Latifúndios invadem mais de 480 mil hectares de terras indígenas no Mato Grosso

Assembleia Legislativa discute projeto “gêmeo” de normativa da Funai que autoriza registro de imóveis dentro de reservas; contando apenas sobreposições maiores que 400 hectares, área total é maior que o triplo do município de São Paulo

Por Caio de Freitas Paes, em De Olho nos Ruralistas

A recente ofensiva sobre terras indígenas no país começa a ganhar forma e nome. Tudo começou quando a Fundação Nacional do Índio (Funai) mudou suas diretrizes quanto ao reconhecimento de limites das reservas em demarcação, em 22 de abril. Em menos de um mês, como mostrou a Agência Pública, pouco mais de setenta fazendas que invadem territórios indígenas foram certificadas pelo governo. Parte considerável delas se encontra no Mato Grosso.

De Olho nos Ruralistas teve acesso a dados que revelam quem são os donos de grandes propriedades sobrepostas às Terras Indígenas (TIs), registradas no Cadastro Ambiental Rural (CAR) mato-grossense. São fazendas que invadem 400 hectares ou mais das áreas em demarcação. Somadas, as sobreposições superam 486 mil hectares, mais que o triplo do município de São Paulo.

A maior parte das invasões ocorre ao norte do planalto dos Parecis, onde as bacias hidrográficas Amazônica, do Tocantins e Platina se encontram. Ali estão municípios como Campos de Júlio, Campo Novo dos Parecis, Juara, Juína e Sapezal, um polo da expansão de algodão, milho, soja e pecuária no estado. O destaque negativo é Brasnorte, onde ficam as reservas Manoki, dos Irantxe, e Menkü, dos Myky. Juntas, somam 249 mil hectares invadidos por imóveis registrados no CAR estadual. É mais que o dobro do município do Rio de Janeiro.

“O caso dos Myky é inaceitável e assustador, porque o processo de ocupação da terra passou por cima deles”, diz a coordenadora do Programa de Direitos Indígenas da Operação Amazônia Nativa (Opan), Andreia Fanzeres. “Tratoraram aldeias inteiras, literalmente”. Hoje, os Myky lutam pela demarcação de mais de 146 mil hectares em Brasnorte. Os Irantxe reivindicam outros 206 mil hectares no município.

Outro território vulnerável a invasões é a Terra Indígena Piripkura. Situada entre Colniza e Rondolândia, no extremo noroeste, é o lar de povos isolados nesta borda da Amazônia. A Fazenda Mutum, que invade a reserva, é controlada pela família Penco, com diversos outros negócios agropecuários no Mato Grosso. O latifúndio com mais de 24 mil hectares avança sobre a reserva em um contexto delicado.

No fim de abril, a coordenação de contato a povos isolados em Brasília trocou o responsável nessa reserva – foi a primeira mudança desde a posse de Ricardo Lopes Dias na superintendência. Nesta quinta-feira (21), sua nomeação foi suspensa pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), conforme decisão do desembargador federal Souza Prudente, a pedido do Ministério Público Federal. Segundo o jornal O Globo, desembargador identificou “conflito de interesse”.

Dias é ligado ao grupo evangélico Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), dedicado à conversão de indígenas à fé cristã na Amazônia, e nomeou um servidor alvo de investigações internas na Funai. Saiba mais sobre esses missionários aqui: “Mortes, escravidão e abuso sexual: o legado das missões comandadas pelo pai de antropólogo preso pelo Ibama“.

INVESTIDORES MILIONÁRIOS AMEAÇAM RESERVAS

A nova diretriz da Funai é uma verdadeira guinada na luta indígena por terras. A instrução normativa nº 9 muda o reconhecimento dos territórios nos sistemas do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Além das reservas e terras dominiais de comunidades indígenas, serão reconhecidas no Sistema de Gestão Fundiária apenas as terras indígenas homologadas por decreto presidencial.

A canetada de Marcelo Xavier, presidente da Funai, foi bancada por Nabhan Garcia, ex-presidente da União Democrática Ruralista (UDR) e secretário especial de Assuntos Fundiários do governo Bolsonaro. Entenda mais sobre Nabhan e suas conexões com a região: “Sogro de Nabhan Garcia comprou 67 mil hectares de terras indígenas no Mato Grosso nos anos 80“.

