Como vai a queda, capitão?

No dia em que pesquisa revelou rejeição recorde, ele voltou a xingar os adversários e fez manobra vulgar para seduzir Procurador-Geral. Leia também: os números que demonstram a insanidade de relaxar a quarentena.

por Maíra Mathias e Raquel Torres, em Outra Saúde

PERTO DA RUÍNA

Se o objetivo de Jair Bolsonaro ao elevar à enésima potência a caricatura que sempre foi – os gritos, as frases de efeito, as ameaças, a escatologia, os ‘e daí?’, o discurso de que é perseguido, o cantar de galo diário junto à sua mirrada claque no Palácio da Alvorada – é manter seu um terço de apoio entre a população, então até agora a estratégia parece funcionar. Mas, fora dessa bolha, tudo está ruindo de forma acelerada. Segundo a última pesquisa do Datafolha, publicada ontem com dados de segunda e terça-feira, pela primeira vez a maior parte da população considera Bolsonaro incapaz de governar o país. São 52% dos entrevistados, contra 44% no início de abril. Para 43% dos brasileiros o governo é ruim ou péssimo, o que é um recorde: antes, o maior índice tinha sido de 38%, um mês atrás.

Quando se trata da atuação do presidente na pandemia, 50% a consideram ruim ou péssima, uma diferença de cinco pontos percentuais em relação ao dia 27 de abril, e 17 em relação a março. Fora isso, 53% das pessoas acham que o presidente é de alguma forma (muito ou pouco) responsável  pela curva de infecção. A aprovação ao Ministério da Saúde, que atingiu seu ponto máximo (76%) no começo de abril, quando o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta se opunha a Bolsonaro, caiu drasticamente. Com Nelson Teich, foi a 55%. Com o general Eduardo Pazuello, é de 45%.

Parece que um grande divisor na avaliação é o grau de adesão dos entrevistados ao isolamento social: 42% dos que dizem viver normalmente acham o presidente ótimo ou bom, enquanto só 16% dos que estão confinados concordam com isso.

Mas a derrocada não se deve só ao coronavírus, com as quase 30 mil mortes no Brasil e a crise econômica brutal que acompanha a pandemia. O vídeo da famosa reunião ministerial de 22 de abril teve seu impacto e, entre os que assistiram, o percentual dos que apontam a inadequação do presidente é 17 pontos maior do que nos outros.

Apesar de tudo, Bolsonaro continua conseguindo ser bem avaliado por um terço da população, o que é uma constante desde o início do seu governo. Com esse, apoio é difícil que se inicie um processo de impeachment, como ressalta a professora de ciência política da USP Maria Hermínia Tavares, no Nexo. Mas a composição desse grupo, cujo percentual está hoje em exatos 33%, está longe de ser estanque. Algo que já tinha sido observado em levantamentos anteriores é a perda de confiança por parte dos mais ricos e escolarizados. A reprovação subiu dez pontos entre os que têm nível superior e seis entre os que recebem mais de cinco salários mínimos. Hoje, entre quem ganha mais de dez salários, 62% acham o presidente ruim ou péssimo. Entre os mais instruídos, 57%.

Alessandro Janoni, diretor de pesquisas do Datafolha, e Mauro Paulino, diretor-geral, apontam que o núcleo duro do bolsonarismo é, na verdade, formado por apenas 16% da população. Nesse ‘bolsonarismo raiz’ estão aquelas pessoas que confiam em absolutamente tudo o que o presidente fala e sempre o avaliam como ótimo ou bom (e provavelmente acham essas pesquisas de opinião uma bobagem…). Em sua maioria, são homens, brancos e com renda superior a dois salários mínimos, e há duas vezes mais empresários nesse estrato do que no resto da sociedade.

O resto da aprovação é mais volátil. Dos 33 pontos que Bolsonaro tem agora,11 vieram de estratos que não votaram nele e, nesse grupo, a maioria entrou com o pedido de auxílio emergencial de R$ 600. “A taxa de reprovação ao presidente nesse estrato é inferior em seis pontos percentuais à verificada entre os que não pediram o auxílio, mas o segmento está longe de ser fiel a Bolsonaro – são os que mais se dividem quanto ao impeachment e à renúncia do presidente”, escrevem Janoni e Paulino.

