Agroecologia ou Colapso (3). Por Paulo Petersen e Denis Monteiro

Luta por superar a agrícola industrial é, ao mesmo tempo, uma prática, uma ciência e um movimento. A direita (e, às vezes, parte da esquerda) acusam-na de arcaica, anárquica e utópica. Talvez aí esteja, paradoxalmente, sua potência

Por Paulo Petersen e Denis Monteiro*, em Outras Palavras

A agroecologia tem sido definida a partir de três acepções interdependentes: como uma prática, como um enfoque científico e como um movimento social. Como prática social, ela se expressa nas variadas formas por meio das quais a agricultura familiar camponesa, indígena e povos e comunidades tradicionais organizam seu trabalho para a produção diversificada de alimentos e outros produtos agrícolas, por meio de processos cooperativos desenvolvidos em estreita interação com as dinâmicas ecológicas e socioculturais dos territórios nos quais se enraizam. Ao empregar abordagens sistêmicas e participativas, a agroecologia articula conhecimentos de fronteira de diferentes disciplinas científicas com saberes bioculturais populares. Ao mesmo tempo, apresenta-se como uma teoria crítica que formula um questionamento radical à agricultura industrial e ao regime alimentar corporativo. Em sua dimensão política, organiza-se como um movimento social emergente que articula sujeitos explicitamente envolvidos em sua construção prática e teórica, além de crescentes segmentos da sociedade que se acercam às suas ideias e experiências a partir de seu engajamento nas lutas por justiça social e ambiental, pela integridade ecológica dos biomas, pela saúde coletiva, pela economia social e solidária, pela igualdade entre homens e mulheres, contra o racismo e a LGBT+fobia e por relações mais equilibradas entre o mundo rural e as cidades. Sinteticamente, a agroecologia se afirma pela sinergia virtuosa entre prática social, teoria científica e movimento político, condensando em um todo indivisível seu enfoque analítico, sua capacidade operativa e sua força social transformadora.

Essa característica multifacetada da agroecologia, que tira partido e estimula a diversidade das práticas sociais locais para delas sintetizar princípios para a análise da realidade e para a ação coletiva se contrapõe aos protocolos formalizados e às concepções burocratizadas de comando e controle típicas da lógica da produção industrial que dominam as instituições científicas e políticas. Em certo sentido, advém dessa peculiaridade de um processo social emergente, que combina novas bases epistemológicas para a produção científica com novas pedagogias e linguagens para mobilização social e política, a dificuldade ainda encontrada para que a agroecologia seja compreendida e assimilada como estratégia de luta e emancipação social mesmo em parcelas importantes dos partidos e movimentos de esquerda. 

Nesse particular, cabe lembrar que o domínio do pensamento positivista e do produtivismo economicista próprio das sociedades industriais não são exclusividade da direita. O uso dessas mesmas lentes de interpretação da realidade social compartilhadas em ambos os campos ideológicos, explica em grande medida a razão pela qual, embora atrativa e sedutora, a agroecologia permaneça amplamente assimilada como uma proposta arcaica, anárquica e utópica, portanto incapaz de oferecer respostas efetivas e na escala necessária para o equacionamento da grave crise sistêmica pela qual atravessa a humanidade. Ironicamente, as três características atribuídas à agroecologia são, ao menos em parte, verdadeiras. Mas não com a carga negativa imputada pelas lentes positivistas e produtivistas.

É arcaica porque dialoga com as culturas populares tradicionais, projetando-as ao futuro por meio do diálogo com saberes academicamente sistematizados. Superar a dicotomia entre o arcaico e o moderno é condição para que as memórias bioculturais sejam revalorizadas na heterogênese das agriculturas do mundo. Nas eloquentes palavras de Fernando Pessoa, isso significa que “a verdadeira novidade que perdura é a que retoma todos os fios da tradição e os tece fazendo um motivo que a tradição não pode tecer”. 

