As mãos sujas de sangue de Sérgio Moro

por Fausto Salvadori, em Ponte Jornalismo

O que lembramos das pessoas nem sempre tem uma relação lá muita direta com o que elas fizeram, e por isso a posteridade está cheia de injustiças. Poucas pessoas associam o presidente Prudente de Morais com a palavra genocídio, embora tenha sido o responsável pelo massacre de Canudos. Os ex-governadores de São Paulo Geraldo Alckmin e Claudio Lembo parecem destinado a ficar na história como tipos moderados ou apagados, ainda mais quando comparados à truculência verborrágica de João Doria, mas só porque poucos parecem se lembrar de que Alckmin e Lembo foram responsáveis por uma onda de massacres, em maio de 2006, que conseguiu, em dez dias, matar mais do que a ditadura militar em vinte anos.

E será uma grande injustiça se Sergio Moro, ao abandonar Jair Bolsonaro quando o governo já começava a se encaminhar a passos largos e decididos para o abismo, passar a ser lembrado como alguém que rejeitou a barbárie da extrema-direita. Moro sempre foi parte integrante dessa barbárie que chegou ao poder em 2018 e que agora pergunta “e daí?” diante das pilhas de caixões sepultados com retroescavadeira em valas comuns. Ele só parecia um pouco melhor do que seu chefe. E, justamente por isso, pode se tornar ainda pior.

Moro nunca utilizou a retórica da barbárie bolsonarista, não elogiou torturadores nem fez a apologia de massacres, e isso pode ajudar a seduzir os que apoiam uma violência praticada com mais hipocrisia e refinamento, se a barbárie de chinelão vier a sair de moda. Para fazer uma comparação com os vilões dos quadrinhos de Homem-Aranha, de quem o ex-ministro é fã, Bolsonaro seria como o Lagarto, um monstro animalesco e desprovido de raciocínio, incapaz de falar, feito apenas de fúria e selvageria. Já Moro lembraria um vilão como o empresário Norman Osborn, o Duende Verde, alguém que na maior parte do tempo veste terno e respeitabilidade, e que é capaz de traçar estratégias sofisticadas para atingir o poder que almeja, ainda que deixando, no caminho, uma pilha de cadáveres muito maior do que a ferocidade descerebrada de um Lagarto seria capaz de produzir.

Na área de segurança pública, em vez de dizer que bandido bom é bandido morto, a fala vacilante e descolorida de Moro costumava reproduzir platitudes sobre combate ao crime e respeito à lei, mas suas ações à frente falaram muito mais alto. Como ministro, Moro fez questão de defender, com seu pacote anticrime, medidas que ampliavam o encarceramento, no país que tem a terceira maior população carcerário do mundo, e que aumentavam a capacidade de matar impunemente da polícia, no país que já tem uma das polícias mais violentas do mundo, em uma “explícita tentativa de legitimar a morte e a violência sistemática contra pessoas negras, pobres e moradoras de regiões periféricas”, como definiu Maria Clara D’ávila, integrante da Iniciativa Negra por Uma Nova Política sobre Drogas, em entrevista a Paloma Vasconcelos e Maria Teresa Cruz. Moro nunca defendeu publicamente a tortura, como seu chefe, mas fez pior: garantiu a impunidade dos torturadores flagrados atuando no sistema penitenciário federal.

Quando o coronavírus começou a se espalhar pelas prisões, Moro, em uma de suas últimas ações no Ministério da Justiça e Segurança Pública, menosprezou o risco de mortes para os prisioneiros e ainda sugeriu colocar os doentes em contêineres. Era o mesmo que dizer “deixa morrer”, como nota Samira Bueno, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, na mesma entrevista. Hoje, quando o país, com sete mortes, já se encontra entre os líderes da mortandade de detentos pela Covid-19, podemos dizer que parte do sangue da morte desses homens está nas mãos de Sergio Moro.

Por tudo isso, se Bolsonaro vier a cair, e o público ficar com receio de apoiar propostas parecidas com a dele no futuro, Moro pode vir a se tornar, em 2022, a encarnação perfeita de um Bolsonaro de aparência light, perfeito para os que gostam, sim, de assassinos, mas preferem os homicidas que falam fino e lavam as mãos.

Foto: Adriano Machado /Reuters

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