Daí que a possível redução ou retirada do auxílio emergencial nos próximos meses vai ter impacto não só sobre a renda e a vida das pessoas mas também, com certeza, na popularidade do governo, no futuro de Bolsonaro como presidente e, consequentemente, na estabilidade política.

Em tempo: não é só ao seu núcleo duro que Jair Bolsonaro tenta se segurar. Como temos visto diariamente, o loteamento de cargos para o Centrão tem um papel fundamental nisso. Ontem o presidente reconheceu que tem feito as negociações, minimizando o fato. “Eles (parlamentares) se sentem prestigiados, porque na ponta da linha ter indicado para terceiro ou quarto escalão é bom (…) Agora, acusação vem aí, Centrão, fisiologismo… (…) Muitas vezes o parlamentar quer dizer que é dono da obra, mas nada além disso. A intenção não é fazer besteira, se fizer paga o preço. Qualquer pessoa indicada passa por sistemas de informação nosso, a gente pesquisa a vida pregressa dessa pessoa. Se tem condições de exercer o cargo, vai exercer, sem problema nenhum. Se tinha algum mistério, está desfeito”, disse, em transmissão ao vivo em suas redes sociais. Ele ainda justificou que as conversas com o Centrão são necessárias para “derrotar” o PT nos estados.

ACOMPANHANDO A CRISE

Um dia depois de ter mergulhado em discussões sobre como afrontar as decisões do Supremo Tribunal Federal que lhe desagradam, Jair Bolsonaro amanheceu pronto para mais um round. Vestindo uma gravata estampada com fuzis, declarou à imprensa na saída do Palácio do Alvorada: “Ordens absurdas não se cumprem e nós temos que botar um limite nessas questões”. Perguntado sobre exatamente o que estaria falando, o presidente da República, mais uma vez, demonstrou que gosta mesmo é de monólogo: “Quem tá falando sou eu, não estou dando entrevista. Se não quer me ouvir, vai embora”. 

O “limite nessas questões”, se veria mais tarde, é lançar mão de uma interpretação contestada pela maioria esmagadora dos juristas do artigo 142 da Constituição Federal, que trata do papel das Forças Armadas na defesa das instituições democráticas. Bolsonaro divulgou em suas redes sociais uma transmissão ao vivo com o advogado constitucionalista Ives Gandra Martins (o mesmo que deu corda, com um parecer, para o impeachment de Dilma Rousseff). Gandra tem defendido a tese de que a Carta prevê um golpe pontual das Forças Armadas no caso de um poder da República sentir-se “atropelado por outro”. Para ele, caberia aos militares – e não ao Judiciário – exercer o verdadeiro “poder moderador”. Para Gandra, se as Forças Armadas invadem o STF para, nas suas palavras, “repor a lei e a ordem”, isso não confira uma ruptura com a ordem democrática. “Jamais”.

É música para os ouvidos da família Bolsonaro. Eduardo, que na véspera já tinha declarado que para ele não é mais questão de “se”, mas de “quando” haverá uma ruptura, começou a bater na tecla da interpretação ‘gandresca’. “Pessoas que não conseguem enxergar dentro do STF ou dentro do Congresso Nacional, instrumentos para reverter esse tipo de desarmonia entre os poderes, elas se abraçam no artigo 142 da Constituição“, disse à José Luiz Datena na Band. E continuou: “Eles [militares] vêm, põem um pano quente, zeram o jogo e, depois, volta o jogo democrático”.

Na mesma toada está o agora bolsonarista Roberto Jefferson, que ontem pediu, emulando o palavrão que Bolsonaro disse pela manhã: “‘Acabou porra!’ Presidente Bolsonaro, chegou o momento, só depende do senhor. É sua iniciativa convocar o poder moderador das Forças Armadas, art. 142 da Constituição. Essa afronta a harmonia entre Poderes, que parte do STF, nos levará ao caos. O povo anseia por isso. Contragolpe”, escreveu no Twitter. Jefferson foi alvo de um dos mandados de busca e apreensão na operação das fake news…

A propósito: para dez juristas consultados por El País Brasil não existe previsão de “intervenção militar” que não seja golpe de Estado. De acordo com eles, o fato de Jair Bolsonaro ter compartilhado em suas redes sociais a entrevista com Ives Gandra, junto da sua contumaz participação em atos antidemocráticos, já é material mais do que suficiente para imputar ao presidente o crime de incitação à quebra da ordem democrática. 