Embora não restem dúvidas científicas em relação a equivalência e, em muitas situações, a superioridade dos níveis de produtividade física obtidos por métodos agroecológicos frente aos métodos agroquímicos convencionais, a retórica negacionista permanece vigente como estratégia de deslegitimação da agroecologia perante a opinião pública e o sistema político institucional. Um recente exemplo expressou-se na manifestação do embaixador estadunidense na FAO, Kip Tom, durante evento promovido pelo Departamento de Agricultura dos EUA (USDA, na sigla em inglês). Para o embaixador, que também é executivo-chefe da Tom Farms, uma das maiores produtoras das sementes da Bayer/Monsanto, as iniciativas democráticas e cientificamente abalizadas da FAO de apoiar a agenda de institucionalização da agroecologia nas políticas públicas dos países representa “uma rejeição explícita à ideia de progresso”. Esse episódio reflete os frequentes conflitos de interesse que se manifestam nesses espaços institucionais nos quais questões públicas cruciais são debatidas e politicamente encaminhadas. A retórica do moderno contra o arcaico segue como poderoso artifício discursivo para justificar o rechaço institucional à agroecologia. Como agudamente identificou Eric Holt-Gimenez, sob essa cortina de fumaça narrativa estão os três “pecados da agroecologia segundo o capital”: dispensa os agroquímicos, baseia-se na biodiversidade local e fortalece a agricultura camponesa.

É anárquica, porque atribui elevada importância aos processos locais de auto-organização da sociedade civil. Esses processos se expressam nas redes multi-atores de âmbito territorial responsáveis pela construção de economias de compartilhamento e defesa de bens comuns, assumindo assim um papel importante na governança de sistemas alimentares descentralizados. Mas esse caráter anárquico é relativo, uma vez que não são redes organizadas a partir de perspectivas de localismo defensivo e hostis às sobre-determinações derivadas dos processos de integração econômica e cultural em escalas geográficas mais agregadas. Ele é aqui ressaltado apenas para explicitar o necessário contraponto com a lógica imperial autoritária atualmente dominante na governança global da agricultura e da alimentação. Nesse sentido, a agroecologia estabelece uma relação de reciprocidade com a democracia. Ao mesmo tempo que contribui para democratizar os sistemas alimentares, depende de um ambiente institucional democrático para que suas práticas floresçam e se desenvolvam. Por essa razão, a vigência do Estado democrático e de direitos é condição indispensável para a criação de espaços auto-organizados nos quais economias de proximidade, base da economia social e solidária, poderão ser experimentadas e desenvolvidas. 

É utópica, porque se orienta para impedir a confirmação dos futuros mais prováveis ao militar por um devir histórico na direção a futuros desejáveis. Não se trata de uma utopia irrealizável ancorada em proposições idealistas e inexequíveis. Trata-se, antes, de reconhecer o vigor da força social latente e invisibilizada da agricultura familiar camponesa em aliança com outros segmentos sociais interessados em assegurar alimentação saudável, condições ambientais equilibradas e sociedades mais justas e harmônicas. Uma força real que projeta futuros desejáveis já em gestação em várias partes do mundo. Essa força pode ser acionada e desenvolvida se articulada localmente com movimentos de consumo alimentar consciente. Nunca é por demais recordar a máxima de que “comer é um ato político”.   

Caminhar na direção desse horizonte utópico implica a necessidade de reconhecer que o caminho não será iluminado por forças vanguardistas portadoras de uma teoria universal revolucionária. As forças de transformação estão presentes na miríade de práticas sociais contra-hegemônicas voltadas à reterritorialização dos sistemas alimentares. Por meio de redes locais de produção e abastecimento alimentar são construídos crescentes graus de autonomia face aos modos de produção e distribuição comandados pelo capital. É nesse sentido que a agroecologia apresenta-se como uma poderosa estratégia para “fissurar o capitalismo”, tal como propõe John Holloway, para quem “a única maneira de pensar em mudar o mundo radicalmente é com uma multiplicidade de movimentos intersticiais fluindo a partir do particular”.  

