Caso da Rocinha expõe desigualdades estruturais das populações de favelas no enfrentamento à pandemia

No Informe Ensp

Em apenas 5 dias, entre 10 a 15 de abril, o número oficial de pessoas diagnosticadas com Covid-19 na Rocinha tinha passado de 6 para 35, e 3 pessoas haviam morrido até então. A preocupação só aumenta. De acordo com Wallace Pereira, embora o Estado contabilize oficialmente apenas 3 óbitos em decorrência da Covid-19, a associação de moradores calcula que pelo menos 12 moradores da comunidade tenham morrido em decorrência da infecção pelo novo coronavírus, conforme declarou ao jornal Extra, no dia 17/04. Entre as mortes causadas pela doença está a do garçom Alexandre Moreira Mariano, de 45 anos, que faleceu dezessete dias após seu pai.

A região é densamente povoada, com cerca de 120 mil habitantes. “As questões da Rocinha são muito parecidas com as de outras favelas. Temos uma das maiores densidades demográficas da cidade, o que torna muito complexo o isolamento, porque, mesmo em casa, as pessoas estão aglomeradas. Há casas com seis, dez, às vezes até mais de dez pessoas, e poucos cômodos, pouca ventilação, pouca estrutura, pouco conforto, falta de água, falta de luz. “A gente tem se mobilizado para que a Cedae chegue até a casa das pessoas”, conta Michele Silva, coordenadora do jornal comunitário Fala Roça.

“Eu mesma conheço um rapaz que está em casa isolado por ter sintomas. Mas eu não sei quais são as condições que ele tem para se isolar”, contou Camila Perez, produtora cultural em uma TV comunitária local, a TV Tagarela. “Existem sub-bairros e diferenças socioeconômicas também dentro da própria comunidade, e a população de áreas mais estruturadas se organiza para ser solidária com as áreas mais vulneráveis”. “A UPA tem recebido, todos os dias, pessoas com sintomas, mas só é transferido para o hospital quem está gravíssimo. Uma das coisas mais importantes, neste momento, é não repassar informações erradas. Da janela da sua casa, ela via ainda o comércio local aberto nos primeiros dias de abril e muitas pessoas nas ruas. Ouvia também passar um carro de som com recomendações de higienização e orientações. Ela percebeu que os discursos do governo tiveram impacto direto no aumento da movimentação nas ruas ao longo da primeira semana de abril principalmente. “A cultura local, de esperar acontecer, se junta ao discurso. Os comerciantes ficam expostos, mas eles também estão sem opção e não sabem em quem acreditar”, lamenta Camila, que só saiu de casa para vacinar seu bebê de 3 meses. “Fui porque a pediatra dele recomendou e usei carro particular”, explicou.

“Muitas vezes, é difícil seguir as orientações básicas da OMS, lavar as mãos e se manter dentro de casa. Muitas pessoas só ficam em casa, normalmente, para comer ou dormir, e aí é difícil convencê-las a ficar dentro de casa neste contexto”, observa Camila. Ela vê uma relação direta entre pronunciamentos do governo e o movimento das ruas. “A gente estava conseguindo até fazer a comunicação eficaz sobre a importância de ficar em casa, mas, depois, não teve jeito: as pessoas voltaram para as ruas. Ontem, os bares estavam cheios, havia churrascos e festas nas casas das pessoas. O movimento voltou ao normal”, contou ela na primeira semana de abril.

Um anseio da comunicadora é que os números sobre a doença cheguem até a comunidade de forma transparente. “São muitos mais casos do que esses descritos aí”, acredita Michele. “E essa é uma grande preocupação, porque, como os casos são subnotificados, as pessoas não se dão conta da gravidade do problema.”

Nem todo o mundo está vendo pessoas diagnosticadas, não tem teste para todo o mundo. Então, quando se chega na UPA com sintomas leves ou moderados, vai voltar para casa com diagnóstico de suspeita de coronavírus ou provável caso de coronavírus. Isso não chega a gerar a mobilização necessária, a certeza de que seria necessário ficar em casa. Não é assim que está chegando nas pessoas”, identifica. Para ela, a orientação da assistência precisaria ser mais direta. “As pessoas precisam de uma confirmação de que têm que fazer o isolamento, mesmo em caso de suspeita”, defende.

