Um debate com Mbembe e a tese de necropolítica em tempos de pandemia

O conceito de “necropolítica” elaborado pelo filósofo Achille Mbembe rompeu as barreiras do debate especializado e restrito da academia, para tomar o vocabulário político corrente e o imaginário de setores bem mais amplos. Este é o primeiro de uma série de artigos em que buscaremos apontar alguns elementos para refletir até que ponto o debate sobre a necropolítica da forma como foi elaborado, e seus antecedentes teóricos na noção de biopolítica foucaultiana, são válidos para apreender a realidade presente. E, mais importante, se aponta alguma saída factível à complexa situação posta para os trabalhadores pela justaposição da crise capitalista com a crise sanitária. As dimensões do racismo e da violência em Mbembe serão examinadas posteriormente.

por Simone Ishibashi e Leticia Parks, em Esquerda Diário

A atual crise do coronavírus e econômica apresentam a faceta assassina do capitalismo em crise

O Brasil governado pela ultradireita tem em Bolsonaro quiçá a expressão mais perfeita de uma política assassina em meio à crise do coronavírus. Defendendo, a todo instante, que a pandemia não importa, Bolsonaro exorta a população a arriscar suas vidas para garantir o lucro de um punhado de capitalistas, em um país que sequer conhece o real número de infectados, devido à falta de testes. A guerra contra a ciência e o conhecimento, que desde o início foi uma prioridade do governo de ultradireita no Brasil, com o desmonte das universidades e a propagação de invenções absurdas contra toda a comunidade científica, agora assume uma faceta mortal. Os números oficiais dão conta de 15 mil mortos, mas a subnotificação publicamente debatida como um fato inconteste esconde um montante muito superior. Mesmo um capitalista da Saúde, como o ex-ministro Nelson Teich, não conseguiu seguir no governo Bolsonaro, anunciando sua demissão. O que Bolsonaro quer é um ministro que chancele sua decisão de acabar completamente com o isolamento, mesmo que isso eleve as mortes.

É com este contexto que muitos têm dito o quanto os efeitos do coronavírus estão longe de ser um mero acidente histórico. Por um lado, foram décadas de precarização e sucateamento dos sistemas de saúde desde o fim do século XX, com os regimes chamados neoliberais, uma reação burguesa ofensiva sobre os Estados de bem estar social nos países imperialistas que só foi possível sobre as costas derrotadas e cansadas de uma classe operária que viu a queda do muro de Berlim.

Nos países do assim chamado Terceiro Mundo – os capitalismos tardios e mais precários – a mesma ofensiva neoliberal tinha vivido laboratórios em regimes repressivos como o de Pinochet no Chile, país que viu todos os sistemas essenciais para a vida serem vendidos ao capital financeiro. Água, gás, saúde, educação, moradia. Se o trabalhador já vivia uma vida marcada pela sobrevivência e reprodução – já que o salário só dá pra isso mesmo – o neoliberalismo apertou ainda mais os cintos, e junto da fome, cresceu a revolta. Em 2019, durante os protestos que incendiaram esse mesmo país, um jovem chileno diria “nos tiraram tanto que tiraram até nosso medo”. Para lidar com a revolta, o sistema capitalista a nível mundial fortaleceu o único sistema público que para ele poderia ser útil: as forças repressivas. Atuando em sua perfeita missão, as forças repressivas marcaram a vida da maioria das e dos jovens negros, protagonizando repressões inesquecíveis contra qualquer tipo de manifestação, inclusive as culturais.

Foguetes, drones, atendentes virtuais, aplicativos para tudo, celulares que operam praticamente sozinhos, carros elétricos, movidos a água. Modelos encantadoras, novelas inclusivas, terceiromundistas vencedores de Miss Universo e Oscar. O Covid-19 chega e escancara a irracionalidade do sistema que tentava se comprovar inovador. De forma avassaladora e instantânea, o vírus derrubou as cortinas e mostrou que esse espetáculo de marionetes é movido por trabalhadores e trabalhadoras esfomeados, desprotegidos. Movem o mundo à própria sorte e a troco de nada.