Para que se tornem realidade, futuros desejáveis precisam ser imaginados. Além disso, os caminhos que nos conduzirão a eles não estão dados a priori. Precisam ser inventados. Isso exige criatividade na luta política para que os obstáculos institucionais e culturais que impedem os avanços na direção imaginada sejam removidos. O Brasil é portador de rica experiência no campo da agroecologia. A grave crise atual é o momento para que os aprendizados dessa experiência sejam resgatados para inspirar essa invenção coletiva. 

Resgate de um legado político e institucional recente 

O Brasil destaca-se mundialmente como o primeiro país a reconhecer a agroecologia em uma política de âmbito nacional, a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO), instituída em 2012. Não cabe aqui detalhar a longa trajetória de acumulação de forças na sociedade civil para que essa conquista tenha se tornado possível. Ressalte-se apenas que o surgimento, a disseminação e a afirmação pública da agroecologia no país coincidiram com o período de conquistas democráticas inaugurado na década de 1980, após duas décadas de ditadura militar, quando o projeto da Revolução Verde foi imposto à sociedade brasileira. Uma trajetória sincrônica à verificada em outros países da América Latina, cujos processos históricos também foram negativamente influenciados pela Revolução Verde, um projeto político-ideológico autoritário imposto em toda a região em clara resposta aos chamados “riscos” de disseminação da “revolução vermelha”, àquela altura já experimentada em Cuba. 

Embora a emergência da agroecologia no Brasil como um processo social contra hegemônico tenha sido impulsionada a partir de variadas origens sociais e geográficas, são duas as vertentes determinantes que canalizaram os processos de mobilização e convergiram para a formação, respectivamente, da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA-Agroecologia): a primeira, intimamente associada às históricas lutas camponesas e de povos e comunidades tradicionais por reforma agrária, direito aos territórios tradicionais, por emancipação econômica e reconhecimento de direitos, mobiliza movimentos sociais do campo, das águas, das florestas e das cidades, além de organizações de assessoria, notadamente ONGs; a segunda, relacionada ao pensamento social e ambiental crítico no universo científico-acadêmico, envolve o engajamento de educadores/as, pesquisadores/as, extensionistas e estudantes. 

Ambas vertentes ganharam corpo e capacidade de expressão pública a partir de processos paulatinos de aproximação e reconhecimento mútuo entre distintos sujeitos coletivos portadores de uma crítica radical ao agronegócio e aos demais megaprojetos econômicos desestruturadores dos meios e modos de vida do megadiverso campesinato e dos povos tradicionais e indígenas. A identidade coletiva em torno à agroecologia foi se amalgamando também pela afirmação de modelos alternativos para a organização social, técnica e econômica do mundo rural e dos sistemas alimentares. No bojo desse processo de luta social, a um só tempo de resistência e de afirmação de alternativas ao capitalismo agrário, a agroecologia foi incorporada como uma referência teórica para a descrição, análise e mútua identificação das experiências sociais contra-hegemônicas. 

A ação convergente da ANA e da ABA-Agroecologia foi determinante para a acumulação de forças e para a expressão pública coesa de movimentos e organizações sociais que lutam cotidianamente nas heterogêneas realidades dos territórios, onde efetivamente a agroecologia se expressa como força material e como um enfoque para a relocalização dos sistemas alimentares. 

Cabe destacar nessa trajetória, a conjuntura particularmente favorável a partir de 2003, quando o governo Lula assume o combate à fome como prioridade política. A instituição da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que estabeleceu um processo de governança intersetorial com ativa participação da sociedade civil, foi determinante para a criação de uma nova geração de políticas públicas voltadas para a agricultura e a alimentação. Esse processo instituinte contou com inspirações e aprendizados de experiências anteriores do campo agroecológico, muitas delas tornadas possíveis pela celebração de parcerias de organizações e movimentos sociais com governos municipais e estaduais e órgãos do governo federal. 

Em que pese a reafirmação da hegemonia política e ideológica do agronegócio sob os governos petistas, restringindo os avanços nesse campo alternativo a um pequeno nicho de inovação institucional, alguns ensinamentos desse período devem ser recuperados neste momento em que a fome e a miséria voltam a ocupar um lugar destacado na agenda política nacional.   

