O Ministério da Saúde lançado à escuridão

Sob Teich, pasta já vinha sendo desmontada. Se depender do “casca-grossa” general Pazuello, ou dos cotados para assumir seu comando, o anticientificismo vai reinar. Leia também: Brasil já é o quarto país com mais casos da covid-19

por Maíra Mathias e Raquel Torres, em Outra Saúde

DESVENTURAS EM SÉRIE

Com o Brasil tendo mais de 16 mil mortes nas costas e muito o que cobrar do governo federal, a última coisa que gostaríamos de discutir é a crise política gerada e alimentada pelo presidente Jair Bolsonaro. Mas cá estamos, sem ministro da Saúde por tempo indeterminado no meio da pior pandemia do século.

O agora ex-ministro da Saúde Nelson Teich fez a única coisa que um médico poderia fazer num governo negacionista. Pediu para sair. O interessante é entender por que afinal ele entrou, já que as condições estavam postas desde o início: a obsessão do presidente pela hidroxicloroquina e pela abertura econômica a qualquer preço eram cristalinas no momento em que Teich assumiu o cargo, dizendo-se em “alinhamento completo” com o chefe. A tendência autoritária de Bolsonaro, por sua vez, é conhecida desde… sempre.

Talvez só o grau de humilhação a que foi submetido por Bolsonaro não estivesse no radar de Teich. Segundo a jornalista Tânia Monteiro, do Estadão, na quinta à noite o oncologista disse a amigos que havia chegado ao seu limite e que tinha um nome a zelar – foi logo depois de Bolsonaro garantir, em transmissão ao vivo a empresários, que o protocolo para uso da hidroxicloroquina seria modificado. Dois dias antes, vimos o inacreditável episódio das academias e salões de beleza, serviços liberados por Bolsonaro sem conhecimento do ministro.

Embora a sensação tenha sido a de que Teich sofreu uma fritura em tempo recorde – alguns dias apenas – , o colunista d’O Globo Lauro Jardim revela que o caldo começara a entornar já uma semana após a posse. Na época, Bolsonaro teria confidenciado a duas pessoas o arrependimento pela escolha do ministro, dizendo que teria sido melhor nomear o general Eduardo Pazuello, a quem coube ser o número dois da Pasta. Robson Bonin, da Veja, escreveu ainda na sexta-feira de manhã que Bolsonaro não apenas previa a demissão de Teich como não se importava muito com isso: já havia convidado Pazuello para substitui-lo. O desligamento de Teich aconteceu horas depois.

“Os países que se saíram melhor foram os que mantiveram a coerência em todos os níveis de governo, adotaram mensagens simples e engajaram toda a população em seus esforços”, disse mais tarde o diretor-executivo da Organização Mundial da Saúde (OMS), Michael Ryan, quando perguntado sobre a demissão. Para bom entendedor, meia palavra basta. O pior é que, no nosso caso, Bolsonaro de fato está empenhadíssimo em construir coerência em todos os níveis de governo; o problema é que sua batalha é por um engajamento anti-ciência e gerador de mortes…

Governadores e prefeitos criticaram a segunda troca no comando do Ministério em menos de um mês. Depois de entrarem em atrito com Teich devido à sua inação, secretários estaduais de saúde também manifestaram “alta preocupação” em nota. Parlamentares do Centrão e da oposição se mostraram irritados e incrédulos, embora nem todos tenham exatamente lamentado a saída de Teich: “A impressão é de que ele nunca assumiu realmente”, disse o deputado Efraim Filho, líder do DEM na Câmara. Trata-se de um sentimento geral.

Entidades de ciência, medicina e saúde coletiva e o Conselho Nacional de Saúde também se manifestaram em notas. E até os empresários que fecham com Bolsonaro estão de pé atrás com suas trapalhadas, criticando a nova demissão. “Cada dia – e tem sido quase que diariamente – que ele [Bolsonaro] cria uma instabilidade, ele aumenta a insegurança e atrapalha ainda mais o retorno ao trabalho. Com uma insegurança como essa e a mensagem ruim, não tem condição de voltar porque está todo mundo inseguro”, diz à Folha José Ricardo Roriz, vice-presidente da Fiesp, que, é claro, quer a reabertura econômica.

