Uma das fazendas, a agropecuária Tamakavy, teve incentivo da Sudam e deu nome a uma rede de lojas; governador do Mato Grosso na época, José Fragelli (Arena), vendia terras devolutas “na prancheta”, sem medição, como ele mesmo definiu, em 1979, em CPI no Congresso
Por Alceu Luís Castilho, em De Olho nos Ruralistas
Existisse em 1972, o Jornal do SBT poderia noticiar uma visita muito curiosa a uma fazenda em Barra do Garças (MT), na região do Araguaia: um homem de quase 42 anos, exportador de gado Nelore, chegava com óculos escuros e barba postiça para vistoriar o local, a Fazenda Tamakavy. Disfarçado. “Estou dando uma incerta”, declarou depois Silvio Santos à revista Cruzeiro, em dezembro daquele ano. “Não quero que saibam que o dono chegou”.
Nos anos seguintes, ele divulgaria a lenda de que nunca visitara a propriedade. “Eu tinha uma fazenda que era a segunda maior do Brasil, a Tamakavi, e nunca fui lá”, afirmou, em 2010, à Folha. “Nem vi no mapa”.
Versões dele mesmo à parte, Senor Abravanel sabia muito bem onde estava pisando. Por achar que estava pagando impostos demais, e diante dos incentivos fiscais do governo federal para a pecuária, ele adquiriu áreas que somavam pelo menos 70 mil hectares no Mato Grosso, onde hoje ficam Alto Boa Vista e São Félix do Araguaia.
Não era a segunda maior fazenda do Brasil. Mas era enorme.
Naquela época quem governava o país era o ditador Emílio Garrastazu Médici.
No UOL, Mauricio Stycer conta que Médici recebeu Silvio Santos em 1970. O empresário pleiteava a concessão dos canais Excelsior. O ditador elogiou fartamente aquele que ele chamou de “animador”. Mas a concessão foi parar, em 1971, nas mãos do Jornal do Brasil. A primeira concessão de Abravanel seria outorgada no governo seguinte, em 1976, já sob a gestão de Ernesto Geisel, que recebeu o empresário duas vezes.
A concessão do SBT, na época TVS, em 1981, com a ajuda da família do presidente João Baptista Figueiredo. (Neste sábado, quase quarenta anos depois, pela primeira vez na história, e por motivos políticos, o Jornal do SBT não foi ao ar.)
Quando Silvio decidiu entrar para a pecuária o governador mato-grossense era outro pecuarista, José Fragelli, da Arena, o partido de sustentação do governo militar. Ele — que presidiu o Senado durante o governo Sarney e chegou a substituí-lo na Presidência — costumava facilitar a entrega de terras devolutas para empresas simpáticas ao regime.
A Agropecuária Tamakavy, vendida para Sílvio Santos pelos usineiros paulistas Orlando Ometto e Renato de Almeida Prado, foi uma das agraciadas pelas políticas estaduais e federais.
CARTÓRIO INTIMOU SILVIO, ÍRIS E ATÉ O SBT
Em 2010, a 1ª Serventia Notarial e Registral de Barra do Garças intimou Senor Abravanel (Silvio Santos), Iris Abravanel, Henrique Abravanel, a Silvio Santos Participações S/A, o SBT e outros antigos proprietários de outra empresa agropecuária, a Fazenda Tiaipe Ltda, entre eles integrantes das famílias Almeida Prado e Ometto, em relação a possíveis irregularidades em imóveis.
Com 29.999,3 hectares, a Gleba São João, da Agropecuária Tiaipe S/A, foi considerada regular. Havia uma coincidência de áreas em uma das matrículas, mas o processo foi arquivado.
No dia 8 de julho de 1972, o Correio da Manhã informava que Silvio Santos acabara de firmar contrato com o Grupo Ometto-Almeida Prado para assumir o controle da Agropecuária Tamakavy, “na área da Sudam”: “A transação envolve uma área de 70 mil hectares, no município mato-grossense de Barra do Garças, compreendendo as empresas Tamakavy, Tiaipe e Barra Atlântica, que agora passarão a chamar-se Baú Agropecuária S.A.”.
A fundação da Agropecuária Tiaipe ocorreu em 1973, ano em que o empresário e apresentador se consolidou como pecuarista na região. Mais ao norte, até o ano seguinte, ainda se desenrolava a Guerrilha do Araguaia.
