na capital paulista. Os manifestantes o ouviram postados diante Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). Do outro lado da linha, a chamada foi conduzida por um publicitário que trabalha na formação do partido do presidente, o Aliança pelo Brasil. Políticos ligados à legenda idealizada por Bolsonaro estiveram por trás da convocação dos atos em vários estados.
No Rio, os manifestantes de reuniram na Urca, onde se concentram vários prédios do Exército. O critério se repetiu em outras capitais, como Manaus, Goiânia, Belo Horizonte e Maceió. Em Fortaleza, quatro manifestantes foram presos por violar o decreto de quarentena. Em Porto Alegre, uma manifestante negra enrolada na bandeira do Brasil foi agredida por outros manifestantes por estar nua. Em Brasília, o discurso de Bolsonaro chegou a ser interrompido por um acesso de tosse. “Acabou a época da patifaria. É agora o povo no poder”, disse sem máscara de proteção.
REAÇÃO
“O mundo inteiro está unido contra o coronavírus. No Brasil, temos de lutar contra o corona e o vírus do autoritarismo”, afirmou ontem o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), para quem o país não tem “tempo a perder com retóricas golpistas”.
Ministros do STF também se manifestaram. Gilmar Mendes afirmou que invocar o AI-5 é “rasgar o compromisso com a Constituição”. Já Luis Roberto Barroso disse que “é assustador ver manifestações pela volta do regime militar”. Para Marco Aurélio Mello, uma escalada autoritária está em curso no Brasil. “Não sei onde o capitão está com a cabeça”, questionou.
Felipe Santa Cruz, presidente da OAB, comparou o discurso de ontem ao momento em que o general Júlio César violou a proibição do Senado romano e atravessou com suas tropas o rio Rubicão, desencadeando uma guerra civil. Para ele, Bolsonaro “atravessou o Rubicão” e a “sorte da democracia brasileira está lançada”.
Alguns generais do Exército, Aeronáutica e Marinha ouvidos pelo Estadão condenaram a presença de Jair Bolsonaro no ato em Brasília. Para um deles, a manifestação teve uma “simbologia dupla muito forte” por ter acontecido em frente ao QG e no Dia do Exército. Além disso, outros observaram, o presidente é o comandante em chefe das Forças Armadas e sua participação em um ato que pede intervenção militar tem “gravidade simbólica”. O jornal ouviu sete fontes militares anônimas. Três delas contemporizaram o episódio, apesar de manifestarem “desconforto”.
Quem não se manifestou sobre o ocorrido foi o presidente do STF Dias Toffoli. O ministro da justiça Sergio Moro é outro que silenciou. A situação do novo ministro da saúde, Nelson Teich, é delicada, já que além da forte carga política da manifestação do domingo, há a afronta às recomendações sobre distanciamento social na pandemia. Questionado pela Folha, o Ministério da Saúde enviou nota dizendo que não se manifestaria sobre o assunto. Antes, no sábado, Bolsonaro já havia provocado aglomeração ao descer do carro na Praça dos Três Poderes para comprar um picolé.
Hoje, editoriais e artigos de opinião na imprensa condenam Bolsonaro. Para O Globo, “à medida que se sente legalmente tolhido a praticar um enfrentamento sem base científica da epidemia da covid-19”, Bolsonaro “radicaliza, tendo chegado a um ponto perigoso ontem”. Na análise do colunista da Folha, Igor Gielow, a crise política “subiu de patamar” e o isolamento do presidente o levou a “dobrar seu apelo aos militares”, colocando “as Forças Armadas ante um impasse”. “Agora, os fardados terão de se posicionar sobre as intenções de seu comandante nominal”, escreveu.
O Fórum Nacional dos Governadores havia divulgado no sábado uma carta de apoio ao Congresso, quando a crise política se restringia aos ataques feitos nos últimos dias por Bolsonaro a Rodrigo Maia. “A saúde e a vida do povo brasileiro devem estar muito acima de interesses políticos, em especial nesse momento de crise. Não julgamos haver conflitos inconciliáveis entre a salvaguarda da saúde da população e a proteção da economia nacional, ainda que os momentos para agir mais diretamente em defesa de uma e de outra possam ser distintos”, diz o documento assinado por 20 governadores, dentre eles políticos de direita como Ronaldo Caiado (Goiás) e Carlos Moisés (Santa Catarina).
