O que falta para Bolsonaro virar Chávez?

Falta um abismo — é óbvio. Mas velha mídia não vê, em sua cegueira de “venezuelização do Brasil”, que um presidente reduziu pobreza, nacionalizou petróleo e promoveu diplomacia altiva; outro, é submisso aos EUA e ataca democracia

por Almir Felitte*, em Outras Palavras

A cada dia que passa, o apoio público a Bolsonaro vai ficando cada vez menor. Mesmo que seu Governo tenha dado continuidade às reformas liberais apoiadas pela grande mídia, as constantes trapalhadas e os resultados pífios da economia logo fizeram o já envergonhado apoio de jornalistas dos grandes grupos ficar ainda mais tímido. Os constantes ataques do Presidente à liberdade de imprensa e as diárias ameaças à democracia também não têm ajudado Jair junto a boa parte dos outrora amigos da imprensa.

A situação, porém, não deixa de criar suas ironias. Como todos os grandes veículos de imprensa possuem um pensamento econômico único, o do “liberalismo religioso”, as pauladas em Bolsonaro vão só até a “página dois”, afinal, os dogmas liberais não podem ser contestados em horário nobre. Assim, mesmo que Bolsonaro seja mais um representante da onda de extrema direita que possui diversas figuras políticas que rezam pela mesma cartilha dele, pipocam em programas e artigos de “palpiteiros políticos” metidos a especialistas opiniões que equiparam Bolsonaro ao…..Hugo Chávez.

O ultraliberalismo misturado ao autoritarismo e ao conservadorismo, todos típicos de Bolsonaro, podem ser comparados ao que faz Viktor Orbán na Hungria, Lenin Moreno no Equador e Piñera no Chile. Na história, é altamente comparável às ditaduras sul-americanas dos anos 60/80, como a de Pinochet no Chile, de Stroessner no Paraguai ou dos militares no Uruguai e na Argentina. Seu discurso anticomunista, além de uma cópia de Trump, remete às perseguições “macarthistas” que faziam os governos dos EUA em plena Guerra Fria. Bolsonaro é comparável a todos estes fenômenos históricos e atuais da direita mundial e, ainda assim, a grande mídia insiste em compará-lo a um bolivariano como o venezuelano Hugo Chávez.

Mas, afinal, o que falta para Bolsonaro virar um Hugo Chávez brasileiro?

Resumidamente: falta um abismo.

A começar pela própria trajetória política de cada um até o poder. Hugo Chávez começou a sua “revolução” política no seio das Forças Armadas, sempre à esquerda, e acabou perseguido e preso ao defender os direitos de um povo massacrado pela elite venezuelana. Chávez foi, essencialmente, uma resposta popular e tardia da Venezuela ao “Caracazo”. Bolsonaro, apesar de também vir da caserna, fez carreira por três décadas como um deputado medíocre do chamado “Centrão”, grupo de partidos de direita que se unem para utilizar o Congresso Nacional como bancada de negócios. Por quase 30 anos, sobreviveu sem muito brilho às custas de polêmicas conservadoras. Na onda da antipolítica, chegou da mediocridade ao poder de forma meteórica.

Uma vez no poder, os dois governos são incomparáveis. Se Bolsonaro quisesse realmente ser Chávez, ele deveria, por exemplo, começar nacionalizando o petróleo brasileiro e retomando o controle da Petrobras. Foi o que fez Hugo através da PDVSA na Venezuela. Eleito em 1999, Chávez passou a alterar substancialmente a estrutura da estatal petrolífera apontando para uma política mais nacionalista no setor já em 2001. Por isso mesmo, em 2002, sofreu uma tentativa violenta de golpe chefiada por figuras que ainda hoje dão as caras na política venezuelana, como Leopoldo López e Capriles. Logo levado de volta ao poder pelo povo nas ruas, seguiu com seu projeto até a efetiva nacionalização do petróleo em 2007.

Tempos depois, no Brasil, Bolsonaro já levantava dúvidas sobre uma possível privatização da Petrobras durante sua campanha em 2018. Dois anos antes, ainda como deputado, o mesmo já havia votado a favor da entrega da exploração do pré-sal a empresas estrangeiras no Brasil. No Governo, o atual Presidente segue com a submissão às grandes potências mundiais no setor petrolífero, com uma política de preços que desestabiliza o mercado brasileiro para garantir o lucro de rentistas estrangeiros e um sucateamento das refinarias para induzir a importação. Em resumo, ao contrário de Chávez, Bolsonaro adota uma política antinacionalista no setor produtivo mais importante da nossa economia.

Mas o controle sobre o petróleo é apenas o mais simbólico de uma série de comportamentos que escancaram o abismo existente entre as duas figuras políticas. Hugo Chávez não peitava o imperialismo norte-americano apenas em um setor econômico, mas em toda a geopolítica mundial. O mandatário venezuelano foi um dos cabeças da formação da ALBA, aliança de países bolivarianos na América Latina que serviu de aproximação alternativa aos países cujos governos eram boicotados pelos EUA. Foi também sob o comando de Chávez que o papel venezuelano na OPEP (países produtores de petróleo) passou a incomodar grandes potências.