Alguns intelectuais – os chamados pós modernos – foram capazes de dizer que a classe trabalhadora seria substituída por máquinas, ou mesmo que ela já sequer existia, que estaríamos num mundo já “pós capitalista”, do “pós trabalho”. Bastaram alguns dias de vírus para qualquer governo assumir a essencialidade de nossa classe, inclusive ameaçando nossa sobrevivência para a manutenção da produção e da circulação de mercadorias. Mas não foi apenas a categoria trabalho ou classe trabalhadora que foi alvo de relativizações na academia do século XX e XXI. O Estado, “balcão de negócios da burguesia”, foi dissolvido a quase nada para Foucault, Deleuze, entre outros. Nas palavras de Foucault sobre a perspectiva da qual parte:

(…) em vez de orientar a pesquisa sobre o poder para o âmbito do edifício jurídico da soberania, para o âmbito dos aparelhos de Estado (…) creio que se deve orientar a análise do poder para o âmbito da dominação (e não da soberania) (FOUCAULT, Em defesa da sociedade, p.40)

Portanto, assumiram a tese de que a sociedade se movimenta não a partir de um poder centralizado, mas a partir de um poder mitigado, distribuído por todos os indivíduos de uma sociedade – o biopoder – tratando o Estado como um mero dispositivo dessas forças. Como ele mesmo diz, no caso da biopolítica, diferente da política soberana:

Não se trata, por conseguinte, em absoluto, de considerar o indivíduo no nível do detalhe, mas, pelo contrário, mediante mecanismos globais, de agir de tal maneira que se obtenham estados globais de equilíbrio, de regularidade; em resumo, de levar em conta a vida, os processos biológicos do homem-espécie e de assegurar sobre eles não uma disciplina, mas uma regulamentação.
(FOUCAULT, M.Idem. p. 294)

Aqui encontramos o primeiro problema desta perspectiva. O papel de classe do Estado se dilui e junto dessa ausência, some também a capacidade transgressora e revolucionária da enorme classe de oprimidos proletários, negras, negros, mulheres, nacionalidades oprimidas. A resistência passa a ter como terreno essencial as relações pulverizadas de poder. A “pulverização” do poder aparentemente torna o Estado apenas um dispositivo de um poder maior liberal e neoliberal que governa as subjetividades, que passam a ser regulamentadas.

A tese da pulverização do poder por várias instituições e dividido pelo Estado (esse sem conteúdo de classe claro e determinado) localiza Foucault e seus seguidores como uma gama de teóricos anti-estrategicos. Como dizem Maiello e Albamonte:
“Foucault constrói toda sua teoria em um diálogo de negação ao marxismo. Se o marxismo é a análise da luta de classes e a utilização da luta de classes para vencer, a de Foucault é uma teoria de como o “Poder” vai se aperfeiçoando e se fazendo cada vez mais eficaz para poder reprimir toda resistência. E, em última instância, o que defende como estratégia, já que não há poderes concentrados no Estado, mas sim micro-poderes, são pequenas resistências parciais. Nesse sentido, para Foucault não há estratégia, porque o poder não se concentra em nenhum aparato central – como o Estado –, e apenas há possibilidade de resistências parciais, não podendo haver uma estratégia que é a arte justamente de derrotar o Estado e o poder hegemônico de uma classe dominante sobre outra para manter seu domínio. São pensadores anti-estratégicos.
(ALBAMONTE, E, 2017, sp)

Segundo esse deslocamento proposto na análise de Foucault, o Estado haveria se dissolvido em políticas institucionais de regulação da vida, dos corpos, daí a “biopolítica”, com os métodos estatísticos, sanitários, manicomiais, regulando como se deve viver, e assim determinando poder sobre a vida dos indivíduos. Dirão Maiello e Albamonte:

A consequência mais importante dessas formulações é que, como sinaliza Perry Anderson: “Uma vez hipostasiado como novo primeiro princípio […] o poder perde qualquer determinação histórica: já não há detentores específicos de poder, nem metas específicas para as quais sirva seu exercício”.
(Maiello, Matias e Albamonte, Emílio. Estratégia Socialista y Arte Militar. (Buenos Aires, IPS, p. 21)

A ausência completa de uma estratégia – tanto na análise dos fenômenos como na saída política – se mostra como uma das maiores negações de Foucault ao marxismo. Marxismo este não entendido apenas em suas dimensões teóricas, como a crítica da economia política, ou uma visão de mundo embasada na dialética, muito embora essas sejam duas de suas partes constituintes fundamentais. Mas como a busca pela formulação de uma estratégia revolucionária que partindo das experiências históricas da classe trabalhadora confrontadas pelos desafios atuais, permita que os trabalhadores vençam os capitalistas e seu Estado, tomando o poder, e abrindo caminho para o fim do capitalismo.