Mas não foi só com palavras que o presidente resolveu apertar o cerco ao Supremo. Seguindo a estratégia combinada na quarta-feira, o ministro da Justiça anunciou (via Twitter…) na madrugada de ontem um pedido de habeas corpus para Abraham Weintraub e “demais pessoas submetidas ao inquérito das fake news” a fim de “garantir liberdade de expressão dos cidadãos”. O ministro da Educação foi convocado pelo STF para depor no inquérito. Ex-ocupantes da Justiça nos mais diversos governos comentaram o absurdo do gesto de Mendonça: primeiro, por não existir habeas corpus coletivo; segundo por não ser papel do ministro advogar pelo governo – isto é função da AGU. O HC caiu no colo do ministro Edson Fachin, que pediu informações a Alexandre de Moraes antes de decidir. Deputados da oposição já protocolaram pedido para que Mendonça explique o caso no Congresso.

Na manhã de ontem, o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, negou que o governo esteja pensando em “intervenção militar”. Ele é o autor da “nota à nação brasileira” da semana passada, na qual fala em “consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional” no caso de a Justiça requerer a apreensão do celular de Bolsonaro. Por esta grave ameaça – que Heleno caracteriza como “genérica” e “neutra” –, parlamentares deram entrada no Supremo com pedidos de impeachment do general. Ontem, o ministro Celso de Mello encaminhou ao procurador-geral da República, Augusto Aras, as petições para que ele manifeste se há indício de crime de responsabilidade ou não.

O decano do Supremo foi novamente alvo da ira de Bolsonaro, desta vez de forma direta. O presidente sustenta que a divulgação do vídeo da reunião ministerial do dia 22 de abril foi abuso de autoridade por parte de Celso de Mello. “Quem divulga vídeos, imagens ou áudios do que não interesse ao inquérito, está lá, um a quatro anos de detenção”, disse, defendendo Weintraub e também Ricardo Salles. 

O clima no Supremo, segundo apurações de bastidores, é de atenção. Os ministros se baseiam em episódios anteriores, nos quais Bolsonaro ataca outros poderes para inflamar a militância, mas não coloca em prática a radicalização. (Cá entre nós: o problema é que cada frase dessas, e são muitas, vai levando as instituições democráticas a um nível de estresse que já beira o insuportável.) De qualquer forma, para os jornalistas, ministros avaliam que o próprio habeas corpus de André Mendonça é sinal de que o governo ainda não desistiu dos instrumentos legais para confrontar o Judiciário. 

No caso do inquérito das fake news – cuja suspensão foi pedida não pelo governo, mas pelo PGR Augusto Aras –, a decisão ficará com o plenário da Corte. E parece que há maioria em apoio a sua manutenção. O relator desse inquérito, Alexandre de Moraes, já teria “informação para ações explosivas”. Mas ao invés de usar esse arsenal na quarta-feira, o ministro do Supremo teria decidido esperar os desdobramentos da operação – que como se vê, já causaram considerável curto-circuito.

Mas os números falam por si: depois da ação, a atividade de robôs e perfis “alugados” em prol de Jair Bolsonaro e suas pautas caiu 40% em relação aos momentos de maior atividade. E os 17 perfis que foram alvo do inquérito respondem por nada menos que 12% de todas as interações da direita no Twitter. 

Entre as reações ao dia de ontem, destaca-se uma menos usual, vinda da Congregação da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da USP. Em 1977, a Congregação escreveu uma “Carta aos Brasileiros” contra a ditadura. E, agora, 43 anos depois, achou por bem renovar o apelo: “Neste momento excepcional, em que o país vivencia grave crise sanitária com repercussões econômicas e políticas, impõe-se reafirmar que o pleno exercício dos direitos fundamentais, a legalidade, a liberdade, a igualdade e a justiça, são valores supremos do povo brasileiro, que o Estado, por meio de seus Poderes, tem o dever de assegurar e promover”.