Luiz Henrique Mandetta, também recém-saído da Pasta, lamentou no Twitter e depois disse à Folha que foi um mês perdido. “Teria sido uma surpresa se ele tivesse conseguido transitar em uma política tão complexa”, disse, criticando o fato de que Teich nada sabia sobre o SUS quando assumiu o cargo.

É sempre bom lembrar que o general Pazuello, que assume por ora, sabe menos ainda…

Em tempo: diante de tantas críticas, chama a atenção o posicionamento de outro ex-ministro da Saúde, Ricardo Barros, que chefiou a pasta no governo Temer e andava meio sumido dos debates. Para ele, discutir hidroxicloroquina é inútil – não porque os estudos não apoiem o uso indiscriminado da droga, mas porque o Conselho Federal de Medicina já autorizou a prescrição. “São eles [ex-ministros] que têm que se enquadrar“, declarou à CNN. Ainda aproveitou para criticar o isolamento social, dando para isso o motivo mais aberrante de todos: os hospitais privados estão perdendo dinheiro. “O hospitais estão quase quebrando. Eles perderam o seu movimento normal, das cirurgias eletivas, os acidentes de trânsito caíram muito – que era um motivo de faturamento dos hospitais”, argumentou ele.  Está aí alguém que definitivamente ‘fala a língua’ do presidente, como Bolsonaro já disse desejar. Seu nome, porém, não aparece entre as possibilidades de nomeação para a pasta. Por enquanto.

O FUTURO DA PASTA

Ao contrário de Mandetta, que saiu denunciando as pressões que sofreu do presidente, em seu brevíssimo pronunciamento de despedida Nelson Teich sequer falou sobre por que ‘escolheu’ sair. O motivo, obviamente, é conhecido: a cloroquina. Mas o fato é que a colher de chá dada pelo ex-ministro a Bolsonaro rendeu ao presidente mais tempo para escolher o próximo ocupante da pasta. No fim de semana, ele teria confidenciado a aliados que não queria ser ‘açodado’. 

No momento, existem duas correntes de pressão atuando sobre o presidente. Seus mais novos aliados do Centrão defendem, ao menos publicamente, a tese de que o melhor é deixar as coisas como estão durante a pandemia. Assim, o general Eduardo Pazuello assumiria um “mandato tampão“. Ele já se dispôs a assinar embaixo do protocolo “exigido” por Jair Bolsonaro que recomendará o uso do cloroquina aos primeiros sintomas da covid-19 – o que, como mostraram estudos internacionais, pode causar danos cardiológicos e mortes. Sendo militar, Pazuello obedeceria a outras ordens, abraçando a retórica da reabertura econômica e talvez a adoção da invenção presidencial: o isolamento vertical. Quem vocaliza isso? Pelo menos duas pessoas: o líder do governo no Congresso, o senador Eduardo Gomes (MDB-TO), e o vice-líder, deputado federal Ricardo Barros (PP-PR) – que é, como sabemos, ex-ministro da Saúde. Em suma, para o Centrão Pazuello é uma excelente bucha de canhão. 

Naturalmente, o núcleo militar tem posição bem diferente. Segundo o colunista Lauro Jardim, os ministros fardados do Planalto avaliam que 100% contra que botar um militar no comando do Ministério da Saúde é “levar para o colo das Forças Armadas o problema da covid“.