É importante aqui reiterar que a pandemia do coronavírus não é a responsável por essa regressão histórica que leva o Brasil de volta ao mapa da fome das Nações Unidas. Esse é um problema estrutural cuja raiz está no sistema econômico gerador de desigualdades sociais abissais. Desde golpe de Estado de 2016 e, principalmente, desde janeiro de 2019, essa realidade vem se agravando com o aumento dos índices de pobreza resultante da imposição da ortodoxia neoliberal sobre a gestão governamental, implicando inclusive o desmonte das políticas de segurança alimentar e nutricional.  

Destoando das medidas tomadas em meio à pandemia por lideranças políticas de outros países, as forças reacionárias que controlam o poder de Estado no Brasil se aproveitam da situação para tentar levar à frente sua agenda regressiva.  Enquanto o ministro da Economia alegava a necessidade de reformas para a redução do tamanho do Estado, a Câmara dos Deputados aprovava a Carteira de Trabalho Verde e Amarela, desprotegendo ainda mais o trabalho em favor do capital, e governadores renovavam a isenção fiscal para agrotóxicos. 

Além de denunciar a orientação covarde e criminosa assumida pelos mandatários do turno, cabe nesse momento às forças democráticas lutar pela implantação de medidas públicas capazes de dar respostas ao drama humanitário da fome com a urgência que a situação exige. Sem que essas medidas sejam adotadas, o duramente conquistado, lentamente liberado e insuficiente auxílio emergencial de 600 reais direcionado para as pessoas em situação de maior vulnerabilidade econômica serão gastos para a compra de comida de péssima qualidade. Além de comprometer a saúde individual no exato momento em que o sistema imunológico das pessoas precisa ser fortalecido, os bilhões de reais gastos nessa direção favorecerão (outra vez) os interesses econômicos dos impérios alimentares, quando poderiam exercer o papel de geradores de efeitos multiplicadores sobre economias dinamizadas por milhões de pequenos produtores e distribuidores de alimentos saudáveis articulados em redes locais por todo o país.

Ao favorecer o aumento do consumo de alimentos ultraprocessados, as iniciativas governamentais anunciadas até o presente comprometerão a produção e a distribuição de alimentos saudáveis, contribuindo para inflacionar o preço dos mesmos. Conclui-se, nessa ordem de ideias, que a economia dos alimentos ultraprocessados, agora fortalecida pelas medidas de combate aos efeitos da pandemia, funciona como um elo articulador de um ciclo vicioso formado pela concentração de renda, pela destruição de postos de trabalho, pelo empobrecimento, pela fome e pelos agravos à saúde. A essência dessa lógica perversa de acumulação, que conecta comida de má qualidade, relativamente barata para consumidores e altamente lucrativa para os grandes complexos monopolistas, está no controle exercido por estes últimos nas etapas finais das cadeias produtivas, exatamente onde são realizados os maiores lucros. 

Medidas emergenciais de caráter estruturante deveriam ser concebidas no sentido de interromper esses ciclos regressivos para que círculos virtuosos sejam impulsionados ao associar a distribuição de renda à promoção da saúde, à dinamização de economias sociais e solidárias e à geração de postos de trabalho. No lugar da apropriação massiva do valor agregado pelos donos do capital, a riqueza social seria dividida de forma justa entre milhões de agentes econômicos de pequeno porte que, com seu trabalho, estruturam cadeias alimentares territorialmente descentralizadas.  

Essa mudança de perspectiva não deixa dúvida quanto ao caminho a ser seguido: por um lado, eliminar o fomento público à produção e ao consumo de alimentos ultraprocessados; por outro, estimular a produção e o consumo de alimentos saudáveis. Para que tenha efetividade imediata e crie condições para enfrentar a crise de empobrecimento associada à insegurança alimentar e nutricional que tenderá a se estender por muito tempo após a pandemia, uma estratégia nessa direção implica necessariamente a criação de demanda pela produção oriunda da agricultura familiar. Além de ser capaz de reagir rapidamente a estímulos econômicos nessa direção, a agricultura familiar camponesa, como já argumentado, é portadora de uma racionalidade econômica que induz à geração de múltiplos efeitos sociais, culturais e ecológicos necessários para o enfrentamento e superação da crise estrutural que concerne e envolve toda a Sociedade. 

