Agroecologia ou Colapso (2). Por Paulo Petersen e Denis Monteiro*

É um erro pensar que o movimento agroecológico limita-se a produzir orgânicos, em “um nicho diferenciado”. Seu foco é reorientar a agricultura segundo lógicas que se oponham e subvertam as do mercado capitalista

Outras Palavras

A esperança equilibrista tem que continuar
(Para Aldir Blanc)

Uma força social latente bloqueada pelos impérios alimentares

Em tempos de pandemia, cabe uma discussão específica relacionada aos impactos sobre a saúde pública resultantes do controle exercido pelas megacorporações sobre os sistemas alimentares. Segundo uma comissão científica organizada pela prestigiosa revista médica The Lancet, a globalização uniformizante dos padrões de produção e consumo alimentar é responsável pela criação e a interação sinérgica de três fenômenos agravantes de problemas de saúde em todo o mundo: a obesidade, a desnutrição e as mudanças climáticas. Como os três possuem causas e efeitos em comum e alimentam-se reciprocamente, a comissão identificou o processo como um fenômeno singular, que designou de sindemia global. 

A responsabilidade da sindemia, segundo a comissão, é inequívoca: de um lado, a produção agropecuária realizada em grandes escalas, baseada no uso intensivo de fatores artificiais, tais como agroquímicos, hormônios e antibióticos; de outro, o consumo de alimentos ultraprocessados; para sustentar energeticamente essa cadeia de irracionalidade ecológica e sanitária, o uso intensivo de combustíveis fósseis. 

Embora a agricultura industrial e o consumo de comida-porcaria sejam praticadas há várias décadas, principalmente após a Segunda Guerra, não resta dúvida que a acelerada expansão e a crescente interdependência entre ambos os processos ocorreu sob a égide do neoliberalismo, particularmente após a assinatura do Acordo Agrícola da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1995. Segundo definição proposta pelo sociólogo holandês Jan Douwe van der Ploeg, verdadeiros “impérios alimentares” formaram-se desde então, alterando profundamente a economia política dos sistemas alimentares ao sujeitar o mundo social e o mundo natural a novas formas de controle centralizado e de apropriação massiva. Para o autor, assistimos “uma conquista imperial no que diz respeito à integridade dos alimentos, à perícia da prática agrícola, à dinâmica da natureza e aos recursos e aspirações de muitos agricultores”. Contrastando com suas fachadas de empreendedorismo de última geração, os impérios não produzem nenhuma riqueza. Tal como os antigos impérios coloniais, apenas se apropriam dos recursos antes controlados de forma relativamente soberana pelas nações e comunidades locais, deixando em troca pesados passivos sociais e ambientais.  

É diante desse contexto histórico, que a agricultura familiar camponesa, em toda a sua diversidade cultural e identitária, irrompe como força sociocultural e política portadora de promessas de futuro na reconstrução de sistemas alimentares saudáveis, economicamente dinâmicos, tecnicamente eficientes e ecologicamente sustentáveis. Sobram evidências históricas de que a lógica de organização social e econômica da agricultura familiar possibilita o desenvolvimento combinado dessas dimensões, exatamente porque imprime em seus arranjos técnicos e econômicos um conjunto de princípios comuns às dinâmicas de funcionamento da natureza: a diversidade; a flexibilidade adaptativa; a natureza cíclica dos processos; a interdependência; e os vínculos associativos e de cooperação. 

Não obstante, esse potencial inscrito nas memórias bioculturais da agricultura familiar e bem disseminado em todo o planeta vem sendo largamente desperdiçado por políticas públicas e marcos regulatórios desenhados para favorecer a dinâmica expansiva da agricultura capitalista (patronal) e, de forma mais abrangente, dos impérios alimentares. No lugar de diversidade, assiste-se o avanço da especialização produtiva, característica das economias de escala adotadas na produção industrial; processos econômicos cíclicos em escala local dão lugar a cadeias globais de commodities; a interdependência entre agentes econômicos é progressivamente substituída pelos grandes conglomerados monopólicos; o princípio da cooperação solidária na economia é suplantado pelo individualismo competitivo nos mercados.

