Por quem os sinos dobram

Foi-se o tempo de autocrítica das esquerdas. Hora é de ação e Frente Ampla contra Bolsonaro. Com o poder das ruas diminuído, é preciso reinventar lógica de combate — com criatividade e coragem, como sugeriam Raul Seixas e Hemingway

por Italo Jardim*, em Outras Palavras

Não há absolutamente nada de novo no título desse texto. Ele é uma cópia do título da música de Raul Seixas que nomeia também o disco lançado em 1979, chamado Por quem os sinos dobram. A canção faz jus de ser revisitada agora como parte do desafio de construir uma outra forma de convivência e de luta em meio à crise sanitária, econômica e política que vivemos. É preciso unificar as forças compromissadas com a solidariedade social e seu caráter civilizatório mais amplo em defesa da vida humana. Para isso, compreensão e enfrentamento se fazem necessários.

Nunca se vence uma guerra lutando sozinho
Você sabe que a gente precisa entrar em contato
Com toda essa força contida e que vive guardada
O eco de suas palavras não repercutem em nada”. (Raul Seixas)

No ano de 1940, Ernest Hemingway publicou o romance For whom the bell tolls (em português, “Por quem os sinos dobram”), sobre a guerra civil espanhola que influenciou bastante a literatura mundial. Esse livro foi considerado uma das suas melhores obras. Ele narra a história de Robert Jordan, um jovem norte-americano das Brigadas Internacionais, que se tornou conhecedor do uso de explosivos. Importante registrar que o autor da obra participou como voluntário ao lado das forças republicanas durante a guerra civil espanhola.

Porém, a origem da expressão que nomeia a música e o romance é bem mais antiga. Em 1624, um reverendo e poeta inglês chamado John Donne escreveu, na cama em que esteve por dias a um passo da morte, um livro chamado Devotions upon emergent occasions. Era uma coleção de 23 pequenas “devoções”, uma para cada dia de internação, sobre seu processo de adoecimento, cura e outras questões humanas.

Na Devoção XVII, John Donne traz o seguinte trecho, originalmente:

No man is na Iland, intire of it self; everyman is a peece of the Continent, a part of the maine; if a Clod be washed away by the Sea, Europe is the lesse, as well as if a Promontorie were, as well as if a Mannorofthy friends orofthineownewere; anymans death diminishes me, because I aminvolved in Mankinde; And therefore never send to know for whom the bell tolls; It tolls for thee.”

Em português, tradução livre:

Nenhum homem é uma ilha, todo em si; todo homem é uma parte do continente, uma parte da terra; se um torrão de terra é levado pelo mar, a Europa é diminuída, tanto se fosse um promontório, como também se fosse uma casa de teus amigos ou a tua própria; a morte de todo homem me diminui, porque sou parte na humanidade; e então nunca pergunte por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.”

Então surgiu a frase consagrada. Do quarto de Donne, ele conseguia ouvir os sinos da igreja tocando. Isso significava que alguém que vivia ali perto havia morrido, e as pessoas se perguntavam: por quem os sinos dobram? Em outras palavras, quem faleceu? O reverendo se perguntava se as pessoas não achavam que ele próprio é quem tivesse morrido.

Abaixo a ciência e viva a morte”

No romance de Ernest Hemingway há muito aprendizado na luta contra o fascismo e relembrar esse período é precioso. Os socialistas haviam conquistado o governo da República espanhola. Contra isso, o general espanhol Francisco Franco estabelecido no Marrocos sublevou-se contra essa República popular e com suas tropas invadiu o espaço continental da Espanha e, contando com o apoio da igreja católica, dos banqueiros financistas e da burguesia, foi ganhando espaço. Foram três anos de guerra civil, até que ele ocupou o poder na Espanha e por lá ficou por quase 40 anos. Um de seus generais, num discurso em comício, bradou a seguinte frase: “Abaixo a inteligência e viva a morte!”.