A hipótese corrente na mídia é a de que Pazuello fica à frente da pasta ao longo dessa semana, pelo menos. Sua missão, já confirmada pelo Ministério da Saúde, será atualizar o protocolo da cloroquina no tratamento da covid-19. Entre os cotados para assumir a pasta no lugar dele, há outro militar – o contra-almirante Luiz Froes, diretor de Saúde da Marinha – e dois militantes, o ex-ministro e deputado federal Osmar Terra (MDB-RS) e a oncologista Nise Yamaguchi, que se reuniu com Bolsonaro na sexta e já disse em entrevistas que está preparada para assumir a pasta. Mas já surgem outros dois nomes que teriam apoio dos filhos de Bolsonaro: Anthony Wong, pediatra do Hospital das Clínicas da USP, e Paolo Zanotto, virologista e professor da USP. Ambos já deram declarações favoráveis ao uso da cloroquina em casos leves de coronavírus. Zanotto já apareceu aqui na newsletter antes: no dia 6 de abril, ele participou de uma transmissão ao vivo no Instagram com Eduardo Bolsonaro defendendo a cloroquina. (O posicionamento foi desautorizado pelo Instituto de Ciências Biomédicas da USP, onde ele trabalha, dias depois). No dia 21 daquele mês, ele incentivou, em seu perfil no Facebook, a leitura da portaria assinada por três procuradores bolsonaristas do MPF contra os pesquisadores da Fiocruz que conduziram o estudo clínico sobre a cloroquina. O interessante é que o mesmo Zanotto defendia o isolamento social no início de março. Wong, por sua vez, é entusiasta do “isolamento vertical”. 

UM “CASCA GROSSA”

Eduardo Pazuello é o nono ministro de origem militar no governo Bolsonaro. Mas, ao contrário do núcleo palaciano, ele é um militar da ativa. Antes de assumir a Secretaria Executiva do Ministério da Saúde, o general de três estrelas estava em Manaus, comandando a 12ª Região Militar da Amazônia.
Lá atrás, em 1984, ele se graduou na Academia Militar das Agulhas Negras como oficial de intendência, cargo do Exército voltado para tarefas administrativas. Chegou ao posto de general em 2014. Foi quando coordenou, pelo Exército, a parte logística das Olimpíadas do Rio de Janeiro. Depois disso, ele comandou a “Operação Acolhida”, de atendimento a imigrantes venezuelanos que chegam a Roraima.

“O meu grau de conhecimento específico, técnico, de médico, é leigo”, disse à Veja em uma entrevista de 21 de abril. Segundo a revista, Pazuello é descrito por servidores do Ministério como um general “casca grossa” e sua postura centralizadora teria antecipado a saída de seu antecessor, João Gabbardo, que teria abandonado os planos de ficar mais tempo no processo de transição das gestões Mandetta e Teich por não concordar com os métodos de trabalho do general. Entre nomeações publicadas e engatilhas, Pazuello está promovendo uma verdadeira ocupação militar na pasta. 

MINISTÉRIO ACÉFALO

Em 28 dias, o Ministério da Saúde sofreu baixas históricas e ficou com áreas inteiras acéfalas. É o caso da Secretaria de Atenção Primária à Saúde que está sem secretário e perdeu cerca de dez funcionários que atuavam na coordenação de projetos. Já a Secretaria de Vigilância em Saúde – que chegou a ser cobiçada pelo Centrão – tem um secretário interino e perdeu vários técnicos, dentre eles Sônia Maria Feitosa Brito e Rodrigo Lins Frutuoso, que há mais de uma década faziam parte da equipe. Ao Estadão, técnicos do Ministério da Saúde disseram que vem por aí uma “debandada” do órgão. O clima de trabalho, dizem, está “insustentável”.

QUANTO AO NOVO PROTOCOLO

Na noite da sexta-feira, o Ministério da Saúde confirmou em nota à imprensa que está “finalizando as novas orientações” sobre a cloroquina. “O objetivo é iniciar o tratamento antes do seu agravamento e necessidade de utilização de UTI”, diz a pasta. De acordo com a Folha, a previsão era que o novo protocolo fosse anunciado por meio de uma nota técnica específica. Mas, agora, a pasta decidiu incluir a mudança num balaio de gatos que abrangerá todas as orientações para casos leves da covid-19. Aparentemente, o Ministério pretende se defender, deixando a cargo do médico a responsabilidade pelo uso da substância. 