Cabe registrar, no entanto, que o desperdício desse potencial sociocultural latente é ainda mais gritante e paradoxal quando políticas públicas específicas para a agricultura familiar, em geral resultantes de duras conquistas de movimentos sociais do campo, induzem as famílias agricultoras a ingressarem em trajetórias de inovação técnica e produtiva que comprometem sua autonomia econômica e esgarçam seus vínculos de pertencimento às redes de solidariedade comunitária. 

Tal situação se verificou no Brasil, um dos países pioneiros na instituição de políticas públicas específicas para a agricultura familiar. Desde meados da década de 1990, parte importante dos recursos públicos canalizados para esse segmento induziram-no a incorporar os pacotes tecnológicos da Revolução Verde e a especializar suas unidades de produção. Essa orientação das políticas resultou na progressiva substituição das tradicionais policulturas associadas a criatórios ao ar livre pelas monoculturas e criações confinadas, ambas estruturalmente dependentes de insumos comerciais. Do ponto de vista econômico, essas mudanças técnicas implicaram a crescente mercantilização de operações de manejo antes realizadas pelas próprias famílias, frequentemente acionando processos cooperativos em suas comunidades. 

Com o avanço da chamada “modernização agrícola”, práticas tradicionais nas economias rurais tais como a produção local de insumos produtivos, a reciprocidade na comunidade para a execução de trabalhos pesados, o processamento artesanal da produção, a comercialização associativa e até mesmo a produção de alimentos para o autoconsumo foram progressivamente abandonadas, dando lugar à crescente mercantilização desses produtos e serviços necessários à reprodução técnica e social da agricultura familiar. Com isso, parcela importante de um segmento econômico essencial, que historicamente se reproduziu mantendo elevados níveis de autonomia em relação ao capital, é levada a ingressar em trajetórias de subordinação política e econômica aos setores industrial e financeiro do agronegócio. Não sem razão, a renegociação das dívidas contraídas junto ao sistema financeiro por meio das políticas de crédito rural passou a figurar de forma cada vez mais presente nas pautas de reivindicação apresentadas anualmente ao governo federal pelos movimentos sociais do campo. Até mesmo em suas demandas por políticas públicas, a agricultura familiar passa a reproduzir comportamentos da agricultura patronal.

“Modernizar”, nesse sentido, significa incutir o “espírito empresarial” na agricultura familiar, ou seja, orientar a gestão econômica das unidades de produção exclusivamente pela “lógica dos mercados”. Nas condições históricas vigentes, isso implica o atrelamento subordinado da agricultura familiar às cadeias globalizadas do agronegócio. Em outras palavras, significa “descampesinizar” a agricultura familiar. 

Democratização dos sistemas alimentares 

No lugar das múltiplas qualidades latentes intrínsecas à economia moral camponesa, prontas para serem desenvolvidas em benefício do conjunto da sociedade, o estímulo governamental à disseminação da racionalidade empresarial na agricultura familiar induziu parte importante do setor a introjetar um estilo de gestão econômica restrito a contabilidade financeira. A consequência tem sido a reprodução na agricultura familiar do enfoque produtivista orientado essencialmente a responder estímulos dos mercados. 

O encadeamento e o aprofundamento de externalidades socioambientais e culturais negativas é o resultado direto dessa indução pública ao produtivismo economicista em detrimento das qualidades multifuncionais próprias da agricultura camponesa. A reconversão produtiva dos estabelecimentos familiares, com a redução das áreas dedicadas à produção de alimentos básicos e o correspondente incremento da produção de commodities agrícolas destinados às indústrias de alimentos ultraprocessados ou de rações, como soja e milho, são evidências notáveis do bloqueio à multifuncionalidade da agricultura familiar exercido por políticas nomeadamente destinadas ao “fortalecimento da agricultura familiar”. Um bloqueio crítico em um país no qual o direito à alimentação saudável e adequada da população não está assegurado e está sendo ainda mais comprometido com o aprofundamento dos efeitos da pandemia. 