Todo fascista, aos nossos olhos, é pervertido, palavra que tem na ideia de má versão da vida o seu sentido mais simples. Nesse sentido, podemos afirmar que os fascistas, neofascistas ou protofascistas são pervertidos e tem relativo prazer por situações mórbidas. O prazer pelo macabro pode ser simbolizado por passeatas em que carregam caixões celebrando a morte, como aconteceu na Avenida Paulista e na famosa declaração de que é preciso matar 30 mil pessoas para que o “Brasil dê certo”.

Os facínoras Mussolini, Hitler e Francisco Franco tinham ideologia, esta criatura que agora nos governa, parece mesmo não ter nenhuma e lhe falta senso político. Mas ele é por ser? Nos perguntamos isso, não só porque fugiu de todos os debates durante a eleição presidencial e disse que não entendia nada de economia. É a mediocridade em pessoa, manda jornalista calar a boca com a naturalidade de um ditador. Nos discursos, nas ações e nas inações demonstra sua perversão aliada ao mórbido, ao prazer pela tortura pela dor e pela morte.

O discurso anticiência que tanto tem produzido efeitos diante da ignorância, no meio de uma pandemia potencializa ainda mais seus resultados, sobretudo quando não há precedentes na letalidade da doença que enfrentamos. Não há preocupação com a vida. A prioridade dos perversos é confrontar e aniquilar o pensamento diferente. Toda e qualquer oposição precisa ser eliminada. Não pode existir pensamento crítico e ao sinal de desconforto que isso cause a sentença é a morte.

No último dia 01 de maio assistimos atônitos a hostilidade atroz direcionada aos profissionais da saúde que, de forma heroica salvam vidas diariamente, e se manifestavam por melhores condições de trabalho para atender à população. Dois dias depois, no dia internacional da liberdade de Imprensa, ocorreram agressões aos jornalistas num ato que pedia o AI-5.

Não são poucos os sintomas de que o ambiente político é de incertezas e há de fato a possibilidade do fechamento do regime. Incitando o caos e a desordem em meio a uma crise sanitária e econômica, um grupo minoritário com apoio do presidente vai paulatinamente impondo sua agenda sobre a maioria. Se não houver resposta à altura para conter o neofascismo, amanhã a violência será contra qualquer um que se opõe a tosca e perigosa visão de mundo deles.

Bolsonaro e a Pandemia

Nessas próximas semanas teremos o pico da pandemia e o colapso de todo o sistema de saúde. Um episódio triste de nossa história que será a marca de toda uma geração. Está nítido que não temos condições de enfrentar essas duas crises, Bolsonaro e o coronavírus, ao mesmo tempo.

O médico e matemático Eduardo Massad, que acompanha diariamente o número de casos e projeta o ritmo de crescimento da pandemia no Brasil, diz que tivemos uma diminuição significativa dos casos de covid-19 com o distanciamento social – segundo ele, sem nenhum distanciamento a projeção inicial era de 300 mil mortos. Com as medidas tomadas até agora e sua manutenção, a projeção pode chegar entre 30 e 100 mil, um número 10 vezes menor. Isso significa que o nosso comportamento, as políticas públicas e o isolamento social podem salvar cerca de 70 mil vidas. Mas a realidade pode também alterar muito rapidamente a projeção, caso não sigamos as recomendações necessárias, disparando o número de mortos no país.

As evidências científicas nos levam também a conclusões políticas. A pandemia no Brasil tem um aliado que pode potencializar a crise sanitária e elevar o número de mortos a proporções recordes, se comparada aos países em situações semelhantes. O impeachment de Bolsonaro é a saída coerente para salvar o maior número de vidas e esse caminho é determinante para proteger não só dezenas de milhares de brasileiros, mas outros países que fazem fronteira com o nosso. Nos últimos 17 meses de governo não existiu momento mais importante objetivamente para o Impeachment do que este.

O Reverendo Donne em sua prece de XVII se baseava na empatia e na solidariedade social. Ele sabia que estava vivo, porém acamado. A ele, diferente de nós, restava apenas perguntar se não pensavam que era ele o falecido. Nossa tarefa, embora isolados por uma responsabilidade coletiva, é cumprir o dever moral e político de enfrentar e derrubar o aliado Nº 1 do coronavírus no mundo. Os sinos não param de badalar.