De nossa parte, achamos improvável que a pasta consiga tirar o corpo fora quando as coisas começarem a desandar. O modelo seguido é o do Conselho Federal de Medicina (CFM), que insiste na cantilena de que não recomenda a cloroquina para casos leves e uso domiciliar, só “autoriza” a prescrição. Com isso, a autarquia sinalizou que não vai punir os profissionais que adotarem essa linha de conduta – e o fez reforçando que não estava seguindo a ciência, mas relatos e observações de médicos brasileiros. Postura que não demorou a mostrar consequências. 

Na quinta-feira passada, Bolsonaro disse a empresários: “Estou exigindo a questão da cloroquina agora também. Se o Conselho Federal de Medicina decidiu que pode usar cloroquina desde os primeiros sintomas, por que o governo federal, via ministro da Saúde, vai dizer que é só em caso grave?”. É por essas e por outras que o CFM também precisa responder pelo seu quinhão de responsabilidade nessa crise.  

Mas é incrível que o Ministério da Saúde ache que tem condições de entrar nesse jogo de faz de conta. Lembramos: uma orientação do Executivo federal tem, sim, mais peso do que uma autorização de um conselho profissional. 

Desde o fim de abril, o Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos EUA, contraindicou o uso de hidroxicloroquina e azitromicina para tratamento da covid-19 fora de ensaios clínicos. Semana passada, duas pesquisas publicadas no JAMA e no New England Journal of Medicine concluíram que a hidroxicloroquina não reduz mortalidade, nem a necessidade de intubações

O protocolo do Ministério da Saúde que ainda está em vigor e é da gestão Luiz Henrique Mandetta determina que o paciente precisa estar em ambiente hospitalar para receber a droga, e que isso só pode acontecer nos casos moderados, graves e críticos da doença, com assinatura de um termo em que a pessoa concorda em ser submetida a um tratamento experimental que pode favorecer quadros de arritmia, hemorragias, entre outros efeitos colaterais potencialmente letais. 

Em entrevista à Folhao ex-ministro resumiu a situação: “O que o presidente quer é que o Ministério faça como se fosse uma prescrição, para que em todas as unidades de saúde, mesmo sem confirmação da covid, seja entregue a cloroquina. Tudo baseado nessa coisa de que um médico falou: ‘acho que é bom’. Mas ninguém colocou no papel, ninguém demonstrou. A [médica Nise] Yamaguchi é uma que, quando você pergunta ‘onde está escrito isso?’, fala: ‘é a minha impressão’”.

Ainda para Mandetta, a cloroquina surge como uma saída política para convencer as pessoas a voltarem ao trabalho. “É uma coisa para tranquilizar, para fazer voltar sem tanto peso na consciência. Se tivesse lógica de assistência, isso teria partido das sociedades de especialidades [não do presidente]. Por isso não tem gente séria que defenda um medicamento agora como panaceia. O Donald Trump [presidente dos EUA] defendeu a cloroquina, mas voltou atrás e parou. Nos EUA, isso gera processo contra o Estado. Aqui no Brasil não, se morrer, morreu. Para mim foi isso que fez com que o Teich falasse: ‘Não vou assinar isso. Vai morrer gente e ficar na minha nota’”.

MUDANÇA DE TOM

Ontem, Jair Bolsonaro participou de outra manifestação organizada na frente do Palácio do Planalto por apoiadores. Chamou atenção a diminuição do número de manifestantes. Eles já não eram muitos nas semanas anteriores – basta ver as imagens aéreas –, mas agora ficou menor. No Rio, a movimentação bolsonarista também foi minguada: cerca de 40 pessoas fizeram um protesto pela reabertura econômica próximo ao Consulado Chinês, em Botafogo.  

O presidente faria um pronunciamento em rede nacional de rádio e televisão no sábado contra o isolamento social. Desistiu. Segundo o Estadão, a mudança se deve à falta de definição no Ministério da Saúde. O próximo pronunciamento teria de acontecer com um céu mais firme. 