Mesmo no plano microeconômico, as contradições são evidentes. Orientada pelo objetivo de maximizar a rentabilidade financeira no curto prazo, o progresso econômico de uma unidade familiar empresarial não implica necessariamente a geração de benefícios para a coletividade do seu entorno imediato. Pelo contrário, esse estilo de crescimento, benéfico para poucos e por tempo limitado, representa o bloqueio de caminhos alternativos em direção a economias rurais mais equitativas e sustentáveis. A modernização é, nesse sentido, um caminho para o desenvolvimento da agricultura socialmente seletivo e economicamente concentrador, no qual apenas os considerados empreendedores com tino empresarial seriam moralmente aptos a receberem o apoio público. Não é sem razão que a noção de “competitividade” foi consolidada como um valor central na economia moral daqueles que entendem a agricultura como um simples agronegócio. 

O desenvolvimento dos potenciais latentes da agricultura familiar como base sociocultural e econômica de sistemas alimentares justos, saudáveis e resilientes exige, portanto, a superação da economia moral do agronegócio. Para tanto, é necessário que o Estado intervenha no sentido de reposicionar o papel e o lugar dos mercados na regulação dos sistemas alimentares: de uma arena seletiva na qual a sobrevivência econômica das famílias agricultoras é disputada segundo o seu grau de alinhamento em relação às normas, valores e padrões tecnológicos impostos por redes oligopólicas que operam em escala global, os mercados agrícolas e alimentares devem ser ativamente promovidos como mecanismos institucionais desenvolvidos e mantidos com participação efetiva de produtores/as, consumidores/as e agentes das cadeias locais de intermediação.

Isso significa desconstruir a aura mística atribuída ao mercado pelo pensamento neoliberal. De um ente autônomo com vontade própria, cujas mãos invisíveis exercem o poder de controle sobre o funcionamento das sociedades, os mercados são, como qualquer instituição humana, construções sociais que refletem relações de poder entre os atores envolvidos. Mercados alimentares justos e democráticos são aqueles capazes de estabilizar um balanço adequado entre os interesses dos diferentes agentes econômicos envolvidos. Remuneração justa para quem produz, processa e distribui os alimentos; preços adequados para quem consome; qualidade biológica e sanitária dos alimentos e de seus processos de produção são objetivos centrais a serem equacionados nesses mercados. 

A compatibilização desses objetivos exige o desenvolvimento de mecanismos de governança democrática da agricultura e da alimentação. Na prática, isso implica a redefinição dos papéis exercidos pelo Estado, pela sociedade civil e pela iniciativa privada na regulação das transações econômicas na produção e no abastecimento alimentar. Algo virtualmente impossível de ser obtido com a aplicação do receituário neoliberal de gestão pública, ou seja, com a suposta desregulamentação dos mercados agrícolas em nome da suposta livre iniciativa. Duas suposições fictícias quando se considera o papel determinante do Estado no condicionamento dos mercados em benefício da iniciativa privada de uma minoria em detrimento dos interesses públicos da maioria.  

Agroecologia e a nova geografia alimentar

Uma governança democrática da alimentação implica o desenvolvimento de uma “nova geografia alimentar”, com o encurtamento das distâncias físicas e sociais entre a produção e o consumo. A “relocalização” ou “reterritorialização” dos sistemas alimentares é exatamente o que os movimentos de agroecologia defendem e constroem ativamente há décadas.