Em tempo: ontem, depois do ato, Bolsonaro fez uma transmissão ao vivo em que continuou os ataques ao presidente da Câmara dos Deputados. Ele mostrou trechos de uma entrevista do ex-deputado federal Roberto Jefferson concedida a blogueiros de direita em que ele acusa Maia de fazer um acordo com a esquerda para aprovar o impeachment. Entre quinta e sexta-feira, Maia sofreu o maior ataque do ano no Twitter. Comandado por 238 mil perfis e robôs bolsonaristas, a investida totalizou 1,6 milhão de postagens com a hashtag #ForaMaia.
NEGOCIAÇÃO COM O CENTRÃO
Em uma tentativa de isolar o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, o governo vem se reunindo com líderes dos partidos do Centrão – PP, PL e PSD – há duas semanas. O Planalto acena com cargos do segundo escalão, como indicações para a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), e já tinha acertado o loteamento de estruturas como o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) e a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e da Parnaíba (Codevasf). Agora, é preciso ver se a participação no ato que pedia o fechamento do Congresso vai melar a negociação.
NO MINISTÉRIO DA SAÚDE…
A insinuação de que indicaria “alguns nomes” tirando a autonomia do novo ministro em escolher seu secretariado parece estar se confirmando. Segundo O Globo, Jair Bolsonaro quer nomear um militar para chefiar a Secretaria Executiva, segundo posto mais importante da Pasta. O escolhido seria o general Eduardo Pazuello, que coordenou a operação que distribuiu por vários estados do país venezuelanos que chegaram em Roraima durante a crise imigratória.
Além disso, Bolsonaro teria dado ao contra-almirante Flávio Rocha a missão de acompanhar a transição no Ministério. Rocha é chefe da Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos, órgão ligado à Presidência da República.
Mas o patrulhamento do ministro Nelson Teich já passou do plano das especulações de bastidores para a realidade. Todas as reuniões internas do ministro em seu primeiro dia no cargo foram acompanhadas por um assessor de comunicação do Palácio do Planalto chamado Samy Liberman, de acordo com a Folha.
Na cerimônia de posse, que aconteceu na sexta-feira, houve outra demonstração de poder do Planalto. Representante do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), entidade que reúne os gestores estaduais e é parte da chamada gestão tripartite do SUS, foi barrado na porta e não pode participar. E o Conselho dos Secretários Municipais de Saúde (Conasems) foi avisado de que sua entrada não seria permitida, o que fez com que o presidente da entidade, Mauro Junqueira, decidisse evitar o deslocamento para a posse. Em um primeiro momento, o presidente do Conass, Alberto Beltrame, disse a‘O Globo que as entidades fariam uma nota de repúdio conjunta. Depois, publicou no site do Conass um relato informando que Nelson Teich ligou para ele e apresentou formalmente pedido de desculpas pelo ocorrido.
No discurso de posse, o novo ministro afirmou que é um “ex-médico” que, há anos, vinha atuando como empresário da saúde.
Ontem, Teich participou da reunião remota dos ministros de saúde do G-20, que reúne as maiores economias do mundo. E deu mostras de que pode se alinhar com o movimento de oposição à Organização Mundial da Saúde (OMS) comandada por Donald Trump, que anunciou a suspensão do pagamento dos EUA ao organismo na semana passada. Em meio a esse contexto, Teich afirmou que o Brasil reconhece o papel da OMS, mas que gostaria de uma “abordagem integrada com outras organizações” para avaliar seu desempenho. “Quanto mais importante é a organização, mais crítico é mostrar os benefícios que vêm dela”, disse. A reunião contou com a participação do diretor-geral da OMS, Tedros Adhanon.
MANDETTA
A demissão de Luiz Henrique Mandetta é condenada por 64% dos brasileiros, segundo o Instituto Datafolha. A Agência Pública faz um relato de como o chamado “gabinete do ódio”, que reúne Carlos Bolsonaro, auxiliares e perfis na internet, atuou na estratégia de derrubar o ex-ministro e está à toda disseminando fake news sobre o isolamento social para que as medidas adotadas em estados e municípios sejam questionadas e relaxadas.