Ao invés disso, Bolsonaro levou dois filhos – Carlos e Eduardo – e 11 ministros para a manifestação. Estavam por lá: Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), André Mendonça (Justiça), Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo), Onyx Lorenzoni (Cidadania), Tereza Cristina (Agricultura), Bento Albuquerque (Minas e Energia), Jorge Oliveira (Secretaria-Geral da Presidência), Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia), Ernesto Araújo (Relações Exteriores), Abraham Weintraub (Educação) e Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional).

O tom do discurso foi bem mais ameno que nas semanas anteriores. “Nenhuma faixa, nenhuma bandeira, que atente contra nossa Constituição, contra o Estado de Direito”, disse o presidente, que desejou “dias melhores para a nossa população, em especial pelos poderes Legislativo e Executivo”.
Estadão ouviu de um integrante do Planalto que houve orientação de Bolsonaro a líderes dos movimentos que organizam os atos para que os manifestantes deixassem de lado as faixas pedindo intervenção militar e contrárias aos outros poderes da República. O jornal frisou que é a primeira vez que a ligação entre o presidente e os militantes é confirmada. 

Já repórteres da Folha presenciaram seguranças do Planalto abordando um grupo que pendurou no alambrado em frente ao Palácio uma faixa onde se lia “Fora Congresso, STF, sabotadores. Nova Constituição anti-comunista. Criminalizar o comunismo!”. Depois da conversa, a faixa foi retirada. 
Um dos principais líderes dos atos, o capitão da reserva da Marinha Winston Lima, é transparente sobre a guinada: “Não tem sentido. As coisas estão entrando nos eixos com relação ao STF e o Congresso. Estão se acertando”. O Centrão que o diga…

A propósito: a cloroquina é mesmo uma ótima cortina de fumaça. Ontem, os participantes entoaram música exaltando a substância. 

OUTRA BOMBA

A grande crise do momento foi deflagrada pela denúncia do empresário Paulo Marinho, suplente de Flávio Bolsonaro no Senado. No sábado, ele disse à colunista Monica Bergamo que Flávio foi avisado por um delegado da Polícia Federal que Fabrício Queiroz seria alvo da Operação Furna da Onça. Isso teria acontecido entre o primeiro e o segundo turno das eleições. A PF também teria segurado a operação para que ela não ocorresse antes do final do pleito, o que prejudicaria a candidatura de Jair Bolsonaro. Mais: o delegado teria aconselhado Flávio e demitir Queiroz, e também que Bolsonaro-pai demitisse a filha de Queiroz, que “trabalhava” em seu gabinete em Brasília, embora não pisasse lá. Ambos foram exonerados dia 15 de outubro de 2018. Logo depois, Queiroz sumiu. Mas segundo Marinho, Flávio mantinha contato com ele através de seu advogado. 

A coisa vai ser enrolada porque cabe à PF investigar a denúncia, a pedido da Procuradoria-Geral da República. Marinho vai ser ouvido no âmbito do inquérito aberto depois das acusações de Sergio Moro sobre tentativas de interferência de Bolsonaro na Polícia Federal. 

MORRO ACIMA

O Brasil ultrapassou no sábado a Itália e a Espanha em número de casos registrados de covid-19 e, mesmo com a grave subnotificação, já é o quarto país com maior número de infecções. Após a atualização de ontem à noite, são agora 241.080 casos, com 16.116 mortes. Na semana passada, a marca de 800 mortes em 24 horas foi barrada três vezes: na terça, na sexta e no sábado. Só o estado de São Paulo já responde, sozinho, por 4,7 mil mortes. É mais do que a China inteira. O lockdown, entretanto, ainda não veio por lá, embora pareça inevitável.

Há algumas semanas, projeções indicavam a rápida interiorização da pandemia. Era preocupante porque, apesar de as cidades pequenas serem lugares com densidade demográfica menor, em geral há poucos ou nenhum leito de UTI. Hoje, como mostra a Folha, já há cidades de interior  em colapso ou perto disso. A única opção é transferir os doentes para as capitais. O que esbarra em um problema que vai além da eventual saturação nas capitais: a dificuldade no transporte, com falta de veículos e distâncias enormes. Só no interior de Pernambuco já morreram 100 pessoas. Há casos em que os doentes aguardam transferência por mais de uma semana; com essa doença que progride tão rapidamente, a longa espera é mais do que grave.