No lugar das tecnologias químico e fóssil dependentes da revolução verde, responsáveis pela desconexão ecológica da agricultura em relação aos territórios, a agroecologia desenvolve sistemas técnicos mantidos pelas funções ecológicas proporcionadas pela biodiversidade. Seja nativa ou exótica, cultivada ou não, a biodiversidade mantida e manejada nas paisagens agrícolas segundo princípios agroecológicos é responsável pela captação e conversão da energia solar em biomassa. Com muito baixa ou nula dependência de insumos comerciais e de energia externa, essa biomassa é colhida para o atendimento das necessidades econômicas e alimentares das famílias agricultoras, sendo também reciclada no próprio (agro)ecossistema, realimentando as funções ecológicas responsáveis pela manutenção da fertilidade dos solos e a sanidade dos cultivos e criações. 

Visto por esse prisma, revela-se totalmente inapropriada e questionável a noção de “agricultura de baixo carbono (ABC)” recentemente inserida na narrativa diversionista do agronegócio como estratégia para ocultar a sua decisiva responsabilidade nas mudanças climáticas. A agroecologia contribui para reduzir emissões de gases de efeito estufa e para a construção de agriculturas mais resilientes às mudanças climáticas exatamente porque substitui economias comandadas pelas transações financeiras, entrópicas por natureza, por bioeconomias, ou seja, economias nas quais a produção de valor é realizada a partir da estreita integração do trabalho humano com os fluxos ecológicos locais por meio do manejo da biomassa.

No lugar dos mercados agrícolas controlados pelos impérios alimentares, responsáveis pela desconexão sociocultural e econômica da agricultura em relação aos territórios, o enfoque agroecológico orienta o desenvolvimento de sistemas alimentares territorializados a partir da iniciativa autônoma de redes locais formadas por produtores/as, processadores/as, distribuidores/as e consumidores/as. Conformadas a partir de variadas formas associativas ajustadas às peculiaridades culturais e organizativas de cada território, essas redes desenvolvem e coordenam circuitos curtos de abastecimento alimentar constituídos por mercados locais e outros mecanismos não mercantis de transação econômica, como as trocas e as doações. Ao dinamizarem novas relações entre o mundo rural e as cidades no âmbito dos territórios, as redes territoriais de agroecologia contribuem para revalorizar culturas alimentares regionais, condição indispensável para a construção da “soberania alimentar”, uma bandeira política central dos movimentos e organizações identificados à agroecologia. 

Como assegurar a alimentação de uma população mundial crescente e cada vez mais concentrada em grandes metrópoles com tal proposta de relocalização dos sistemas alimentares? Esse recorrente questionamento à proposta agroecológica aponta um dos grandes desafios colocados para um futuro não muito distante, quando a população humana deverá atingir seu ápice, algo em torno de 9 a 10 bilhões de almas. O equacionamento dessa questão crítica exige respostas a duas outras questões igualmente críticas. A primeira é de natureza biofísica: como aumentar o volume de alimentos para abastecer a crescente demanda demográfica sem que contemos no futuro com água abundante, petróleo barato e clima estável, três condições indispensáveis para a manutenção dos atuais padrões industriais de produção, processamento e distribuição dos alimentos que estarão irremediavelmente comprometidas com a continuidade desses mesmos padrões?

A segunda questão está relacionada diretamente à dimensão demográfica. A formação de mega conurbações com a supressão de áreas rurais e pequenas e médias cidades e, por outro lado, a manutenção do mundo rural desabitado com a disseminação de estilos de agricultura sem agricultores/as são caminhos desejáveis e sustentáveis para o futuro da humanidade? A atual pandemia explicita uma das múltiplas faces da irracionalidade desse padrão de distribuição demográfico resultante de um sistema econômico organizado para produzir “exércitos de reserva” de força de trabalho para as atividades urbano-industriais.

Segundo imagem proposta por Manuel Castells, atualmente ministro das Universidades da Espanha, a pandemia representa o reset de um sistema disfuncional que tende ao colapso. Trata-se, em outras palavras, de um alarme automático emitido pelo próprio sistema para que suas disfunções sejam equacionadas. Fórmulas adotadas no passado para a superação de crises sociais e econômicas estão fadadas ao fracasso por terem desconsiderado o fato de que as sociedades humanas funcionam a partir da integração metabólica no conjunto da Biosfera. Superar as disfunções sistêmicas implica a construção de outro padrão metabólico. Nas palavras de Castells implica “uma nova forma de vida, outra cultura, outra economia”.