A propósito: quem também está sendo atacada nas redes pelo gabinete do ódio é a ministra da agricultura Tereza Cristina, que é do DEM, partido de Maia e Mandetta. Segundo o Estadão, ela vai pedir hoje a Jair Bolsonaro que ele contenha a ação dos “haters”.
BATALHA EM TORNO DO ENEM
O ministro da educação Abraham Weintraub está decidido a tumultuar a resposta brasileira à epidemia de covid-19. Depois dos ataques à China feitos nas últimas semanas, no sábado ele afirmou que pretende premiar universidades que estão mantendo aulas. O ministro também é contra o adiamento do Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem, e afirmou que o governo vai recorrer de uma decisão da justiça federal de SP que determinou que o MEC mude o calendário do exame em razão do adiamento das aulas em quase todo o país. “O Brasil não pode parar!” e “VAI TER ENEM!” são algumas das mensagens de Weintraub no Twitter.
PREENCHENDO ESPAÇOS
O Brasil não tem um protocolo geral para implantar e relaxar quarentenas. Como o presidente da República manda às favas qualquer defesa do isolamento, nem sabemos o quanto isso é realmente ruim… Mas o fato é que o vazio na esfera federal faz com que diferentes estados e municípios adotem critérios e medidas totalmente distintas, como nota a Folha. No estado de São Paulo, ainda o campeão em número de infecções e mortes, municípios do interior já flexibilizam regras e permitem atividades em igrejas e salões de beleza, por exemplo. A questão é que, sem testes suficientes, eles nem sabem em que ponto da curva de contágio estão, nem portanto como o coronavírus está evoluindo ali, e não têm como prever os próximos dias e se o sistema de saúde vai dar conta. Sem isso, a única arma é o isolamento.
Segundo um estudo publicado pelo Ipea, Ceará, Goiás, Sergipe e Santa Catarina foram os estados que decretaram ações mais drásticas; os menos restritivos foram Bahia e Mato Grosso do Sul.
Mas, se não há critérios para fechar, o plano para reabrir já foi desenvolvido. Não pelo governo, mas pela Fiesp: um protocolo de retomada de atividades foi divulgado ontem pela entidade, que agora deve enviá-lo ao Planalto. O documento não fala em datas para o início da retomada, mas diz que o “final da quarentena” deve ser “aproveitado” para aumentar a capacidade de testagem e a disponibilidade de leitos de UTI e de equipamentos de proteção individual.
Essas condições, porém, não aparecem como limitantes para a reabertura, que aconteceria em três etapas: no primeiro dia, seriam abertas creches e escolas, comércio varejista, restaurantes e o transporte no horário de pico. Duas semanas depois, shopping centers e demais serviços. No 28º dia, seria liberada a entrada em parques com controle de acesso. No 42º dia, voltariam cinemas, academias, teatros, museus e universidades. A cada sete dias, a situação seria reavaliada, e o protocolo também. As etapas ṕropostas nem são ruins – o problema maior é a definição do primeiro dia, que se acontecer ainda na subida da curva de contágio e sem condições adequadas do SUS, tem tudo para ser uma catástrofe.
A propósito: entre a população, o apoio às quarentenas caiu 8 pontos percentuais nas últimas semanas, de 76% para 68%, segundo o Datafolha. E só 36,7% dos adultos brasileiros adotam todas as medidas básicas de prevenção ao coronavírus, como evitar aglomerações, lavar as mãos e cobrir a boca com o braço ao tossir e espirrar. A conclusão é do Ministério da Saúde, com base em pesquisa telefônica que ouviu duas mil pessoas.
O LADO DOS TRABALHADORES
Não é de se espantar que as pessoas queiram voltar à vida normal. Mais de um mês após o anúncio das primeiras medidas restritivas nos estados, a maior parte dos trabalhadores informais ainda não viu a cor dos R$ 600 emergenciais. Mais de 40 milhões de pessoas já se cadastraram o auxílio, mas a maior parte dos cadastros ainda está em fase de análise, segundo O Globo.