Criar espaço físico, ideológico, político e econômico para que a agricultura familiar camponesa possa desenvolver suas potencialidades multifuncionais exige a implantação de um conjunto integrado de medidas estruturantes de caráter público, a começar pelo cumprimento do atualmente ameaçado dispositivo constitucional da função social e ambiental da terra. Muitas formulações críticas e proposições coerentes com a perspectiva agroecológica foram produzidas nesse sentido no decorrer dos últimos anos, dando lugar a amplos debates e consultas envolvendo a sociedade civil organizada. Destacamos aqui duas delas: a carta da 5a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, de 2015, cujo lema foi “Comida de Verdade no Campo e na Cidade”; e a carta do IV Encontro Nacional de Agroecologia, de 2018, cujo lema foi “Agroecologia e Democracia: Unindo Campo e Cidade”. 

Em que pese que as realidades agrária, agrícola e alimentar tenham se degradado intensamente no Brasil desde o lançamento desses documentos, a essência das proposições neles apresentadas permanece vigente como horizonte para a luta social. Avançar em transformações estruturais como as defendidas pela sociedade civil exige longo processo de acumulação de forças. Nesse momento de crise em que a correlação de forças na sociedade e na esfera político-institucional é desfavorável ao avanço dessa agenda, isso implica a implementação de  ações concretas, política e economicamente factíveis, que respondam a necessidades urgentes das parcelas socialmente mais vulneráveis da população e que contribuam para fomentar redes territorializadas de economia solidária. Este é o desafio que deve ser assumido de imediato pelo campo da esquerda democrática.  

Em caráter emergencial, as ações públicas devem focalizar o acesso à alimentação saudável por parte das populações mais vulneráveis, dentre as quais destacam-se os moradores em situação de rua, os residentes em favelas, as comunidades quilombolas e indígenas e os residentes em periferias urbanas. Exatamente no foco já assumido pela sociedade civil a partir das iniciativas solidárias que se multiplicam por todo o país. Nesse momento, mais do que nunca, o papel do Estado deve ser o de reconhecer e fortalecer as capacidades das organizações civis de se mobilizarem em solidariedade com os mais vulneráveis. 

O sentido político da proposta da Articulação Nacional de Agroecologia

A imediata retomada do Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA) proposta pela Articulação Nacional de Agroecologia logo no início da quarentena, teve o objetivo de fortalecer as redes de solidariedade rapidamente ativadas pela sociedade civil em todo o país no sentido de assegurar o acesso à alimentação saudável pelas parcelas mais atingidas pelos efeitos da pandemia. O PAA é um dos instrumentos concebidos a partir de 2003 como parte da estratégia governamental de superação da fome e da insegurança alimentar no Brasil. 

Com base em ampla e ativa participação de organizações da sociedade civil reunidas no Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), o PAA inspirou a criação de arranjos intersetoriais capazes de superar a fragmentação institucional do Estado, um dos maiores bloqueios para a internalização da perspectiva agroecológica nas políticas públicas. Ao adquirir alimentos produzidos pela agricultura familiar e destiná-los a setores da população socialmente vulneráveis, o programa promoveu efeitos sinérgicos entre segmentos da estrutura funcional do Estado com funcionamento tradicionalmente  autárquico: fomento econômico (garantia de compra e de preços mínimos para a agricultura familiar), proteção social (assistência alimentar a populações vulneráveis), conservação ambiental (resgate da biodiversidade, incentivo à diversificação produtiva) e revalorização cultural (reafirmação de identidades, de produtos e hábitos alimentares regionais e da autoestima). Além disso, um dos aspectos que distingue o PAA frente a políticas anteriores de produção e abastecimento alimentar foi a aposta no potencial produtivo do setor mais empobrecido da agricultura familiar, aquele equivocadamente denominado de “agricultura de subsistência”, geralmente assumido pelo Estado exclusivamente como público beneficiário de políticas assistenciais.