APRESENTADOR CHEGOU A TER 10 MIL CABEÇAS DE GADO
Em depoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Fundiário, em 1979, o ex-governador Fragelli reconheceu em seu depoimento irregularidades cometidas na determinação e individualização dos imóveis rurais em Mato Grosso. E definia os títulos de propriedade em seu estado como sendo “de prancheta”. “Os agrimensores jamais teriam vistoriado e medido as glebas in loco“, descreveu Bruna Franchetto em um laudo antropológico divulgado em 1995. “Isso significaria a nulidade dos títulos concedidos e obtidos por tais mecanismos ilegais”.
“Agrimensores jamais vistoriaram as glebas”
Já muito conhecido na época como apresentador de TV, o novo pecuarista estendia seus tentáculos. Além da Tamakavy, Silvio Santos manteve até o fim dos anos 80 as Agropecuárias Tiaipe e São Cristóvão. As três formavam a fazenda Tamakavy. De 70 mil hectares, segundo o livro “Silvio Santos, a Trajetória do Mito“, de Fernando Morgado; ou 95 mil hectares, segundo reportagem de 1988 do Jornal do Brasil.
Ali o empresário chegou a ter 10 mil cabeças de gado. Na época da reportagem, durante o governo Sarney, e enquanto o país discutia a reforma agrária na Constituinte, Silvio Santos ainda tinha 6 mil reses, distribuídas em 15 mil hectares de pasto. Foi quando ele pressionou o governo Sarney, segundo o escritor Mário Ribeiro Martins, para que a capital de Tocantins fosse em Araguaína, ali do outro lado do rio, para que seus negócios fossem beneficiados.
UM VIZINHO CONHECIDO: A TI MARÃIWATSÉDÉ
O nome Tamakavy ficou mais conhecido, nos anos 70, pela rede de lojas de eletrodomésticos com esse nome, uma derivação do Baú da Felicidade. O empresário chegou a ter 120 unidades da Tamakavy no Sul e Sudeste. Mas a fazenda veio primeiro. Em entrevista à Veja, em maio de 1975, ele contou que recusou várias sugestões da equipe. Achava que, se o nome era difícil de ser memorizado, seria ainda mais difícil esquecê-lo. “Eu confio muito no meu feeling”, afirmou.
Tamakavy é o nome de um córrego na região, como mostra o mapa da Agência Nacional das Águas (ANA), muito próximo da Terra Indígena Marãiwatsédé, hoje no município de Alto Boa Vista — desmembrado em 1991 de São Félix do Araguaia e Ribeirão Cascalheira. Naquela época, e até 1976, São Félix, por sua vez, fazia parte do município de Barra do Garças.
A TI Marãiwatsédé foi objeto de uma desintrusão, ou seja, uma expulsão de fazendeiros invasores, durante o governo Dilma Rousseff. Isso porque a gigantesca Fazenda Suiá Missu incidia em território Xavante. A Suiá Missu, uma gigante de quase 700 mil hectares (um território maior que a Palestina), foi agraciada na gestão de Fernando Corrêa da Costa, antes mesmo das terras “de prancheta” do governador Fragelli. O beneficiado foi Orlando Ometto, usineiro paulista, sócio de outro usineiro, Renato de Almeida Prado, os mesmos que venderam a Tamakavy para o grupo Silvio Santos.
O udenista Fernando Corrêa da Costa era avô da atual ministra da Agricultura, Tereza Cristina. Ele também distribuía terras para os mais abonados: “Avô da ministra da Agricultura entregou terras para grandes empresas no MT e encolheu Parque do Xingu“. A Agropecuária Tamakavy S/A foi criada em dezembro de 1969, quando Costa ainda era o governador. O presidente já era Médici.
Definido pela família como desbravador, Almeida Prado — segundo José Renato de Almeida Prado, no Comércio do Jahu — “coordenou a abertura de estradas a machado e facão, construiu ranchos, desmatou perto de seis mil alqueires de terras agricultáveis”. Algo como 15 mil hectares. “A vida na mata era dura”, conta o parente do usineiro, falecido em 2006. “Na Tamakavy, que em 1972 foi vendida para o Grupo Silvio Santos, Almeida Prado chegou a enterrar 17 peões”. Por doenças, acidentes ou brigas.
Esse tipo de iniciativa dos governos e dos empresários chamou a atenção de um jovem bispo de São Félix do Araguaia, apenas dois anos mais velho que Silvio Santos, chamado Pedro Casaldáliga. Fundador da Comissão Pastoral da Terra (CPT), ele está lá até hoje, aos 92 anos. Em sua Carta Pastoral de 1971, “Uma Igreja da Amazônia em Conflito com o Latifúndio e a Marginalização Social”, divulgada no dia em que foi ordenado bispo, ele considerava as áreas cedidas aos empresários “absurdas”. Era a primeira grande denúncia internacional sobre a Amazônia.