Dois passos em frente, um passo atrás

Embora despreparado, Bolsonaro tem uma tática e está apostando tudo nela. Não à toa nos surpreende, assim como fez nas eleições. Ao pautar debates polêmicos na sociedade sobre temas controversos, faz com que sua claque escolha entre o seu lado e o lado de seus “inimigos”. Resgata e naturaliza posições radicalmente autoritárias para um amplo setor indignado com a corrupção e torna efetiva a disseminação de ideias antidemocráticas, que por sua ilusória facilidade de implementação sintetizam a frase clichê “mudar tudo isso daí”, como o próprio Bolsonaro diz. Quando confrontado pelas instituições, ele recua um passo e no dia seguinte volta a insuflar seus seguidores, alimentando a ideia de perseguição que alega sofrer. Esse modus operandi transforma em lema o ataque e a aniquilação do outro, aquele que em tese é culpado de todos os problemas da nação e não deixa o Brasil avançar.

Até onde é bravata? A naturalização dos debates sobre o AI-5, o fechamento do Congresso e do STF não são apenas magia para encantar fanáticos, mas também a canalização da indignação para um projeto de eliminação do outro, de destruição das bases do estabilishment. Bolsonaro não consegue lidar com as limitações da democracia, pois seus anseios são autoritários e seu apoio popular, na essência, tem um projeto fascista que, para se afirmar, necessita derrubar as instituições. Ou seja, compreende a democracia como um obstáculo a ser superado.

Está em curso no Brasil um golpe conservador que, em forma e conteúdo, não para de avançar! Os domingos ainda não são sangrentos, mas a verve odiosa é visível e se destaca por ações a cada dia mais perigosas. Com a mesma velocidade dos discursos em tom de ameaça, há também uma escalada da violência ressignificando o que pode ou não ser feito, banalizando comportamentos típicos de regimes de exceção. Na noite do dia 4 de Maio, Bolsonaro recebeu o Major Curió, um militar denunciado pelos crimes de sequestro, tortura, assassinato e ocultação de cadáver durante a ditadura militar. Não há mais nenhuma ilusão de que o bolsonarismo se limitará aos marcos democráticos.

A tarefa do campo democrático

Os textos e contribuições anteriores a pandemia guardavam quase que um consenso sobre a abertura dos porões da ditadura e do eclodir dos ovos das serpentes do autoritarismo. Entretanto, a História em seu tempo presente é infinitamente mais rica, sobretudo, na capacidade de nos surpreender, seja através de seu ineditismo, como também de nos cobrar o aprendizado com as experiências do passado, e nesse caso específico, nos desafia a reinventar a lógica do combate. Curiosamente, a mesma pandemia que colocou Bolsonaro nas cordas não permite as multidões na rua para sua derrubada. Por mais difícil que seja acreditar num impedimento do presidente sem o poder tradicional das ruas, o desafio político e criativo está posto e não temos o direito de nos furtar dessa tarefa nem durante nem após o isolamento social.

No último dia 20, em Tel Aviv, milhares de israelenses se manifestaram contra o primeiro-ministro Benjamin Netanyahuenquanto enfrentavam restrições rígidas por causa do coronavírus. Usando máscaras, agitando bandeiras negras e mantendo-se a dois metros de distância uns dos outros conseguiram visibilidade internacional nas ruas. A manifestação dos trabalhadores da saúde, em Brasília ainda que hostilizada, é também exemplo de outras formas de luta possíveis. Não poderemos apenas ficar em casa perguntando por quem os sinos dobram. Dos panelaços até a abertura das ruas, ainda que enlutados com a trágica pandemia que nos acomete, é preciso acumular e externar a potência capaz de derrubar Bolsonaro.

A esquerda brasileira tem grande responsabilidade e o PSOL é parte significativa disso. Dizer Fora Bolsonaro não basta! A palavra de ordem é o impeachment e a tarefa da construção de uma frente ampla contra o fascismo é urgente. Não haverá um grande movimento sem um verdadeiro afinco e comprometimento para que, de forma processual, as respostas de luta contra os episódios de cunho autoritário escalem uma resistência capaz de cumprir o papel de expurgar Bolsonaro do poder. Aliás, se não agirmos rápido, não haverá movimento algum.