Assim que a diretriz foi divulgada, defensores do agronegócio no Mato Grosso comemoraram. Um deles foi o deputado estadual Nelson Barbudo (PSL), que dedicou a “vitória” ao “pessoal de Brasnorte, lá da Aprub”. Ele se referia à Associação dos Produtores Rurais Unidos de Brasnorte. Os latifundiários dali realmente saíram ganhando: das dez maiores sobreposições no estado, quatro ficam no município.

A maior invasão em reservas delimitadas, identificadas e em estudo no Mato Grosso acontece na Fazenda Siqueira. Sozinha, ela invade 39,7 mil hectares da TI Menku, dos Myky, usados hoje para o plantio de algodão, milho e soja em larga escala. A porção sobreposta representa menos de 40% da área total do latifúndio, estimado em 95 mil hectares.

A fazenda é controlada pela Cantagalo General Grains e pela CGG Trading, o que as liga aos japoneses da Sojitz Corp. Em 2017, a CGG possuía dívidas milionárias — mais de R$ 170 milhões — junto ao Banco do Brasil, Bradesco, Santander e Rabobank, entre outros.

DIRETRIZ DA FUNAI BENEFICIA DESMATADORES

Grandes desmatadores também saem ganhando com a nova diretriz da Funai. É o caso da Fazenda Papagaio, com 16,6 mil hectares inteiramente nas terras dos Myky. Lá, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Renováveis (Ibama) flagrou desmatamento ilegal em 2017. A Agropecuária Rio Papagaio Ltda, responsável pela fazenda, foi multada em R$ 8,7 milhões pelo crime ambiental. Desde 2000, o Ibama já aplicou quase R$ 107 milhões em punições no município, como mostramos no Mapa das Multas por Desmatamento.

A Agropecuária Rio Papagaio é das antagonistas aos Myky em sua luta pela demarcação. Controlada pela família Bigolin, juntou-se aos fazendeiros da Aprub e da Tequendama Agropecuária Ltda para impedir o reconhecimento do território. Segundo o Ministério Público Federal (MPF) no Mato Grosso, a primeira demarcação foi feita “sem critérios técnicos”, a mando de Mauro Tenuta — o primeiro fazendeiro a expulsá-los de suas terras. Em 2018, a 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) determinou por unanimidade a retomada da demarcação.

A Agropecuária Rio Papagaio e a Tequendama estão ligadas a um conjunto de investidores rurais, o Grupo Apolinário. Ele esteve envolvido em negociações de dívidas milionárias com Mato Grosso. O veículo mato grossense FolhaMax informou que, em novembro de 2019, os valores estavam na casa dos R$ 99 milhões. Vitor Apolinário Filho já foi multado em R$ 1,2 milhão por desmatamento em Brasnorte.

TERRA INDÍGENA TEM TRÁFICO ILEGAL DE MADEIRAS

Mais ao centro-norte do estado há outra reserva seriamente ameaçada pelas sobreposições. Trata-se da Terra Indígena Batelão, dos Kawaiwete, entre os municípios de Juara, Nova Canaã do Norte e Tabaporã. Mais conhecidos como Kayabi, os indígenas lutam pela demarcação de 117 mil hectares. Desde 2007, sofrem com idas e vindas na Justiça.

Em 2016, Jemy Kaiabi, liderança indígena dos Kawaiwete, relatou dificuldades na vida no Parque Nacional do Xingu, onde foram confinados após sua expulsão, no início da ditadura. “Encontramos dificuldades em relação à nossa cultura, aos costumes”, disse ao Instituto Socioambiental (ISA). “Nosso conhecimento está desaparecendo”.

A Fazenda Terra Santa, da gigante Terra Santa Agro, invade a Terra Indígena Batelão em mais de 18,8 mil hectares, segundo dados do CAR mato grossense. A empresa cultiva algodão, milho e soja no local.

Pesquisa da Opan e outras ONGs mostra incidência de fazendas em TIs. (Imagem: Reprodução)

O diretor do grupo, José Humberto Prada Teodoro Júnior, disse no fim de abril à agência Reuters que a empresa planejava vender parte de suas terras para saldar dívidas. Não devem pouco: são mais de R$ 1,1 bilhão, segundo dados consolidados em dezembro de 2019. Uma fazenda regularizada vale mais que uma área em conflito com povos indígenas.

O caminho para a soja nesta parte do Mato Grosso foi liberado depois de muito desmatamento. A região foi devastada, por anos, por traficantes ilegais de madeira. Em 2010, uma operação da Polícia Federal desbaratou um esquema que causou um prejuízo de R$ 1 bilhão com o “esquentamento” de madeira nobre retirada da região, inclusive da área da TI Batelão.