FAZENDA TEVE INCENTIVO DA SUDAM
Os incentivos fiscais foram motivo assumido para as aventuras agropecuárias de Silvio Santos. Da Lapa para a Amazônia, o empresário carioca foi bem além da imagem que procurou consagrar no imaginário popular, a de que era um camelô, e que se não fosse a concessão outorgada no governo Figueiredo ele estaria “vendendo lápis”. A escala real era a do desmatamento na Amazônia. O objetivo imediato de Silvio: livrar-se de impostos.
“Estávamos pagando imposto demais”
Essa história é contada pelo próprio empresário no livro “A fantástica história de Silvio Santos“, de Arlindo Silva, uma das duas obras de louvação a ele lançadas em 2017. Em determinado momento, Silvio explica que, como tinham de vender letras de câmbio, com o crescimento dos negócios, era preciso transformar isso em dinheiro:
— Como nossas empresas se ampliavam cada vez mais, estávamos recolhendo muito imposto para o governo. Por isso partimos para a agropecuária e compramos uma fazenda de 70 mil hectares em Mato Grosso, município de Barra do Garças, onde criamos bois para exportar pelo porto de Santarém e para o mercado interno.
Ou seja: havia isenção de impostos para criar gado. As empresas com sede no Brasil tinham direito à redução de 50% na declaração caso desenvolvessem projetos agropecuários aprovados pela Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam).
Tudo ocorria pelas graças da Sudam, que financiava 75% dos projetos. A tese de livre docência do geógrafo Ariovaldo Umbelino de Oliveira, hoje professor titular aposentado da Universidade de São Paulo (USP), mostrava em 1997 que a Agropecuária Tamakavy foi um dos 66 projetos de pecuária aprovados pela Sudam na região do Araguaia mato-grossense.
Um dos objetivos do autor nessa pesquisa foi mostrar que esses projetos “em grande parte constituíram-se como golpes contra o erário público”. Compunha-se o que Oliveira chamou de “contrarreforma agrária” dos governos militares, engajados na distribuição de terras a empresários, em detrimento dos camponeses, quilombolas e indígenas, vítimas de grilagem, etnocídio e genocídio.
As áreas dessas fazendas beneficiadas, diz o geógrafo, “os maiores latifúndios da história da humanidade”, coincidiam com as áreas mais desmatadas da Amazônia. No caso da Tamakavy, uma área de 29.999 hectares recebeu incentivo de Cr$ 5.144.623,00 da Sudam. “A estratégia era transformar o Brasil em um grande exportador de carne”.
EMPRESÁRIO VENDEU TERRAS PARA SALVAR SBT
Segundo o livro “A fantástica história de Silvio Santos“, o empresário se desfez da Tamakavy na mesma época em que vendeu a Record para a Igreja Universal do Reino de Deus, comandada por Edir Macedo, em 1989. Exatamente naquele ano o apresentador tinha sido anunciado como candidato à Presidência da República, numa aventura derrubada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
A Tamakavy, agora com sede em Alto Boa Vista, pertence hoje a um político goiano, Adair Henriques da Silva, ex-prefeito de Bom Jesus (GO).
A venda da Record por US$ 45 milhões, segundo Arlindo Silva, serviu para pagar a maior parte da dívida do SBT. O restante foi pago com a venda da TV Corcovado, do Rio, e da própria Fazenda Tamakavy.
Mais de trinta anos depois, Silvio Santos volta ao noticiário por outro motivo. Neste sábado (23), pela primeira vez, o Jornal do SBT não foi ao ar. Motivo: sob pressão do governo Bolsonaro, o empresário — dono de uma concessão pública de radiodifusão — não gostou da cobertura da nova crise, diante da reunião ministerial onde o presidente falou em armas a população para, em tempos de pandemia, enfrentar prefeitos e governadores.
E onde o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, detalhou estratégia de aproveitar a quarentena, enquanto a imprensa está, em sua visão, distraída com a Covid-19, para desregulamentar tudo o que for possível, “de baciada”. Ou, em outras palavras, “passar a boiada”.
No lugar do Jornal do SBT, Silvio Santos exibiu uma edição do programa “Triturando”.
Foto (Reprodução/João B. da Silva): de novo com Figueiredo, ele se aproximou também de Geisel e Médici