Aliás, a situação nas UPAs – onde muitos desses pacientes ficam esperando – é retratada pela reportagem da BBC a partir do relato desesperado de profissionais de saúde. “Os pacientes intubados ficam aguardando leito de UTI, mas tem uma fila gigantesca. Demora para sair a senha desse paciente [para ir para a UTI], demora para sair a transferência e os pacientes ficam mais graves. Às vezes, sai a senha de UTI e não tem transporte. Já é frequente o rodízio de fonte de oxigênio, já que são muitos pacientes e fontes limitadas. Já chegamos ao ponto de estarmos com todos os leitos ocupados, chegar paciente grave que precisa ser intubado, a gente não conseguir e paciente ir a óbito. E vai acontecer com mais frequência”, diz uma médica de Olinda (PE).

O Amapá decretou lockdown em todo o estado nos próximos dez dias. O Tocantins também decidiu pelo confinamento total nos 33 municípios que concentram 70% dos casos do estado.

Como sabemos, as medidas estão diminuindo a circulação de pessoas onde são tomadas, mas nunca no nível desejado. No Amazonas (que tem quase 20 mil casos registrados e 1,3 mil mortes), a suspensão de serviços essenciais foi decretada ainda em março e vem sendo prorrogada desde então. Em maio, a taxa média de isolamento no estado foi de apenas 44% – muito abaixo dos 70% recomendados. Mesmo assim, as mortes começaram a cair, segundo indicam os dados oficiais não sobre a doença, mas a quantidade de enterros. A média de sepultamentos na capital caiu pela metade nas últimas três semanas (de 118 para 59 enterros diários). O governador Wilson Lima, aliado de Bolsonaro, acredita que o estado já passou do pico, mas diz que é preciso manter o isolamento social.

O confinamento na capital e em mais oito cidades paraenses foi estendido por mais semana, até o dia 24. A prefeitura de Santarém, a 700 quilômetros de Belém, também decretou lockdown. A situação por lá é grave: é polo de uma região com 1,2 milhão de habitantes, e é a única com UTI entre 20 municípios. O ex-ministro Luiz Henrique Mandetta disse no sábado que o Pará tem “o maior problema nas mãos”: “O epicentro vai deslocar de Manaus e cair no Pará, em Belém. Está com a curva só que sobe. Nas próximas duas, três semanas, vai sofrer muito. O sistema está começando já a fase de colapso. Vai atravessar o mês de junho colapsado”. As previsões de colapso na região Norte já eram uma realidade em sua gestão.

CEREJA DO BOLO

Uma das pesquisas mais aguardadas até agora é o levantamento coordenado pela Universidade Federal de Pelotas, com dados coletados pelo Ibope e financiada pelo Ministério da Saúde que, a partir de testes sorológicos, pretende estimar a prevalência do novo coronavírus no Brasil. Como já explicamos, vão ser três rodadas de testes em semanas distintas com amostras de 33 mil pessoas sintomáticas e assintomáticas examinadas em cada uma delas. A ideia é calcular o pecentual da população contaminado e a taxa de evolução das infecções. 

As testagens começaram na quinta passada, mas um problema inacreditável está atrapalhando o andamento: em diversos municípios de todas as regiões, equipes que fazem as coletas estão sendo detidas pela polícia e até agredidas. Mais de 800 testes já foram apreendidos e/ou destruídos, e pesquisadores estão sendo obrigados a abandonar as cidades — e o levantamento. “As equipes são detidas para prestar esclarecimentos, são barradas por prefeituras porque não haveria autorização para o trabalho; são atacadas nas ruas porque estariam violando quarentenas ou porque houve boatos de que seriam golpistas ou uma ameaça à saúde”, segundo narram à Folha os coordenadores da pesquisa.