Com o recurso orçamentário de uma única fonte, o programa foi capaz de imprimir simbiose entre diferentes frentes administrativas do Estado. Demonstrou assim uma alta eficácia fiscal no emprego de recursos públicos e contribuiu ao impulso de processos virtuosos de desenvolvimento rural ao favorecer a criação de vínculos diretos entre a produção e o consumo de alimentos, por contribuir ao incremento e maior apropriação do valor agregado pelas famílias agricultoras e também por revalorizar práticas e expressões culturais ligadas ao uso social da biodiversidade.

Ao apoiar a construção de circuitos curtos de comercialização, o PAA também incentiva a diversificação produtiva dos estabelecimentos da agricultura familiar, elemento central de qualquer estratégia técnica de base agroecológica. Por meio desse duplo efeito positivo, o PAA proporcionou o incremento da renda das famílias agricultoras sem que para isso elas tenham sido levadas a se submeter a relações de dependência técnica e econômica aos complexos agroindustriais e financeiros.

O PAA foi uma das políticas públicas que sofreu severos cortes orçamentários nos últimos 8 anos. No auge de sua execução, em 2012, o programa destinou cerca de 850 milhões de reais para a compra de quase 300 mil toneladas de 380 diferentes tipos de alimentos produzidos por 185 mil agricultores/as familiares, beneficiando 24 mil entidades de assistência alimentar. Mesmo esse volume de recursos relativamente pequeno, mas de alto valor demonstrativo em seus resultados, foi fortemente erodido pelas políticas socialmente regressivas do atual governo. O orçamento de 2020 restringiu-se a 186 milhões de reais, dos quais 66 milhões estavam contingenciados no início da quarentena. 

A ANA reivindica a destinação imediata de 1 bilhão de reais, recurso suficiente para a aquisição de 300 mil toneladas de alimentos. Esse montante seria suficiente para abastecer 11 milhões de pessoas com frutas, legumes e verduras por mais de 60 dias, assegurando o consumo diário per capita de 400 gramas desses alimentos, tal como recomenda a Organização Mundial da Saúde.

Sabemos que em situações graves de crise como a que vivemos atualmente, os mais pobres são levados a priorizar os parcos recursos financeiros que lhes chegam às mãos para comprar o “grosso” da alimentação, ou seja, arroz, feijão, açúcar, macarrão e mais alguns poucos itens. O PAA pode vir a exercer, portanto, um papel determinante para assegurar nutrição mais equilibrada. Isso é especialmente relevante num país no qual praticamente inexistem campanhas públicas de promoção da alimentação saudável e adequada e onde a propaganda dos alimentos ultraprocessados é veiculada diariamente por horas a fio pelos meios de comunicação de massa.

Além de assegurar prioridade do acesso a alimentos saudáveis por quem mais precisa, a retomada do PAA contribuiria diretamente ao fortalecimento da economia de milhares de agricultores e agricultoras familiares. A interrupção de canais de comercialização pelo fechamento de lanchonetes e restaurantes, pela suspensão de feiras livres ou pelas restrições de circulação de pessoas e veículos em alguns estados e municípios, faz com que uma produção essencial neste momento esteja sendo perdida. 

Recursos alocados para a agricultura familiar através do PAA serão reinvestidos na produção, gerando efeitos multiplicadores sobre as economias locais. O instrumento deve ser compreendido também como uma política de desenvolvimento territorial que dinamiza a economia a partir da geração de trabalho e renda em atividades essenciais para a promoção da segurança alimentar e nutricional e da saúde das populações. Por essa razão, a proposta da sociedade civil prevê a ampliação do orçamento do programa para 3 bilhões de reais até o final de 2021.

