Em tempos da Covid 19, a classe média “descobre“ que está no mesmo barco furado dos pobres. Por Joaquim Shiraishi Neto(1)

Aqui em casa, em isolamento físico e “distanciamento social”, organizando a minha rotina, lendo e escutando lives – puxa! acabei de sair de uma -,  decido passar a limpo algumas anotações.

No geral, estamos aceitando todas as medidas dos governos (federal e estaduais) para combater a pandemia da Covid 19, sem qualquer tipo de questionamento. O medo da morte faz com que aceitemos os argumentos da urgência e da ciência como critérios válidos para justificar as medidas dos governantes, sem nos darmos conta de que algumas delas violam o catálogo de direitos humanos (liberdade, privacidade, intimidade, propriedade, pluralidade e os direitos sociais). O governo de São Paulo, por exemplo, está se valendo dos dados móveis dos celulares das pessoas para monitorar e controlar a movimentação, os deslocamentos e as aglomerações nas cidades do Estado, seguindo o padrão biopolítico adotado pelos países asiáticos (Coreia do Sul, Hong-Kong, Taiwan , Singapura)[2].

Argumentos como esses da urgência e da ciência e seu colorário, a insegurança, no caso, o medo de ser infectado e da morte, são problemáticos, pois são mobilizados para reproduzir práticas autoritárias. O sentimento de insegurança, gerado pelo medo, lembra Rancière[3], “é um modo de gestão dos Estados e do planeta para reproduzir e renovar em círculo as próprias circunstâncias que o mantêm”  (2005,  p. 167 – tradução livre do autor).

Diante do sentimento do medo, não nos atentamos para a necessidade da democratização das informações, muito menos, para a participação e para o controle sobre as decisões políticas que afetam as nossas vidas.

Há muito tempo a ciência tem um lado, o do mercado[4], ignorando os problemas sociais (fome, doenças, desemprego) e as desigualdades geradas por sua mercantilização; as disputas em torno dos usos da cloroquina para o tratamento das pessoas infectadas pela Covid 19, defendidos por figurões do setor financeiro e farmacêutico, evidenciam que os interesses econômicos sempre estiveram no jogo.

Nesse mesmo contexto, vejo que a necessidade de isolamento físico e distanciamento, como forma de evitar a infecção do coronavírus, expõe o crime cometido pelos governantes em abraçar os ditames da economia neoliberal, que retira da sociedade as formas de proteção social dos indivíduos, das comunidades e da natureza. Para Svampa[5]: “las causas socioambientales de la pandemia muestran que el enemigo no es el virus em sí mismo, sino aquello que lo ha causado.” (2020, p.06 – grifo meu). Corrobora a autora que a devastação da biosfera e a expulsão das comunidades de seus territórios tradicionais em diversos lugares do planeta para a instalação de atividades econômicas voltadas à mineração, o cultivo de monoculturas, a geração de energia e a agropecuária, decorrentes do modelo econômico adotado pelos governos estão ligados diretamente a esses surtos epidêmicos (no Brasil, listo: a Dengue, a Zica vírus, a Chikungunya….).

No nosso caso, não acredito que esse governo e seus gestores estejam de fato preocupados em gerir a capacidade do SUS para atender a demanda colocada pela população pobre frente à pandemia da Covid 19, mas sim, penso que eles, incluindo a classe média brasileira, “descobriram” que estão no mesmo barco furado, pois mesmo o sistema privado de saúde está no seu limite, sem condições, portanto, de atender as demandas hospitalares daqueles poucos cidadãos que possuem um plano de saúde, ou mesmo recursos para o tratamento médico necessário. Eis o que se esconde por trás da cena: os pobres não podem adoecer da Covid 19 porque vão arrastar, em sua tragédia, a classe média. E aí entra o Estado como gestor dos recursos do SUS para garantir também o atendimento da classe média, que já vinha há muito demonizando o destino dos recursos públicos para áreas como a previdência e assistência social, a educação, a saúde, porque se achava suficientemente protegida sob o guarda-chuva dos planos privados. Agora que esta proteção se mostrou altamente precária, ela retorna arrependida e temerosa, batendo panelas nas sacadas dos prédios…

A  Covid 19 já provou que não é doença de idoso, nem de pobre, mas é doença que pode atingir a todos – inclusive a saúde da classe média e seus hábitos de vida, de consumo, seu sagrado direito de ir e vir.

Oxalá a pandemia da Covid 19 possa criar laços de solidariedade, de convivência e de esperanças por um mundo melhor e que os 99%, que incluem a classe média, e que ela,  embora ela não se reconheça nessa estatística, possa se mobilizar também pelos pobres, que sempre ignorou, diante da ameaça que paira sobre o planeta Terra.


[1] Advogado da Sociedade Maranhense de Direitos  Humanos (SMDH). Professor do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão (PPGCSOC-UFMA). Pesquisador FAPEMA e CNPq. Bolsista produtividade.

[2] A propósito do uso de dispositivos de tecnologia a pretexto de combater o Covid 19, sugerimos PRECIATO, Paul. Encerrar y vigiar. Paul Preciado y la gestión de las epidemias como reflejo de la soberania politica. Disponível em: https://www.lavaca.org/notas/encerrar-y-vigilar-paul-preciado-y-la-gestion-de-las-epidemias-como-un-reflejo-de-la-soberania-politica/ Acesso em: 15 de abril de 2020.

[3] RANCIÈRE, Jacques. 2005. Le príncipe d’insécurité. In: Chroniques des temps consensuels. Paris: Éditions Du Seuil,  p. 163-167.

[4] SANTOS, Boaventura de Souza. 2000. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a politica na transição paradigmática. São Paulo: Cortez, 2000.

[5] SVAMPA, Maristella. 2020. Reflexiones para un mundo pos-coronavirus. Disponível em: https://www.nuso.org/articulo/reflexiones-para-un-mundo-post-coronavirus/. Acesso em 15 de abril de 2020.

Comments (5)

  1. Muito bom, extrema visão sobre a realidade e o patrocínio dos poderosos sendo manipulados de maneira exclusa e impiedosa utilizando como cavalo o poder público. Nos resta a Mãe Natureza à qual as classes mais sofridas sempre se ampararam , que Deus nos proteja , pois em toda extensão , os segmentos que se alimentam da Fé alheia, também recuam.

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