Ah… Davi Alcolumbre (DEM-AP) encontrou Bolsonaro pedindo pacificação. E Rodrigo Maia (DEM-RJ) afirmou que a não concordância com o STF tem que se dar pelos caminhos legais…

ARAS, O “EXCEPCIONAL” 

Como costuma dizer Mino Carta, “até o mundo mineral” já percebeu que alguma coisa vai muito mal na Procuradoria Geral da República. O problema tem nome e sobrenome: Augusto Aras. A atuação do procurador-geral, escolhido a dedo por Bolsonaro, se assemelha a de um agente duplo, responsável por investigar alguém que, na verdade, protege. Se o “pulinho” de Bolsonaro à PGR já havia sido constrangedor, ontem a simbiose ficou escancarada. Em sua live, o presidente disse que “Augusto Aras entra fortemente” no Supremo caso surja uma terceira vaga na Corte. Durante seu mandato, Bolsonaro terá a prerrogativa de escolher dois ministros, mas parece já estar pensando em uma segunda gestão ou em cenários mais fúnebres – “espero que ninguém ali (no Supremo) desapareça”, afirmou como que num ato falho.

A coisa é ainda mais bizarra porque Bolsonaro resolveu elogiar Aras por sua atuação na… economia. “Ele procura cada vez mais defender o livre mercado, o governo federal nessas questões que muitas vezes nos amarram”, declarou. Bom, as questões que têm realmente amarrado o governo, o presidente e sua família são outras, bem distantes da ordem econômica. E a “atuação excepcional” que Bolsonaro vê em Aras é fator de rebelião na PGR, como revela a repórter Malu Gaspar, na Piauí.

A gota d´água para os subprocuradores foi o pedido de suspensão do inquérito das fake news apresentado por Aras na quarta-feira. Assim que assumiu a PGR, Aras contrariou um parecer da antecessora, Raquel Dodge, e deu sinal verde para o inquérito. Mas quando as investigações chegaram aos aliados de Jair Bolsonaro, o procurador-geral mudou de ideia, como vimos. “Ele teve a oportunidade de fazer o certo e não fez. E agora está fazendo o certo pelos motivos errados”, disse um membro do MPF, sob anonimato.

Agora, corre de maneira discreta na PGR um abaixo-assinado para destituir Augusto Aras do cargo. Isso porque a Constituição brasileira prevê que o Senado pode interromper o mandato de procuradores-gerais caso seja constatado crime de responsabilidade. Mas os subprocuradores também estão fazendo lobby no Congresso para que se aprove uma lei proibindo o presidente da República de escolher para o comando da PGR um nome que não esteja na lista tríplice, resultado da votação da categoria. O manifesto nesse sentido já tem mais de 530 assinaturas. 

Dois exemplos contundentes que ainda não tinham vindo à tona e mostram como atua Aras: o PGR tem negado pedidos de diligência na investigação sobre a interferência de Bolsonaro na Polícia Federal, dentre eles um que tinha como objetivo obter autos da operação Furna da Onça, em que surgiu o relatório que apontou os desvios praticados por Fabrício Queiroz no gabinete de Flávio Bolsonaro. E ainda: o procurador teria pressionado membros da sua equipe a assinarem uma nota desmentindo uma reportagem do jornal O Globo, que dizia que procuradores viam crime de responsabilidade no vídeo do dia 22 de abril. Ele se recusaram, mas Aras não desistiu e enviou o secretário-geral do MP para desmentir tudo na CNN Brasil. Ainda segundo a reportagem, a subprocuradora Lindôra Maria de Araújo, de quem partiu os pedidos de busca e apreensão nos endereços do governador do Rio, Wilson Witzel, é figura próxima de Flávio Bolsonaro… 

A propósito: Aras se manifestou ontem contra a apreensão do celular de Jair Bolsonaro.

AVANÇA MP DOS CORTES

Os cortes nos salários e jornadas de trabalhadores assalariados está em vigor desde que a MP 936 foi assinada, no início de abril. Como vimos ontem, o número de pessoas afetadas já é imenso (8,1 milhões de empregados), mas ainda está abaixo do esperado pelo governo federal (que prevê nada menos que 25 milhões com contratos suspensos ou salários reduzidos) porque a medida não terminou de tramitar no Congresso. Pois ontem a Câmara deu um passo nesse sentido, aprovando o texto.

O relator Orlando Silva (PCdoB/SP) tinha feito uma mudança para aumentar a proteção do governo federal a quem sofre os cortes. Na MP, o valor máximo dessa compensação seria de R$ 1.813, e Silva tentou mudá-lo para R$ 3.135. Não deu. Os partidos do Centrão, agora ‘casados’ com Jair Bolsonaro, barraram o aumento.