No jornal comunitário, Michele ajuda a orientar sobre alternativas e auxílio para quem não tem renda e observa a imensa expectativa gerada nas pessoas carentes, apontando que as iniciativas precisam ser amplas. “A gente tem visto muitas mobilizações para gerar doações, de produtos de limpeza, máscaras, álcool. Tem muita gente que precisa de ajuda na Rocinha. Só que quando a gente posta coisas sobre isso, as pessoas comentam ´não chegou na casa do meu vizinho, nem na minha casa´”, lamenta.

A coordenadora do Fala Roça luta contra outro inimigo na comunidade, além do vírus: a desinformação. “Estamos tendo que fazer uma cobertura on-line, eu com ajuda do meu irmão, e gastamos um tempo absurdo fazendo checagem de fake news. Procuramos fontes locais entre familiares e profissionais de saúde que trabalham nas unidades que atendem à região. Para ela, o jornalismo local tem cada vez mais importância. Muita gente se engaja nas campanhas on-line. A mídia hegemônica não fala da localidade”, reclama ela, que promove redes entre outros parceiros locais, que publicam páginas e perfis com até 100 mil seguidores. “As pessoas querem saber sobre a sua rua, a sua localidade”, aponta. Ao mesmo tempo, cada vez mais existe uma dimensão global. “As orientações que servem para a Rocinha servem para as outras favelas também, o direito ao acesso à água, saneamento. Esse trabalho comunitário é o trabalho que o Estado deveria fazer, mas o Estado só costuma entrar com a força”, aponta.

Comorbidades

A pesquisadora Alexandra Sánchez, do Departamento de Endemias Samuel Pessoa, da ENSP, lembra que a Rocinha é uma região que tem uma incidência alta de tuberculose. A tuberculose é uma doença infecciosa com alta taxa de incidência em grandes centros urbanos. Rio de Janeiro e Manaus são as capitais com maior taxa de incidência da doença no Brasil. A média nacional de casos de tuberculose era, em 2018, de 33,5 a cada 100 mil habitantes. O Estado do Rio tem praticamente o dobro, 65,7 casos a cada 100 mil pessoas, segundo o Fórum Estadual de Organizações Não Governamentais no Combate à Tuberculose. É a segunda taxa mais alta no país, atrás do Amazonas. Na capital, os números são mais altos em favelas e nos presídios e chegam a 300 e 400 por 100 mil habitantes. A tuberculose é transmitida por uma bactéria, por meio do contato físico; enquanto o novo coronavírus se transmite por aerossóis (perdigotos). No entanto, como ela lembra, “o fundamento do contágio é o mesmo: a proximidade entre as pessoas”. A infecção pelo novo coronavírus acontece no corpo por meio das vias aéreas superiores, outro ponto em comum com a tuberculose.

A transmissão alta da tuberculose é uma preocupação que já estava presente antes da pandemia, e essa taxa alta da doença acontece devido ao maior contato entre as pessoas, muito por causa do tipo de habitações. “A geografia da Rocinha, por exemplo, é complexa, com uma disposição muito vertical das construções situadas em um vale, o que piora as condições de ventilação e iluminação nas moradias”, explica a pesquisadora.

No momento em que esta reportagem é escrita, o número de casos oficiais registrados do novo coronavírus é maior nos bairros de classe média alta e alta do Rio de Janeiro. A pesquisadora ressalta, porém, que a assistência à saúde de pacientes agudos e crônicos na rede pública poderá ficar deficitária e, inclusive, afetar o tratamento dos pacientes de tuberculose. “Prevejo que a assistência fique prejudicada, por redução do número de profissionais, devido a um eventual redirecionamento da atenção à epidemia, em detrimento dos pacientes agudos e crônicos. As pessoas continuam tendo todos os outros agravos.”

A favela da Rocinha é, notadamente, um exemplo de convivência territorial da desigualdade, de um duplo padrão em espaços muito próximos. “A Rocinha está incrustada em um espaço territorial em que tem, na sua base, os maiores IDHs do Rio de Janeiro e do Brasil, que são os bairros do Leblon, São Conrado, Gávea e Ipanema. Ela está incrustada na zona mais rica da cidade”, reforça Roberta Gondim, pesquisadora do Departamento de Administração e Planejamento em Saúde (Daps/ ENSP).