Antes de as equipes saírem à campo, o Ministério da Saúde enviou ofícios aos governos locais informando sobre a pesquisa. Por algum motivo, esses comunicados parecem não ter chegado às prefeituras. O coordenador da pesquisa e reitor da UFPel, Pedro Hallal, escreveu um artigo para a Folha, sem mencionar exatamente as agressões mas afirmando que o estudo precisa “do apoio de todos, das autoridades locais também“.

É bem mais explícita a nota oficial da UFPel: “Nas situações mais graves, os entrevistadores do Ibope foram detidos, com uso de força policial, tendo sido tratados como criminosos. Trata-se de cerca de 2.000 brasileiros e brasileiras, que estão trabalhando para sustentar suas famílias, numa pesquisa que pode salvar milhares de vidas, e que mereciam proteção das forças de segurança e uma salva de aplausos por parte de toda a população. Ao contrário, as forças de segurança, que deveriam proteger os entrevistadores, foram responsáveis por cenas lamentáveis e ações truculentas, algumas delas felizmente registradas”.

NADA DE QUARENTENA

Como se não bastasse a pandemia, as favelas cariocas ainda precisam lidar com operações policiais. Embora tenham diminuído de frequência, elas não pararam. No fim de semana, o Complexo do Alemão foi alvo de uma operação que deixou 13 mortos. “Como a gente não vai se aglomerar se quando está no meio do tiroteio, no meio da guerra, a gente precisa aglomerar todo mundo no cômodo mais seguro da casa para poder se esconder e se proteger?”, questiona a moradora e comunicadora Tiê Vasconcelos, na Ponte. A antropóloga da UFF, Jacqueline Muniz, resume: “O que vemos é um triplo risco: ou morre de covid, ou morre no tiroteio ou morre porque perdeu o trabalho. Essa população fica com uma escolha impossível de morrer, morrer ou morrer”. A Defensoria Pública do estado quer que o Ministério Público investigue as mortes.

MARKETING E CAUTELA

As ações da biofarmacêutica americana Sorrento Therapeutic dispararam na Nasdaq depois que a empresa anunciou que um anticorpo em testes, o STI-1499, foi capaz de evitar que o novo coronavírus infecte as células. Os resultados são ainda de estudos pré-clínicos, realizados in vitro, e dão conta de que o anticorpo tem efeito por quatro dias. Os resultados ainda precisam ser avaliados por outros cientistas. Mas o fundador da companhia já foi à Fox News falar em cura. 

No plano da ciência básica, a UFRJ vem desenvolvendo estudo sobre os anticorpos que surgem depois que as pessoas são infectadas. Segundo os pesquisadores, ainda não se sabe se eles garantem proteção eterna contra o coronavírus – e isso já está sendo reforçado por vários outros cientistas e até pela Organização Mundial da Saúde. Mas o estudo traz um alerta: o PCR, aquele teste molecular mais preciso, tem detectado que muita gente – 40% dos 648 participantes da pesquisa – continuou a testar positivo 15 dias depois do aparecimento dos sintomas. Isso reforça a preocupação de que as pessoas possam continuar contagiando outras mesmo depois de “curadas”. Hoje, o prazo de isolamento para quem teve covid-19 é de 14 dias. Além disso, os cientistas brasileiros também encontraram casos em que o PCR dá negativo e depois volta a dar positivo.

AGENDA

Hoje começa a Assembleia Mundial da Saúde. O evento foi reduzidíssimo e será virtual. Dá para acompanhar por aqui.

O debate mais interessante promete ser a proposta feita pela Costa Rica – abraçada pela Organização Mundial da Saúde na última sexta-feira – de criar um mecanismo global que coloque patentes e informações a serviço de um esforço conjunto de desenvolvimento de tratamentos e vacinas contra o coronavírus, além de testes mais eficazes. A meta é que tudo que saia daí seja acessível para países e populações pobres.

Evaristo Sa/AFP/Getty Images

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