Os pagamentos estão previstos até junho, prorrogáveis até dezembro. E, entre economistas, aflora o debate sobre a necessidade de já pensar nessa prorrogação. Isso porque cada vez mais fica evidente que o caminho do coronavírus no Brasil está longe de acabar. E, mesmo quando os contágios caírem ou mesmo zerarem, os empregos e a ocupação não devem subir na mesma hora. A reportagem do Estadão perguntou ao Ministério da Cidadania o que pretende fazer, mas não obteve resposta.
Enquanto isso, está tudo certo para que trabalhadores celetistas tenham salários e jornadas cortados. O plenário do STF derrubou a liminar do ministro Ricardo Lewandovski e julgou constitucional a medida provisória que permite a redução com base em acordos individuais, sem a mediação dos sindicatos.
SEGURANDO AS PONTAS
Direto do front, profissionais de saúde conversaram com o Outra Saúde sobre como estão lidando com uma situação nunca antes vivida, sem ter nenhum mapa da mina. De São Paulo, epicentro da pandemia, a Camaragibe e Fortaleza, onde há problemas com leitos de UTI. De Porto Alegre, onde profissionais da Saúde da Família percorrem a cidade, à zona rural de Petrolina, que não registrou casos. Os áudios são muito fortes e estão no Tibungo, podcast do Outras Palavras. Ouça aqui.
DOSES HOMEOPÁTICAS
Os leitos extras para estados que estão em colapso hospitalar estão chegando, mas em conta-gotas. Fortaleza abriu um hospital de campanha cuja construção ainda não está finalizada, e conseguiu dez leitos de UTI e 209 de enfermaria. O Amazonas abriu um novo hospital com 82 vagas para pacientes com covid-19, sendo 16 de UTI. Outros leitos devem ser abertos nas próximas semanas, e a capacidade total é de 450. A unidade, que pertence a uma universidade privada, vai custar R$ 866 mil aos cofres do estado. E houve uma questão jurídica envolvendo o aluguel: um juiz chegou a suspendê-lo, porque há cerca de 200 leitos não usados no hospital (estadual) Delphina Aziz, mas a decisão foi derrubada.
No Rio,94% das UTIs reservadas para pacientes de coronavírus estão ocupadas; considerando todos os leitos de UTI, de todo tipo de atendimento, 74% estão ocupados. Ontem terminou a construção de um hospital de campanha com 500 leitos, sendo cem de UTI.
PRIMEIRAS MORTES
Morreram as duas primeiras pessoas no sistema prisional do Brasil. Dois idosos: um de 73 anos no Rio, outro de 67 anos em Sorocaba, São Paulo. O país já é o quinto do mundo com o maior número de infecções em presídios, com 54 casos confirmados e 181 suspeitos. Com penitenciárias superlotadas e dificuldade para manter isolados os pacientes, há muito tempo o Conselho Nacional de Justiça recomendou que sejam tomadas medidas como a reavaliação de prisões provisórias, concessão de prisão domiciliar a presos que cumprem regime semiaberto e aos que fazem parte dos grupos de risco, e transferência de pacientes com confirmação de covid-19 para o regime domiciliar. Mas o ministro da justiça Sergio Moro classificou o cenário possível como “solturavírus”. Ainda assim, várias entidades seguem se manifestando no sentido de garantir o direito à saúde nas prisões.
SUBNOTIFICAÇÃO À CHINESA
O número oficial de mortos em Wuhan cresceu em 50%. Na sexta-feira, a cidade acrescentou quase 1,3 mil óbitos à sua lista, que passou de 2.579 para 3.869 mortes. O total nacional ainda não foi atualizado, mas passou de 3.342 para cerca de 4,6 mil.
Segundo as autoridades, a nova conta se deve a novos dados recebidos de várias fontes, incluindo funerárias e prisões – as mortes fora dos hospitais, como as que ocorreram em casa, não haviam sido registradas antes. O comunicado oficial também afirma que, com o sistema de saúde sobrecarregado, casos foram relatados erroneamente, e que a falta de capacidade de testes nos estágios iniciais fez com que muitos pacientes não entrassem nas estatísticas. Como vimos aqui na news quando ainda não havia pandemia, os critérios para diagnosticar a doença na China foram atualizados várias vezes.