Segundo o governo, a MP serve para proteger empregos, mesmo que autorize não apenas os cortes mas a suspensão temporária de contratos, deixando as pessoas sem trabalho e sem salário por até três meses. O parecer de Silva aumentava o benefício dado pelo governo a essas pessoas e ao mesmo tempo propunha a ampliação do prazo para a vigência das medidas. Esse último ponto passou, mas a compensação segue baixa. O que significa que, pelo texto atual, cortes e suspensões vão poder se estender por mais do que três meses, com os trabalhadores recebendo pouco. A MP agora vai para o Senado.

Ainda falando em emprego e precariedade, um dado quase inusitado: em meio à crise, a renda média brasileira subiu e chegou a R$ 2.425, que é o maior nível da série histórica. Soa estranho, não? Acontece que os mais pobres estão ficando desempregados primeiro. Com essas pessoas expulsas do mercado de trabalho, seus baixíssimos salários deixam de entrar na conta dessa média, empurrando-a para cima. Do total de 4,9 milhões de postos de trabalho cortados, 3,7 milhões eram informais.

AS CONTAS PÚBLICAS

O governo federal registrou em abril um rombo de R$ 92,9 bilhões nas contas públicas, o pior resultado de toda a série histórica, iniciada em 1997. A reportagem da Folha diz que, do lado da arrecadação, a receita total caiu 32% em relação a abril de 2019. Na despesa, houve alta de 45%.

Há pouco tempo criticamos aqui a intenção do governo brasileiro de pedir US$ 4 bilhões emprestados a instituições financeiras internacionais. No Nexo, a economista Laura Carvalho explica não só por que essa ideia é perigosa (assumir uma dívida em dólares nesse momento significa sufoco certo no futuro) mas também por que não se deve acreditar que o dinheiro acabou. De acordo com ela, o governo deveria se concentrar não em pedir dinheiro fora, mas em vender ainda mais títulos públicos para investidores do mercado. Isso já está sendo feito em alguma medida e não têm faltado compradores, que são basicamente os ricos. Eles acabam se beneficiando dos juros pagos pelo governo federal, o que é um problema do ponto de vista da distribuição da riqueza, mas pelo menos a dívida é na moeda nacional. “Alguns governos já tinham patamares de dívida pública superiores a 100% do PIB antes da pandemia. A dívida pública do Japão, por exemplo, deve alcançar mais de 200% do PIB após a crise da covid-19. Na Itália, as previsões já giram em torno de uma razão dívida-PIB de 160% no fim do ano”, pontua.

Ela explica aindaque, como hoje o Brasil não acumula dívidas em dólar com bancos estrangeiros ou com o FMI, as desvalorizações do real em 2008, 2015 ou agora não nos levaram a uma situação de crise cambial como a que foi vista em 1999. E conclui: “Não é a falta de dinheiro que está limitando um combate ainda mais efetivo dos efeitos dessa pandemia-crise. A julgar pelo anúncio de uma eventual tomada de empréstimos em dólar pelo Ministério da Economia, que na prática nos levaria à situação estapafúrdia de trocar dívida em reais por dívida externa em um país com altíssimo patamar de reservas internacionais, as maiores restrições nesse momento estão vindo da política”.

OS CASOS PELO BRASIL

Ontem o Brasil registrou mais 1.156 mortes e 26 mil casos de covid-19. No total, há 26.754 óbitos e 438,2 mil casos conhecidos. É claro que a conta é inexata. Das 1,1 mil mortes registradas ontem, só metade aconteceu nos últimos dias. Mas isso não é uma boa notícia, obviamente, afinal, é péssimo não saber quantas pessoas morreram de fato ontem.

Em pouquíssimo tempo o país certamente vai ultrapassar a França e a Espanha no número absoluto de vítimas fatais. Em relação ao número diário, faz dias que já não há ninguém à nossa frente. Os Estados Unidos, que ontem ficaram em segundo lugar nesse quesito, tiveram 590 mortes registradas.