Do outro lado da fronteira, anos mais tarde, a imagem de Jair Bolsonaro tem corrido o mundo em charges que, por vezes, o comparam a um fiel cão encoleirado do presidente norte-americano Trump. A comparação não é por menos. Os exemplos de submissão aos EUA se acumulam entre retiradas de barreiras comerciais com poucas contrapartidas, abertura exclusiva de fronteiras em meio a uma pandemia e a humilhação de acreditar em promessas questionáveis que nunca se concretizam. Humilhações que não impedem que o presidente brasileiro siga desfilando, sem qualquer motivo aparente, ao lado da bandeira norte-americana em passeatas.

Das fronteiras pra dentro, as comparações entre os dois políticos se justificam ainda menos. Sob a presidência de Chávez, a Venezuela experimentou um período de crescimento econômico aliado à redução de desigualdades sociais. Hugo assumiu o país em 1999 com uma recessão de 6%. Em 2012, último ano completo em que esteve no poder, a Venezuela apresentava um crescimento anual de 6% do PIB. No mesmo período, o PIB per capita do país cresceu de US$ 8,2 mil para US$ 13,2 mil, enquanto o desemprego despencou de 14,5% para 8%.1

Foi no período chavista, também, que a Venezuela viu sua taxa de pobreza urbana cair de 49% (1999) pra 29% (2010) e o índice de Gini, que mede a desigualdade social, se tornou o mais baixo (0,41) da América Latina em 2012.2 Em suma, Chávez adotou para seu país uma política econômica de viés mais nacionalista, com o Estado possuindo um maior poder de intervenção e com a ampliação de um Estado Social de garantias básicas e distributivas para a população mais pobre. O bolivarianismo por essência, com suas claras influências socialistas.

Por outro lado, em pouco mais de um ano, Bolsonaro segue com o aprofundamento da agenda ultraliberal no Brasil pautado nos pilares da privatização, do desmonte do Estado Social e da austeridade. Uma agenda que já vinha causando desastres sociais e econômicos no país desde 2015, com dois anos seguidos de recessões e os seguidos “PIBinhos” desde 2017, incluindo o primeiro ano de governo Bolsonaro, mas que agora pode ter seus erros disfarçados pela grande crise causada pela pandemia da covid-19.

É preciso, ainda, que se fale sobre o avanço dos mecanismos de participação popular na era chavista venezuelana. O uso de plebiscitos, por exemplo, foi recorrente, inclusive para uma Constituinte, em 1999, culminando numa Carta Magna que consagrou uma série de mecanismos de participação popular no país. Entre os mecanismos, a possibilidade do povo revogar mandatos, as iniciativas legislativas populares e as assembleias de cidadãos. Mais tarde, o chavismo criaria os Conselhos Locais de Participação Pública (CLPP) e os Conselhos Comunais, órgãos para a participação direta do povo na política de suas comunidades.

Na boca dos jornalistas liberais brasileiros, porém, tais medidas sempre viraram mero populismo ou, pasmem, tentativas de implantação de uma ditadura. Normal, pois sabemos bem que os liberais brasileiros não têm lá muita afeição por mecanismos que deem ao povo um maior poder de decisão. Estranha, porém, que estes queiram comparar a experiência popular venezuelana sob a presidência de Chávez com o desmonte democrático que promove Bolsonaro, como na vez em que o mandatário brasileiro tentou, por força de Decreto, extinguir centenas de Conselhos colegiados que promoviam a participação popular.

Diante deste abismo de diferenças, não há outro nome que não “mau-caratismo” para definir o que membros da imprensa brasileira fazem semanalmente ao comparar Bolsonaro com Hugo Chávez, apontando para o eterno risco de “venezuelização” do Brasil. No desespero de desvincular o fruto mais podre da árvore liberal que o concebeu, a grande mídia brasileira ignora a proximidade óbvia de Bolsonaro com figuras repugnantes como Pinochet, Stroessner, Erdogan, Orbán, Piñera ou mesmo Trump para, mais uma vez, falsear a história em favor da cada dia mais capenga ideologia liberal. Mas a verdade é que, para Bolsonaro chegar a ser um líder como Hugo Chávez, falta um abismo. Azar do Brasil.

1 http://g1.globo.com/economia/noticia/2013/03/governo-chavez-melhorou-pib-mas-aumentou-dependencia-do-petroleo.html

2 https://www.justificando.com/2019/01/30/por-conforto-esquerda-autorizada-se-soma-ao-imperialismo-contra-a-venezuela/

*Advogado e estudioso de Políticas de Segurança Pública

Foto: Sérgio Lima / AFP

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