A agroecologia apresenta-se nesse contexto de redefinição de rumos civilizatórios como uma proposta exequível e necessária para a construção de economias ancoradas em novos valores culturais que fundamentarão novas formas de vida. Relocalizar, desconcentrar e descentralizar são verbos a serem conjugados de forma integrada na gramática das economias que deverão emergir para que esses mundos plurais sejam possíveis.

A agroecologia na construção da economia social e solidária

É crescente o reconhecimento institucional da agroecologia no Brasil e no mundo. Em alguns meios esse reconhecimento permanece restrito à dimensão técnica da abordagem agroecológica, sendo esta muito frequentemente confundida com a agricultura orgânica, um modelo de produção agrícola legalmente normatizado, cuja principal característica definidora é a proibição do emprego de organismos geneticamente modificados e insumos sintéticos prejudiciais à saúde humana e à natureza, tais como agrotóxicos, fertilizantes, hormônios de crescimento e antibióticos. Em que pese sua similaridade com a agricultura orgânica no plano técnico, também orientado à dispensa de agroquímicos e transgênicos, a agroecologia incorpora explicitamente as dimensões sociais e políticas em sua perspectiva crítica ao afirmar-se como um enfoque para a transformação estrutural dos sistemas alimentares segundo pactos de economia política ancorados em valores e práticas contra-hegemônicas voltados à promoção da equidade social e da sustentabilidade ambiental. 

Essa distinção conceitual se faz necessária quando se constata que parcela importante da produção orgânica mundial é atualmente controlada pelas cadeias corporativas do agronegócio. Embora represente um avanço no que se refere aos benefícios ambientais e à saúde humana, o crescimento exponencial da agricultura orgânica nos últimos vinte anos esteve fundamentalmente ligado à mesma gramática de poder imposta pelos impérios alimentares.  É isso o que explica o fato de a agricultura orgânica se expandir mundialmente como um nicho de mercado que vincula um número restrito de produtores certificados a uma parcela diminuta de consumidores com capacidade de pagar o sobrepreço cobrado pelos alimentos orgânicos. É exatamente essa lógica de organização econômica como um segmento específico de um mercado que oferece comida com qualidade cada vez pior o que explica o paradoxal crescimento simultâneo da agricultura orgânica e do consumo de agrotóxicos no Brasil. 

Diferente do que se passou em outros países, sobretudo no Norte Global, felizmente o movimento agroecológico e parcela importante do movimento da agricultura orgânica no Brasil surgiram e se desenvolveram em conjunto, como portadores de uma crítica não só aos padrões tecnológicos da agricultura industrial mas também à racionalidade econômica ambientalmente predatória e socialmente injusta do agronegócio. Um eloquente exemplo dessa construção conjunta vem da década de 1990, quando o movimento orgânico de base agroecológica no Brasil se insurgiu contra a iniciativa do ministério da Agricultura de normatizar os processos de certificação da produção orgânica para atender as exigências do mercado europeu, já em franca expansão àquele momento. 

Partindo do entendimento que a comercialização local dos alimentos orgânicos historicamente se baseou em relações de confiança estabelecidas entre produtores/as e consumidores/as, o movimento questionou a necessidade de pagamento de serviços de certificação profissionalizados, procedimento que já começava a ser adotado mundo afora a partir pressão europeia. O resultado da luta contra a mercantilização da confiança foi o reconhecimento oficial dos Sistemas Participativos de Garantia (SPGs) na Lei de Orgânicos de 2003. Posteriormente, outros dispositivos autogestionários solidários de produção de confiança foram regulamentados na legislação brasileira, assegurando que parcela importante da produção orgânica no país, sobretudo aquela realizada pela agricultura familiar, permaneça comercializada por meio de circuitos curtos, como as feiras. Essa experiência brasileira influenciou os debates internacionais sobre normatização da agricultura orgânica, sendo atualmente os SPGs reconhecidos pela Federação Internacional dos Movimentos de Agricultura Orgânica (IFOAM-Organics-International) e na legislação reguladora da atividade em vários países. 