A taxa de contágio está acima de 1 praticamente no país inteiro, segundo estimativas do grupo Covid-19 Analytics, do qual participa a PUC-Rio. O único estado que se salva é o Ceará, que está com 0,92 (e entra em fase de ‘transição’ para a reabertura na segunda-feira). A média da taxa no Brasil é de 1,9, o que significa que 10 infectados passam o vírus para outras 19 pessoas. Para lembrar: a Alemanha anunciou sua reabertura econômica quando essa taxa estava em 0,7, e deu meia volta quando chegou a 1,1…

Os dados do Infogripe – que acompanham as internações por Síndrome Respiratória Aguda Grave e são importantíssimos diante da subnotificação de covid-19 –, apontam que os casos continuam crescendo, especialmente nas regiões Centro-Oeste e Sul. No Sudeste e no Nordeste também há crescimento, mas menos acelerado.

Apenas na região Norte parece haver uma redução. Aliás, depois de protagonizar algumas das mais terríveis cenas da pandemia no Brasil, o Hospital 28 de Agosto, em Manaus, zerou pela primeira vez uma de suas salas dedicadas a pacientes com o novo coronavírus.

Em relação aos dados oficiais de covid-19, o estado de São Paulo ainda é o pior em números absolutos, com quase 96 mil diagnósticos e sete mil mortes. O Rio ultrapassou a China em número de óbitos, chegando a 4,8 mil ontem. Já o número de casos é quase metade do chinês, reforçando a tremenda subnotificação. Mesmo assim, ambos os estados caminham para a flexibilização do isolamento.

De um isolamento que já não acontece de forma satisfatória, aliás. No Intercept, há o impressionante relato de uma funcionária da Ceasa, no Rio, onde a movimentação é intensa, e a fiscalização, precária. “Quando pedimos respeito às regras de distanciamento, eles nos olham com cara feia, até riem e deixam de levar a mercadoria por conta de um simples pedido de ‘por favor, mantenha a distância’. As pessoas falam na sua cara que já tiveram sintomas de coronavírus e estão na sua frente, sem máscaras. São pessoas que nem sequer seguem a quarentena. Dizem que só ficam em casa se estiverem morrendo. Enquanto isso, pessoas infectadas circulam livremente. Isso nos dá uma sensação horrível. Teve dias que fui ao banheiro chorar, porque além de medo, existe essa pressão psicológica de conviver com esse assédio diário”.

Em São Paulo, a pressão por incluir a capital na lista de municípios que poderiam começar a reabertura a partir da próxima segunda-feira veio do prefeito Bruno Covas, segundo a apuração do Estadão. Isso porque as subprefeituras da capital começaram a alertar para o risco de ‘desobediência civil’ caso a situação se mantenha como está, com medidas que geravam críticas e ao mesmo tempo eram frouxas, não aumentavam o isolamento. Concluíram que algo deveria ser feito: ou o lockdown de verdade ou a abertura “controlada”. A opção que venceu foi a segunda, embora a ameaça de lockdown siga como uma constante nas falas (e só nas falas) de Doria.

MAIS ‘LIVRES’

O governo federal revogou ontem uma portaria publicada pelos ex-ministros Sergio Moro e Luiz Henrique Mandetta que previa prisão para quem descumprisse medidas de isolamento social contra a covid-19. A anulação foi assinada pelo ministro André Mendonça, e pelo ministro interino da Saúde, general Eduardo Pazuello. A justificativa até poderia ser a necessidade de não colocar mais gente possivelmente infectada nas prisões nesse momento em que se luta justamente para reduzir a superlotação e as chances de contaminações e mortes em massa. Mas foi outra: em nota, o Ministério da Justiça responde a “notícias de prisões possivelmente abusivas de cidadãos, as quais não podem ser objeto de anuência por parte das autoridades federais”.

PASSOU DE TODOS OS LIMITES

Era questão de tempo para que o incentivo federal  à cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento da covid-19  fosse contestado… E, sim, é o Supremo quem deve julgar mais essa parada. Ontem, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Saúde e a Federação Nacional dos Farmacêuticos pediram a suspensão da nota técnica do Ministério da Saúde. As entidades afirmam que o governo baseia o uso da substância em estudos clínicos defasados, ignorando os mais recentes que concluíram tanto a falta de eficácia do tratamento, quanto os riscos das drogas no organismo dos doentes.

“A politização que tem sido feita em torno desse assunto está, em verdade, atrapalhando o combate à pandemia e fazendo médicos, gestores públicos, técnicos, juízes e ministros perderem tempo valioso na definição de outras questões que, seguramente, contribuiriam muito mais para a definição das ações de enfrentamento de momento tão duro do nosso país”, lamentaram as entidades que querem que a Justiça proíba o presidente e outros agentes públicos de fazerem propaganda das substâncias.