A mudança vem numa hora complicada e pode ser uma resposta a acusações, ecoadas principalmente pelo histérico Donald Trump, de que a China estaria encobrindo seus dados. Outros ao redor do mundo, como o presidente francês Emmanuel Macrón e o ex-ministro Mandetta no Brasil, também já levantaram suas suspeitas. Em entrevista à agência de notícias oficial Xinhua, um funcionário não identificado do centro de comando epidêmico de Wuhan disse que a revisão era importante para proteger a “credibilidade do governo” e “manter o respeito por cada vida”. O governo chinês segue defendendo sua transparência: “Nunca permitiremos ocultação”, disse um porta-voz do Ministério das Relações Exteriores.
Pode ser só coincidência. Como já cansamos de ver, a maior parte dos países está subnotificando infecções e mortes, em parte por incompetência dos seus governos, em parte porque é mesmo difícil manter essas contas em dia quando se está no olho do furacão. Mas, embora não façamos coro com Trump e com suas teorias da conspiração, temos visto há tempos a preocupação de alguns analistas sobre o porquê de os números chineses serem tão pequenos. A Alemanha, cuja resposta tem sido apontada como exemplar no combate ao coronavírus, já teve mais mortes do que o país asiático, embora sua população seja 20 vezes menor.
Recentemente, pesquisadores da Universidade de Hong Kong estimaram que havia cerca de 232 mil casos na China até o fim de fevereiro, em vez dos cerca de 80 mil registrados na época. Também sabemos que o país silenciou vários denunciantes no auge do surto por lá, incluindo um médico que alertou sobre o alcance do coronavírus ainda em dezembro. Por outro lado o sucesso chinês não é impossível. Temos países como a Coreia do Sul, com 50 milhões de habitantes e só 236 mortes, e não há muitas autoridades desconfiando desses dados… No meio dessa verdadeira disputa midiática, de longe, é muito difícil avaliar o que realmente pode estar acontecendo.
EM BUSCA DE UM REMÉDIO
O Reino Unido começou a maior testagem do mundo para medicamentos contra o coronavírus. São cinco mil pacientes em 165 hospitais do NHS, o sistema público de saúde britânico. A hidroxicloroquina e a azitromicina estão sendo testadas separadamente, e, se derem algum efeito, vão ser combinadas. Também fazem parte do estudo uma combinação de dois medicamentos anti-retrovirais usados no tratamento do HIV, o lopinavir-ritonavir, e a dexametasona, um tipo de esteróide. Em breve, devem ser incluídos outros medicamentos. Os pesquisadores não conseguiram o remdesivir (que, como dissemos na semana passada, é a droga mais promissora até o momento), por falta de estoque: o remédio está sendo testado nos EUA e na China.
Por aqui, a rede Prevent Senior lançou na imprensa, com certa pompa, os resultados de um estudo conduzido com seus pacientes. No grupo de 636 pessoas com covid-19 ou suspeita da doença, 412 foram tratados com hidroxicloroquina e azitromicina, e 1,9% precisaram de internação, contra 5,4% no grupo que não recebeu as drogas. Mas, além de o estudo não ter sido publicado ainda em nenhuma revista (nem mesmo nos sites que publicam preprints, ou seja, trabalhos não revisados), ele tem falhas gravíssimas. O texto do Questão de Ciência detalha todas elas. E o próprio autor disse à Folha que a forma como a pesquisa foi conduzida impede que sejam tiradas conclusões.
O NOVO NORMAL
Junto à busca por medicamentos, mais de cem estudos sobre vacinas já foram anunciados e cinco estão em fases mais avançadas, com testes em humanos. O balde de água fria vem de David Nabarro, professor de saúde global do Imperial College de Londres: “Alguns vírus são muito, muito difíceis quando se trata de desenvolvimento de vacinas – portanto, no futuro próximo, teremos que encontrar maneiras de seguir nossas vidas com esse vírus como uma ameaça constante (….). Isso significa isolar aqueles que mostram sinais da doença e também seus contatos. Os idosos terão que ser protegidos. Além disso, será necessário garantir a capacidade hospitalar para lidar com os casos. Esse será o novo normal para todos nós”.