Essa conquista é uma expressão emblemática do desafio da institucionalização de ideias coerentes com práticas e valores da economia social e solidária em políticas públicas e marcos normativos de Estados francamente alinhados aos fundamentos neoliberais. Por outro lado, cabe destacar que também em economias fortemente planejadas e controladas pelos Estados são encontrados poderosos bloqueios para a aplicação de tais práticas e valores na organização dos sistemas alimentares.

Abundam exemplos históricos relacionados ao fracasso da lógica intervencionista estatal sobre a agricultura e a alimentação. Provavelmente, o exemplo de Cuba seja um dos casos mais paradigmáticos nesse sentido. Após décadas de pesados subsídios da União Soviética para a manutenção da agricultura industrial no país, o sistema alimentar cubano praticamente entrou em colapso quando os subsídios cessaram por ocasião da bancarrota do regime soviético. 

Para superar o duro período especial, marcado por elevados níveis de desnutrição na população, o governo entendeu que a solução estrutural para o desafio alimentar não passaria pelo controle centralizado da distribuição. Tampouco passaria pela continuidade do modelo de produção dependente de agroquímicos e fontes fósseis de energia com as quais já não contava. Somente abandonando os enfoques produtivistas e anti-campesinistas também cristalizados no pensamento da esquerda ortodoxa, seria possível construir respostas consistentes e duradouras ao drama social vivido no país. Na prática, isso implicou uma ação determinada do governo em aliança com o heroico povo cubano no sentido de descentralizar o sistema alimentar a partir de processos de recampesinização associados ao estímulo à produção de base agroecológica e à construção de circuitos curtos de abastecimento regulados por redes locais de economia social e solidária. 

A criação de um ambiente institucional favorável ao desenvolvimento dessas práticas foi determinante para que a profunda crise alimentar fosse enfrentada em relativamente pouco tempo, com a contribuição decisiva das iniciativas de agricultura urbana, sendo Cuba hoje reconhecido como um dos países que mais avançaram no emprego da perspectiva agroecológica para a construção de sua soberania alimentar. 

A leitura agroecológica da crise

O exemplo cubano respalda o argumento central neste artigo: a transformação dos sistemas alimentares segundo a perspectiva agroecológica é condição urgente e indispensável para a superação estrutural da crise civilizatória que distingue o presente período histórico. O exemplo também ressalta o papel que uma súbita e inesperada crise pode desempenhar no sentido de mobilizar forças sociais em defesa de alternativas emergenciais com caráter transformador a médio e longo prazos. O agudo aprofundamento da crise sanitária e de abastecimento alimentar desencadeado pela pandemia do coronavírus funciona nesse exato momento como um exame de surpresa para testar nossa capacidade coletiva de construir respostas efetivas à crise estrutural do sistema alimentar neoliberal.

Como bem identificou Boaventura Sousa Santos, há uma cruel pedagogia do vírus a alertar que a normalidade imobilizante do status quo nos conduzirá inexoravelmente à anomia social. Produzir aprendizados coletivos a partir dessa dolorosa vivência para que sejam aglutinadas forças sociais capazes de nos desviar dessa rota em direção ao abismo é o principal desafio colocado para o momento. 

Embora contemporâneas da implantação do projeto político-ideológico da Revolução Verde, as críticas e proposições dos movimentos sociais que hoje se aglutinam em torno da agroecologia só recentemente passaram a receber algum crédito na comunidade internacional. Esse repentino reconhecimento ocorreu exatamente com a irrupção da crise alimentar global em 2008, a primeira com essas dimensões desde a Segunda Guerra Mundial. Estimando um incremento em 150 milhões de famintos no mundo, que passaram à cifra de 1 bilhão de pessoas, diferentes agências das Nações Unidas multiplicaram os chamados à ação emergencial, enquanto a FAO convocou uma conferência extraordinária sobre segurança alimentar, realizada em junho daquele ano. 