Achille Mbembe em sua crítica sobre a necropolítica, não avança do caráter “anti-estratégico” posto pelo debate da biopolítica. Sua crítica a Foucault localiza- se em outro terreno, isto é na noção de que o poder não é exercido como controle da vida e na regulamentação dos corpos, como Foucault propõe com a biopolítica, mas no gerenciamento da morte. Ele aponta que o Estado mata os negros exercendo sua “soberania” por esta via, diferenciando-se em alguma medida da tese da biopolítica de Foucault em que o poder do Estado soberano implementado sob a máxima de escolher “quem deve morrer”, foi substituído por um poder microfísico que tem como máxima manter alguns vivos, criar “equilíbrio” e “estabilidade” (palavras que o próprio Foucault utiliza, destacadas acima). A biopolítica, segundo Mbembe, é incapaz de refletir profundamente as realidades em que parcelas específicas da população são sistematicamente mortas, sob o manto do racismo e da xenofobia em todo o mundo:

Demonstrei que a noção de biopoder é insuficiente para explicar as formas contemporâneas de subjugação da vida ao poder da morte. Além disso, propus a noção de necropolítica e necropoder para explicar as várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, armas de fogo são implantadas no interesse da destruição máxima de pessoas e da criação de “mundos de morte”, formas novas e únicas da existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o status de “mortos-vivos”.(MBEMBE, Necropolítica, p. 146)

Assim, a atratividade da tese da necropolítica de Mbembe reside em que se torna cada vez mais visível que existe um gerenciamento da morte na atualidade, através da sistemática repressão e assassinato da população pobre, das negras, negros, imigrantes, indígenas, quilombolas. A questão é em nome de quem e sob quais interesses isso ocorre. E essa crítica, presente no livro com o mesmo título, Necropolítica que ganha força em meio à pandemia, em que milhares estão morrendo, desvenda de fato qual seria o fundamento e o objetivo de tais mortes? O que elas apontam? Estes problemas fundamentais Mbembe não logra responder com a mesma profundidade com a qual observa os efeitos da “necropolítica”. Vejamos como se poderia examinar essa questão.

Raízes teóricas da necropolítica sem determinação de classe

Para apontar elementos que respondam às perguntas acima examinemos brevemente o diálogo teórico estabelecido por Mbembe com a herança foucaultiana no que tange à relação entre política, guerra e paz. Um dos problemas do arcabouço teórico de Foucault é a inversão que propõe da máxima de Clausewitz – de que a guerra é a política por outros meios – postulando que a política é a guerra por outros meios . Com essa definição, Foucault e Agamben – que vai mais além e define que atualmente a exceção é a regra do Estado – apagam as fronteiras entre guerra e paz, entre saúde e doença, entre democracia, bonapartismo e fascismo. Aí reside novamente mais um fator “anti-estratégico” destas vertentes teóricas:

A “paz civil” passa a ser uma simples sequela da guerra, e o exercício do poder se identifica com uma guerra contínua (…) a colocação de Foucault oculta as assimetrias e desigualdades sociais, sejam elas frente à doença ou frente à própria vigilância policial e, acima de tudo, a lógica policial unilateral deixa de lado todo antagonismo de classe. Fica apagada toda distinção das formas de dominação e regimes políticos sob a categoria de um totalitarismo todo-poderoso.

Dessa maneira, ao ocultar os fundamentos da repressão que embasam uma sociedade de classe, cujos interesses antagônicos são a base elementar dos conflitos sociais e das relações de poder, anula-se a possibilidade da ação emancipatória do sujeito social capaz potencialmente de acabar com a vigilância policial, a saber, a classe trabalhadora.

Apesar de não negar na mesma proporção que Foucault o papel do Estado, Mbembe mantém em sua argumentação essa lacuna estratégica, na medida em que se propõe a completar a noção foucaultiana aprofundando a anulação da diferença entre guerra e paz. Diz ele: “relaciono a noção de biopoder de Foucault a dois outros conceitos: o estado de exceção e o estado de sítio”. Este último conceito relaciona a Carl Schimitt, mesmo teórico em que se referencia Giorgio Agameben para defender a existência permanente de um estado de exceção em nossos tempos. Para Agamben e Mbembe os regimes democráticos são na verdade permanentes estados de exceção, nos quais regem a guerra civil e a legalização da arbitrariedade.

Fato é que, frente ao coronavírus se fortalece a aparência necrofílica do capitalismo, e os seus mecanismos repressivos, e que mesmo não sendo uma guerra, a situação posta pela pandemia difere da normalidade anterior. Se até alguns meses atrás os Estados capitalistas reprimiram e matavam, sobretudo os negros e pobres, em escala suficiente para manter o medo e o silêncio nas massas negras mais precarizadas – hoje com a pandemia administra a quantidade de mortes necessárias para impedir a perda de seus lucros. Não são apenas os acionistas que fazem campanhas de como aproveitar a crise para lucrar.