PRÓXIMO EPICENTRO
O mundo tem hoje 2,4 milhões de casos confirmados de covid-19, com 165 mil mortes. A Europa sozinha acaba de bater a marca de cem mil óbitos (dois terços do total), com mais de um milhão de casos. Países como Itália e Espanha, sabemos, puxam os números para cima. Mas, enquanto a situação por lá parece melhorar, a OMS alertou que o próximo epicentro do coronavírus no mundo pode ser o continente africano – é provável que morram 300 mil pessoas e que 30 milhões sejam jogadas para a pobreza, segundo a Comissão Econômica da ONU para a África. Não há respiradores suficientes para lidar com a pandemia, mais de um terço da população não tem acesso adequado à água e quase 60% dos moradores das cidades vivem em favelas superlotadas. Por outro lado, nas áreas rurais, menos lotadas, quase não há serviços de saúde. Foram pedidos US$ 100 bilhões para o combate no continente, além da suspensão do pagamento da dívida externa.
E, na medida em que a China começa a vigiar para eliminar seus casos importados, migrantes africanos denunciam que têm se tornado alvos de suspeita, sendo submetidos a despejos forçados, quarentenas forçadas e testes compulsórios em massa em Guangdong, cidade do sul do país. Os depoimentos também dão conta de que sua entrada tem sido vetada em restaurantes, supermercados e hospitais.
BONS EXEMPLOS
Entre os países que conseguiram conter o coronavírus, pelo menos dois se destacam por serem menos ricos do que Alemanha, Coreia do Sul ou China. Vizinha da Espanha, Portugal tem hoje menos de 20 mil casos e cerca de 600 mortes. Segundo o governo, já atingiu o pico das infecções, e elas permanecem estáveis. Na Grécia, há cerca de dois mil casos e cem mortes.
O segredo de ambos foi o tempo da resposta para medidas de restrição de mobilidade. Na Grécia, o primeiro-ministro pediu um plano de resposta em janeiro; houve desde cedo controle nos aeroportos e medidas para informar a população. Duas semanas após a confirmação do primeiro caso, escolas e universidades foram fechadas. Logo após a primeira morte, foram fechados vários serviços, com cinemas, academias, clubes e restaurantes. Uma semana depois, veio o confinamento.
Também em Portugal, as medidas nacionais de isolamento vieram cerca de duas semanas após a confirmação dos primeiros casos. E a população aderiu em massa. Mas, apesar da situação aparentemente estável, o país não planeja começar a afrouxar o isolamento tão cedo. O entrave para isso é, como em toda parte, a carência de testes para avaliar se o surto voltar. E, com todo mundo em casa, é muito improvável que já haja imunidade de rebanho no país. Qualquer relaxamento sem acompanhamento pode trazer graves problemas.
O CASO ALEMÃO
Ao que parece, o governo de Angela Merkel parece justamente querer caminhar para a imunidade de rebanho, com um grande percentual da população contaminada – mas com controle total do que está acontecendo, e não da forma desastrosa como Boris Johnson aventou fazer no Reino Unido. Tanto que o número de casos é grande (mais de 140 mil hoje), e o número de mortes não é irrelevante (são cerca de 4,6 mil, e a taxa de mortalidade vem subindo levemente nos últimos dias). As testagens em massa desde o início são um indicativo dessa estratégia.
O plano de reabertura, após um período relativamente curto de isolamento, também: como há uma ideia bastante precisa do número de infectados e da taxa de infecção, e como a capacidade de testagens do país segue alta, é possível afrouxar o isolamento e seguir medindo essa taxa para calcular até que ponto o sistema de saúde consegue segurar os casos graves. A ideia é calibrar o fim do isolamento de modo que a economia volte a girar com o menor número possível de mortes. Não há consenso sobre as medidas, porém. Conforme o Der Spiegel, cientistas temem aumento nos casos, enquanto empresários acham que a abertura é lenta e confusa demais.
–
Foto: Reprodução