O esquema envolvia donos de fazendas, engenheiros florestais e servidores públicos estaduais. Eles falsificavam licenciamentos e planos de manejo florestal para áreas desmatadas. Segundo o Estadão, o patrimônio da quadrilha superava R$ 1,7 bilhão, respingando até em membros do alto escalão da política mato grossense à época.

ASSEMBLEIA ESTÁ PARA APROVAR LEI PREDADORA

Não bastasse a nova diretriz federal, o governo mato grossense se somou à ofensiva contra os territórios indígenas. O governador Mauro Mendes (DEM) enviou um projeto, “gêmeo” à normativa nº 9, para a Assembleia Legislativa no dia 16 de abril, antes da publicação da normativa da Funai no Diário Oficial da União, no dia 22, quase uma semana depois. Em Cuiabá, são favas contadas sua votação e aprovação, mesmo após críticas do Ministério Público Federal. O projeto de lei complementar 17/2020 está na pauta dos deputados e pode passar a qualquer momento.

“Engana-se quem acha que isso vai ajudar indígenas ou os ‘produtores’, como disseram aqui no estado”, diz o presidente da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt), Crisanto Rudzö Tseremey’wá, do povo Xavante. “Quem sai ganhando são donos de grandes lotes. Eles estão visando a exportação, para alimentar gado dos europeus com a soja daqui”.

Ao De Olho nos Ruralistas, o Xavante critica a “falta de visão” dos políticos que apoiam a medida:

— Quando mantemos nossas florestas em pé, produzimos carbono limpo. Todos nós, seres humanos, precisamos disso para respirar. Quando degradam, acabam com as matas, produz o CO2 nocivo à respiração de todos nós. O risco não é somente para povos indígenas, mas para as futuras gerações.

Assessora na federação, Eliane Xunakalo critica não só o projeto estadual, como também o momento no qual foi proposto. “Os deputados tinham de estar preocupados com a pandemia, que se aproxima de nossos parentes aqui”, diz a indígena do povo Kurâ Bakairi. “Falta assistência, ninguém sentou com a gente para pensar em soluções, e ainda temos de resistir a essas ameaças”.

O Mato Grosso registrou o primeiro caso de coronavírus entre indígenas, informa a Amazônia Real.

OPAN APONTA ‘PANDEMIA JURÍDICA’

Organizações que monitoram a proteção ambiental e o apoio aos povos da floresta no Mato Grosso concordam com a federação dos povos indígenas. Junto à Fepoimt, as ONGs Instituto Centro de Vida (ICV), International Rivers e Operação Amazônia Nativa (Opan) produziram uma análise dos impactos caso o projeto estadual seja aprovado.

Andreia Fanzeres afirma que as iniciativas servem apenas para incendiar o campo, “retirando dos proprietários qualquer segurança jurídica, uma vez que qualquer validação de cadastros sobre terras indígenas é uma violação à Constituição”. “Essas medidas são um tiro no pé”, diz a coordenadora do Programa de Direitos Indígenas da Opan. “Não dá pra esperar nada além de conflitos e incertezas quanto ao território. É uma pandemia jurídica”.

O MPF no Mato Grosso levantou o tom quanto ao debate. No dia 14 de maio, entrou com um processo contra a União e o governo do estado, pedindo a anulação tanto da normativa nº 9 quanto do projeto em discussão na Assembleia. O procurador da República Ricardo Pael, um dos responsáveis pela ação, afirma que há “fortes indícios” de ação coordenada entre as medidas, ambas na contramão dos direitos dos povos indígenas.

“As iniciativas geram inúmeras ilegalidades e lesões aos índios, à gestão fundiária e a terceiros de boa-fé. “A quantidade enorme de áreas que serão ocultadas dos bancos de dados, permitindo certificação ambiental com todos os efeitos colaterais — como desmate, especulação imobiliária, garimpo — nos preocupam”.

A reportagem contatou o gabinete do governador Mauro Mendes e o presidente da Assembleia, deputado Eduardo Botelho (DEM), para ouvi-los sobre o projeto de lei. Até o fechamento do texto, não houve resposta.

Foto principal (Giovanny Vera/Opan): imagem de drone da Terra Indígena Irantxe, contígua à TI Manoki

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