Os duros debates travados no evento expressaram as profundas e irreconciliáveis divergências relacionadas à leitura da crise e às propostas para enfrentá-la. As vozes que prevaleceram explicaram o fenômeno como o resultado de uma conjuntura particularmente infeliz formada pelo concurso de circunstâncias negativas tais como o aumento nos custos de energia, o uso de terras agrícolas para a produção de agrocombustíveis, a frustração de safras em áreas agrícolas importantes em função de secas e o aumento na demanda por grãos resultante na mudanças de hábitos de consumo, com o incremento das dietas cárnicas. O resultado de um diagnóstico tão fragmentário, incapaz de relacionar os fenômenos apontados como sintomas de uma única crise estrutural, não poderia ser outro que não a reafirmação, na declaração final da Conferência, da vigência das políticas liberais na (des)regulação dos mercados agrícolas e da modernização tecnológica fundamentada na agroquímica e nas biotecnologias.

Em que pese a resiliência demonstrada pelo sistema de poder hegemônico, a conjuntura particularmente negativa de 2008 criou espaço político para que perspectivas contra-hegemônicas passassem a ser consideradas nos debates oficiais desde então. Novos diagnósticos e novas propostas de ação para enfrentar as profundas contradições do regime alimentar neoliberal foram apresentadas em documentos oficiais de grande repercussão internacional. Já em 2009, o relatório “A agricultura em uma encruzilhada” do importante Painel Internacional de Avaliação do Papel do Conhecimento, da Ciência e da Tecnologia Agrícola para o Desenvolvimento (IAASTD, na sigla em inglês), composto por mais de 400 cientistas de todos os continentes, indicou a necessidade da substituição urgente dos métodos da agricultura industrial por métodos que promovam a biodiversidade e beneficiem as comunidades locais. Afirma ainda que mais alimentos e de melhor qualidade podem ser produzidos sem que sejam destruídos os meios de vida rurais e os recursos naturais. 

Logo na sequência, em 2010, no informe apresentado ao Comitê de Direitos Humanos da Assembleia das Nações Unidas, Olivier de Schutter, Relator Especial da ONU pelo Direito à Alimentação, corrobora as orientações do IAASTD além de explicitar as potencialidades da agroecologia como o enfoque científico mais adequado para reorientar os sistemas de geração de conhecimentos e alternativas tecnológicas para a agricultura. O documento refere-se à agroecologia como “um modo de desenvolvimento agrícola que não só apresenta estreitas conexões conceituais com o direito humano à alimentação, mas que, além disso, tem apresentado resultados na realização desse direito junto a grupos sociais vulneráveis em vários países”.

Na mesma linha de argumentação, uma série de documentos foi divulgada por órgãos da ONU e por grupos de pesquisa de prestigiosas instituições acadêmicas de todo o mundo. Como parte desse processo de revisão crítica das orientações institucionais, a ONU declarou 2014 como o “Ano Internacional da Agricultura Familiar (AIAF)”. No bojo do AIAF, a FAO organizou um Simpósio Internacional sobre Agroecologia enfocando a promoção da segurança alimentar e nutricional, seguido de quatro seminários regionais. Mais adiante, já no contexto do debate da agenda dos “Objetivos do Desenvolvimento Sustentável” (ODS), em 2018, ocorreu o segundo Simpósio Internacional de Agroecologia, desta vez colocando no centro do debate os desafios para que o enfoque agroecológico seja institucionalizado nas políticas públicas dos países.