Enquanto isso, num planeta chamado ‘setor privado desregulado’, a operadora de saúde Hapvida resolveu demitir um médico que se recusou a receitar hidroxicloroquina no tratamento de pacientes com sintomas leves de covid-19. Não só: a empresa teria ameaçado outros trabalhadores de demissão também. A Folha ouviu profissionais e teve acesso a mensagens trocadas no WhatsApp. Em uma delas, um chefe de uma dos serviços próprios da Hapvida caracteriza os médicos que não querem prescrever o medicamento como “ofensores” e anuncia que está fazendo um “ranking”. De acordo com essa revoltante metodologia, quem aparecer duas vezes no ranking é demitido. Outro chefe basicamente proíbe os médicos de informarem aos seus pacientes os riscos da medicação. 

LONGA BUSCA

Ontem a Comissão Europeia lançou uma nova campanha de arrecadação de fundos para financiar o desenvolvimento e a produção de vacinas, tratamentos e testes. Quer conseguir dezenas de bilhões de dólares em doações públicas e privadas. Possivelmente essa pandemia é o evento na história que mais mobilizou, em pouco tempo, pesquisa e dinheiro. Afinal, sem vacinas nem remédios não vai ser possível viver normalmente de novo, a não ser que se aceite a contaminação generalizada e a morte de milhões de pessoas ao redor do planeta.

Essa corrida contra o tempo escancara a importância do investimento em ciência. No Brasil, pesquisadores também estão envolvidos na busca por respostas, mas muitas vezes se deparam com condições de trabalho péssimas, fruto do verdadeiro desfinanciamento a que foram submetidos nos últimos tempos. No podcast Tibungo, o Outra Saúde conversou com Juliana Cortines, que é professora do Instituto de Microbiologia Paulo de Góes, da UFRJ, sobre isso. Ela contou como estão as pesquisas no mundo todo – e no Brasil –, e quais são as drogas mais promissoras até agora. Ouça aqui.
OPERAÇÃO APNEIA

Ministério Público Federal, Controladoria Geral da União e Polícia Federal estão juntos em mais uma operação que investiga supostos desvios durante a pandemia. O alvo agora é Recife. Mais especificamente, um contrato firmado com uma empresa de São Paulo para a compra de 500 ventiladores mecânicos. Ontem, a PF cumpriu mandado de busca e apreensão na secretaria municipal de saúde, na casa do secretário, Jailson Correia, e na sede da empresa “Juvanete Barreto Freire”, localizada no interior paulista. 

As inconsistências na história, segundo explicou a PF, em nota, é que o contrato ultrapassava os R$ 11 milhões, enquanto a empresa – com capital social de apenas R$ 50 mil – não poderia faturar mais de R$ 360 mil por ano. Além disso, a empresa não existe em seu endereço de cadastro, nem tem funcionários e bens em seu nome. Dos 500 respiradores contratados, a empresa chegou a fornecer 35. Após notícias na imprensa pernambucana que apontavam problemas, a secretaria suspendeu o contrato no dia 22 de maio. Em nota, a prefeitura de Recife afirma que a parcela paga à empresa, de R$ 1,075 milhão, já foi devolvida ao erário. 

NO RIO…

As coisas não estão nem tranquilas, nem favoráveis. Ontem, Wilson Witzel exonerou dois importantes integrantes do governo: o secretário da Fazenda, Luiz Cláudio Carvalho, e o secretário da Casa Civil, André Moura – figura da qual você provavelmente vai se lembrar por ter sido deputado federal e aliado de Eduardo Cunha. Também deixou o barco o ex-secretário estadual de saúde Edmar Santos – que foi, como informamos, obrigado pela Justiça a sair do governo antes de assumir um estranho cargo de “secretário extraordinário de Acompanhamento da Covid-19”. Com isso, ele perde o foro privilegiado. 

Na Justiça fluminense, outra pecinha se moveu nesse enorme tabuleiro: o TJ afastou da Vara de Execuções Penais o juiz que autorizou que procuradores tomassem o depoimento do ex-subsecretário estadual de saúde, Gabriell Neves. Na ocasião, ele disse que só obedecia a ordens do ex-chefe, Edmar Santos.  

Imagem: Aroeira

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