O impeachment é a única possibilidade de um polo catalizador capaz de ganhar maioria social e apresentar uma saída, não só para a crise sanitária e econômica, mas para o agravamento político capitaneado por Bolsonaro, que é, sem dúvida, o maior aliado da pandemia.

Em entrevista à Carta Capital, o filósofo Vladmir Safatle, responde por que Bolsonaro acerta ao falar que o Brasil é ingovernável

Ele compreendeu que a Nova República acabou. Os pactos de governabilidade que estavam na Nova República, os acordos, as coalizações, não funcionam mais. O horizonte constitucional da Nova República também não consegue mais legislar em cima desses acordos. Levando em conta isso, ele (Bolsonaro) simplesmente percebeu que a sua função no governo seria mobilizar de forma permanente um setor da população que procura uma saída fora dessa institucionalidade vigente e que está disposto a toda forma de ruptura.”

A partir desse trecho e das últimas manifestações no palácio do planalto, onde Bolsonaro ameaça claramente o STF dizendo que os militares estão ao seu lado, é preciso chegar a algumas conclusões. Ainda que os generais tenham categoricamente negado apoio a essa aventura. Bolsonaro tem uma estratégia e por esta não se resumir a governar sob os limites da democracia, sua tática é fazer uso das prerrogativas presidenciais e da máquina do poder político e administrativo, seja através de indicações, cargos, acordos e privilégios para galgar o máximo de posições que permitam proteger seu clã e alcançar uma correlação de forças favorável para o golpe.

Por outro lado, o cálculo dos partidos burgueses atraídos pela possibilidade de alcançar posições valiosas na máquina governamental, acaba por assumir uma posição deletéria na manutenção do presidente, e provavelmente se utilizarão do jogo republicano para seguir acumulando até o último momento. Uma armadilha que pode levar a cabo a frágil e recente e já abalada democracia brasileira.

É preciso ir além da solidariedade ativa, da distribuição de alimentos, remédios e de ajuda emergencial de toda a ordem. O PSOL precisa ser o partido consequente na construção de uma frente ampla e democrática, defendendo um programa à esquerda que se atente aos interesses da classe trabalhadora e dos mais vulneráveis. É preciso ser o mais coerente, patriótico e responsável por essa unidade, ainda que ciente de suas graves limitações. Nossa tarefa nesse cenário é golpear juntos e marchar separados!

Com essa certeza e no momento preciso, nossos valorosos parlamentares federais Fernanda Melchionna, Sâmia Bonfim e David Miranda protocolaram, com um milhão de assinaturas colhidas em poucos dias, um pedido de Impeachment que nesse momento ecoa o significado do Fora Bolsonaro.

A canção de Raul Seixas serve como um bom começo de diálogo por uma forte unidade. Ela traduz um sentimento de solidariedade social e empatia que não se materializam pela vaidade das elaborações e pela busca de um culpado por estarmos ultrapassando a fronteira entre civilização e barbárie. A continuação do trecho da música citado logo no início desse texto traz uma reflexão importante: “É sempre mais fácil achar que a culpa é do outro. Evita o aperto de mão de um possível aliado. Convence as paredes do quarto e dorme tranquilo. Sabendo no fundo do peito que não era nada daquilo”.

A esquerda brasileira precisa enfrentar seus fantasmas e construir uma alternativa no interior dessa frente ampla democrática, que supere as derrotas do passado não só através de autocrítica, mas também na construção de um programa claramente desvinculado da conciliação de classes, uma nova identidade que permita existir nominalmente rompendo o novo cenário de polarização da direita (de Moro, Witzel ou Dória) com a direita (de Bolsonaro).

Que os sinos dobrem pelo governo Bolsonaro. A hora do Impeachment é agora!

Referências:

Mundo de Músicas, Jornal Relevo, Revista Cult, PSYERP, Revista Movimento 1 e 2, El País Brasil e Carta Capital

*É historiador, mestre em Relações Étnicoraciais, professor do IPN e membro da direção do Movimento Esquerda Socialista – MES/RJ.

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