Essa trajetória de reconhecimento institucional da agroecologia obrigou as corporações do agronegócio a ajustarem suas narrativas. Seu discurso auto-legitimador até esse momento centrava-se nas alegadas virtudes de seus pacotes tecnológicos, sempre apresentados como produtos da fronteira do conhecimento científico. Além do arsenal agroquímico utilizado em larga escala desde a década de 1960, esses pacotes passaram a incorporar as tecnologias de manipulação genética, com o advento da transgenia agrícola a partir na década de 1990. O argumento-chave da narrativa legitimadora do projeto de modernização agrícola imposto mundialmente desde meados do século XX está relacionado à necessidade de incremento e manutenção de elevadas produtividades físicas de lavouras e criações por intermédio das ditas tecnologias modernas, condição para que a fome e a má nutrição fossem superadas. 

Embora a falsidade do argumento venha sendo denunciada há décadas, ela foi exposta em cores vivas na crise alimentar de 2008, após mais de 50 anos de imposição dos pacotes agrícolas por meio de políticas públicas. A crise tornou patente que os dramas da fome e da desnutrição não resultam de um problema de oferta, mas de má distribuição dos alimentos produzidos. Além de não cumprirem com sua promessa central, tornou-se cada vez mais difícil para as corporações do agronegócio ocultarem sua responsabilidade direta na geração e no contínuo aprofundamento de efeitos negativos sobre o meio ambiente, o clima e à saúde coletiva. A necessidade de ajustes no discurso vem exatamente dessa crescente explicitação pública das contradições de uma matriz tecnológica que corrói as condições biofísicas e sociais de existência da própria agricultura. 

Noções como “intensificação sustentável”, “agricultura climaticamente inteligente” ou a já mencionada “agricultura de baixo carbono” passam a figurar na retórica corporativa com o objetivo de transmitir a falsa ideia de responsabilidade ambiental do agronegócio. Por trás desses novos rótulos, pequenos ajustes nas velhas garrafas. Propostas técnicas baseadas no manejo da biodiversidade e da biomassa, típicas do enfoque agroecológico, passam a ser admitidas de forma inédita nos arranjos tecnológicos do agronegócio. Esse estratagema cumpre uma dupla função na guerra das narrativas em que se trava a luta política: por um lado, produz um verniz de racionalidade técnica e ambiental, buscando transmitir a falsa imagem de equilíbrio entre objetivos econômicos e ecológicos; por outro, confunde os termos do debate público sobre agroecologia, inclusive com o claro intento de cooptar parcelas do movimento agroecológico diretamente envolvidas na inovação científico-tecnológica. 

Como o movimento resiste e não se deixa cooptar, é identificado por seus detratores como ideológico e radical. Uma identificação verdadeira, é preciso que se diga. Ideológico porque não se ancora na falsa suposição de neutralidade da ciência, um axioma funcional à legitimação de uma matriz tecnológica social e ecologicamente destrutiva. A perspectiva agroecológica se posiciona claramente no campo ideológico defensor de valores associados à equidade e à justiça social, incorporando também uma clara orientação em favor de economias harmônicas com as dinâmicas da natureza. 

Radical porque localiza nas relações de poder que organizam os sistemas alimentares globalizados a raiz da crise estrutural a ser superada. São relações que se impõem por meio de tecnologias desenvolvidas para gerar dependência estrutural da agricultura em relação ao capital financeiro. Romper com as amarras de dependência ao capital é o objetivo de agriculturas organizadas segundo um enfoque explicitamente orientado a remunerar o trabalho e a assegurar a reprodução ecológica dos meios de produção. A agroecologia é este enfoque.

*Paulo Petersen é agrônomo, coordenador executivo da AS-PTA – Agricultura Familiar e Agroecologia, membro  do núcleo executivo da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA-Agroecologia).
 
Denis Monteiro é agrônomo, secretário executivo da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e doutorando na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

Imagem: Diego Rivera,Rio Juchitán (1956)

Leia também:

Agroecologia ou Colapso (1). Por Paulo Petersen e Denis Monteiro

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

5 × dois =