Mas tal como em Foucault é essa dimensão que está ausente em Mbembe, a da motivação capitalista para o gerenciamento das mortes em meio à pandemia. Em outras palavras, a de que o grande capital está frente a uma crise de proporções históricas, e está deixando queimar a mercadoria força de trabalho. Os capitalistas assim agem ao negarem-se a tomar as medidas necessárias para proteger a vida das massas trabalhadoras. Negam-se a produzir e fornecer testes massivos, contratar trabalhadores em saúde, distribuir massivamente de alimentos. Não operam a reconversão da indústria para produzir respiradores, embora quando se tratou das guerras essa reconversão se deu muito rapidamente para produzir armas, como às vésperas da II Guerra Mundial. Nenhuma destas medidas são adotadas porque “fazer morrer” pode ser mais “produtivo”. A força de trabalho foi transformada em mercadoria, e como sabe-se quando há excesso de uma mercadoria seu valor é depreciado. Muito embora o exército industrial de reserva seja uma constante no capitalismo, a elevação da precarização do trabalho, e mesmo a “queima” de parcela dessa força de trabalho considerada sobrante, podem ser altamente funcionais à recomposição da extração de mais-valia. Portanto, a raiz da morte de determinadas parcelas da população está determinada pelo seu caráter de classe. Se isso é a tônica comum em “tempos de paz”, em que as favelas são constantemente alvejadas pelas balas do Estado, em tempos de pandemia esse caráter distintivo de quem vive e quem morre legado pelas classes sociais não poderia deixar de ser a tônica dominante. Ao contrário do discurso que se propagou de que o coronavírus não escolhe classe social e seria alheio ao racismo, é justamente em meio aos pobres, imigrantes e negros que ele mais tem ceifado vidas.

Salvar vidas e não os lucros

Frente a essa realidade, é fundamental apresentar saídas que não levem a calcular o preço das vidas trabalhadoras, mas sim o preço da dívida capitalista com as grandes massas. Uma saída possível, por exemplo, é a partir da testagem massiva, proporcionar que trabalhadoras e trabalhadores possam voltar aos seus locais de trabalho e produzir o necessário para enfrentar a crise sanitária, a chamada reconversão da produção que os capitalistas só fazem quando decidem entrar em guerra contra seus inimigos, enviando inclusive nossos jovens para a morte. Essa medida, frente à crise sanitária, passaria por uma forte organização da nossa classe, solidária aos grandes dramas das camadas mais pobres e exploradas, e decidida a assumir o controle da produção, da circulação e do ritmo do trabalho. Garantir a sobrevivência dos desempregados e subempregados e dos trabalhadores de serviços não essenciais é fundamental, e são mais medidas das quais os capitalistas e seus políticos são incapazes de fazer coro. Preferem gastar migalhas em valas comuns a construir centenas de hospitais, leitos, respiradores, proibir as demissões e pagar salários a todos os que não tem emprego ou vivem na instabilidade dos apps – todos eles majoritariamente negros no Brasil. Sua incapacidade, em uma semi colônia como a brasileira, está ligada diretamente ao seu espírito lambe botas do imperialismo, que mantém todos os políticos, inclusive os do PT, reféns do pagamento da dívida pública e silenciosos sobre a taxação das grandes fortunas. Negar a reconversão da indústria, o não pagamento da dívida e a taxação das grandes fortunas são, juntas, a comprovação de uma lógica necropolítica que atua sobre os governos e grupos capitalistas.

Eles fazem as contas e percebem que é melhor, afinal, que morramos. Querem gastar o mínimo, inclusive porque as mortes, não doem para eles como para nós. Envelheceram com o melhor, escapam para suas mansões e se morrem, terão nomes em suas lápides. A morte e a doença têm classe, e conforme se aprofunda a crise, essa diferença é mais aguda e as medidas são cada vez mais necrofílicas. Assim foi durante toda a trajetória do capitalismo em todas as suas crises mais agudas. Entender essa diferença é crucial para olhar a realidade da forma como é, por um lado, e utilizar as armas apropriadas para cada tempo, que devem ser empunhadas por um sujeito capaz de reverter a presente situação. E tal sujeito é ninguém menos que a classe trabalhadora organizada.

Referências:

Albamonte, E. “Nós buscamos construir um partido de tribunos do povo”. 2017. Disponível em https://www.esquerdadiario.com.br/Emilio-Albamonte-Nos-buscamos-construir-um-partido-de-tribunos-do-povo

Foucault, Michel. Em Defesa da Sociedade (São Paulo, Martins Fontes, pp. 22-24).

Maiello, Matias e Albamonte, Emílio. Estratégia Socialista y Arte Militar. (Buenos Aires, IPS, pp. 20-21)

Mbembe, A. Necropolítica. 2016. Disponível em https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/8993

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