A mobilização recente da sociedade civil pela retomada imediata do PAA alcançou o seu primeiro êxito com o anúncio da Medida Provisória 957, em 27 de abril, que destinou 500 milhões de reais do orçamento federal para o programa. Embora aquém do montante demandado e com significativa demora, essa conquista demonstra a capacidade de proposição e incidência política da sociedade civil diante de um governo que se mantém de costas para as necessidades do povo. 

A proposta da ANA deve ser compreendida no bojo de uma estratégia pública orientada para a geração de demanda por alimentos produzidos pela agricultura familiar. Tal estratégia deve combinar um conjunto integrado de políticas e programas, envolvendo compras públicas, incentivos fiscais, crédito, restaurantes populares, campanhas educativas entre outros instrumentos governamentais de intervenção nos mercados. A retomada de espaços de governança participativa nos vários níveis da Federação é uma condição importante para assegurar a perspectiva intersetorial da estratégia, bem como a sua cogestão com a sociedade civil.

Pela relevância que assume em termos de cobertura social e de orçamento destinado, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) figura entre os instrumentos chave desta estratégia. É essencial que a mais ampla mobilização da sociedade cobre dos governos estaduais e municipais que sigam destinando os recursos do PNAE para a compra de alimentos diretamente da agricultura familiar, tal como previsto na nova lei do programa, de 2009. Mesmo com as atividades escolares suspensas no contexto da pandemia, é possível manter a oferta de alimentos de qualidade aos estudantes da rede pública, como vêm demonstrando alguns governos estaduais e prefeituras em aliança com organizações da agricultura familiar.

As lutas contra-hegemônicas resultaram em conquistas importantes, como os assentamentos da reforma agrária e o reconhecimento dos direitos territoriais de comunidades tradicionais. Foram também conquistas dessas lutas os programas de convivência com o semiárido, com a construção de milhões de cisternas e outras infraestruturas para captação e armazenamento de água em comunidades rurais que nesses dias celebram as boas chuvas, a água guardada e a promessa de fartura nas colheitas. Foram as lutas pela democracia que tornaram possível a milhões de famílias camponesas terem alcançado hoje condições para seguir produzindo a comida de verdade que chega a quem mais precisa através das mais variadas iniciativas solidárias. São nos momentos históricos mais dramáticos que a importância do lugar ocupado e do papel desempenhado pela agricultura familiar camponesa no desenvolvimento social torna-se mais visível e que se impõe seu reconhecimento simultâneo como agente histórico e como valor societal.

O coronavírus apertou o passo da História e o futuro é imponderável. Mas nunca é demais recordar que a História é escrita através das lutas sociais. Impedir o colapso que se anuncia exige o reencontro da humanidade com ela mesma e com as suas fontes vitais. A agroecologia aponta caminhos para que economia seja enraizada nos valores da solidariedade humana e da reciprocidade com a natureza. Ao fornecer orientações para o desenvolvimento de instituições reguladoras de sistemas alimentares saudáveis, justos e sustentáveis, ela funcionaria como um antídoto acionado localmente contra a necropolítica imposta globalmente pelos impérios alimentares. 

Criar as condições para que as promessas da agroecologia se tornem realidade é, antes de tudo, um desafio político. Diante da poderosa resiliência do regime alimentar corporativo, esse desafio só será superado se assumido por amplas maiorias sociais em detrimento dos interesses de uma minoria predatória e parasitária. Cabe às forças democráticas organizadas da sociedade atualizarem narrativas e métodos de mobilização para que demandas de diferentes segmentos sociais e identitários ativos na militância em defesa da democracia sejam articuladas. Mais do que nunca a crise do coronavírus evidencia que a alimentação saudável, uma necessidade vital cotidiana do povo, apresenta-se como um poderoso elo de articulação entre essas demandas.

*Paulo Petersen é agrônomo, coordenador executivo da AS-PTA – Agricultura Familiar e Agroecologia, membro  do núcleo executivo da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA-Agroecologia)
 
Denis Monteiro é agrônomo, secretário executivo da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e doutorando na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

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Agroecologia ou Colapso (1). Por Paulo Petersen e Denis Monteiro

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