Padrão desigual

Para outra pesquisadora, Jussara Angelo, é provável que a dispersão do Covid-19 pelo território brasileiro e o padrão da curva de casos se materialize de formas diferentes considerando as particularidades geográficas e históricas da nossa sociedade. “De forma geral, acredito que poderemos ter dois padrões da doença: um “de classe média e alta” – aqueles que conseguirão cumprir o distanciamento social e, por isso, conseguirão achatar a curva de ocorrência dos casos. “Contudo, nesse grupo, poderá acontecer ondas no final da epidemia quando encerrarmos a estratégia de distanciamento social”, observa.

Outro padrão de curva epidemiológica poderá ser observado em regiões como a Rocinha, aponta a sanitarista. “Com a pobreza urbana, as condições de receptividade e vulnerabilidade do território inviabilizam a adoção da estratégia de distanciamento social. O alto número de moradores em domicílios precários e a alta densidade populacional são condições adequadas para que ocorra uma rápida dispersão da Covid-19, produzindo um ´boom´ inicial que, possivelmente, se estabilizará em um segundo momento”, avalia.

Para a pesquisadora, este primeiro momento, que é o que começamos a viver nas comunidades do Rio de Janeiro, e em outros grandes centros urbanos em decorrência da alta densidade populacional, e, sobretudo, da presença de extensas áreas pobres, é “o maior desafio para controlar a rápida dispersão da Covid-19”.

A pesquisadora lembra que a alta taxa de contato social é inerente ao processo de organização e sobrevivência desses grupos populacionais “É por meio das relações de solidariedade que são criadas formas de resistir à ausência de uma cidadania plena; por essas razões, a dispersão da doença poderá ocorrer muito rapidamente nas favelas e áreas de pobreza urbana”, declara Jussara.

Roberta Gondim destaca que já se observa esse padrão de adoecimento desigual entre grupos populacionais nos Estados Unidos. “Os EUA têm grandes desigualdades e também não estão dando conta de responder. Já está sendo observado lá, e pode-se constatar até pelas imagens de televisão, quais são os corpos que, na sua maioria estão adoecendo e morrendo. Qual é a cor desses corpos? Não muda muito do que pode vir a acontecer aqui se não levarmos a sério políticas compensatórias numa situação de emergência que possam diminuir os efeitos da pandemia”, afirma.

Diálogo para gerar novas possibilidades

“A maior parte das iniciativas propostas para o controle do Covid-19 são pensadas para quem está inserido no mercado formal de trabalho, em domicílio compatível com o tamanho de sua família. São pessoas que podem fazer home office, que podem ficar em casa, e não necessariamente precisam usar transportes públicos”, ressalta Roberta Gondim. Entretanto, aponta que é preciso reconhecer que estão acontecendo iniciativas no país, tanto da União como dos estados e dos municípios, no sentido da ampliação da capacidade de resposta ao cuidado das pessoas em situação emergencial, como a ampliação de leitos para cuidados intensivos, mas “é preciso gerar outras possibilidades, porque a grande aposta é exatamente na diminuição do impacto dessa pandemia a partir do isolamento social. Temos também que aproveitar o momento para produzir soluções e conhecimentos de forma compartilhada, no diálogo com as populações mais vulneráveis, e não apenas falar por elas e sobre elas.

Uma pergunta indispensável é se os serviços de saúde vão conseguir responder a tempo e a contento um espiral de novos casos. “Os países que impuseram o confinamento tardiamente são maus exemplos. Se nós não produzirmos políticas públicas alternativas para essas populações, nós vamos ter uma situação absolutamente perversa”, observa Roberta. Para a pesquisadora, o caminho e as estratégias ao alcance, neste momento, passam por dar condições para que, minimamente, a maior parte das pessoas tenha formas de fazer um verdadeiro distanciamento social. “É função do governo implementar políticas públicas emergenciais, que operem uma outra lógica redistributiva, e isso sirva de lição para os tempos ditos “normais”, reitera. (E.B.)

Foto: Alicia Nijdam /Flickr

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