Entrevista: Aumentam casos de violência doméstica durante a pandemia da Covid-19

Por Ana Cláudia Peres, em  Entrevista Radis

Mal havia começado o debate sobre violência doméstica em tempos de pandemia, promovido pelo Instituto Maria da Penha e transmitido ao vivo por uma rede social, quando um comentário ocupou a pequena tela do celular e chamou a atenção de quem estava online:

– Socorro! Socorro!

E logo depois, sem descanso:

– Alguém pode me ajudar, por favor! Estou sofrendo violência! Meu marido me agride!

Enquanto outras mulheres que participavam da “live” no início da noite de 28 de abril, ainda impactadas, digitavam rapidamente palavras solidárias, a mediadora Regina Célia Barbosa encaminhava a autora dos comentários para os canais privados do Instituto Maria da Penha, onde uma equipe já estava a postos para orientá-la sobre como proceder. Ali mesmo, em tempo real, muitas outras mulheres compartilhavam suas experiências. Houve o relato da filha que denunciou o próprio pai depois de presenciar anos de maus tratos à mãe. E a profissional de saúde do Ceará que, quando se viu livre do agressor, resolveu contar sua história em livro. “Só sabe os efeitos e as feridas, quem sobrevive a esse martírio”, escreveu, na caixa de diálogo, fazendo reverberar um sentimento comum entre muitas participantes.

Entre abril e maio, Radis acompanhou pelo menos cinco “lives” sobre violência doméstica. O assunto vem se tornando recorrente durante a pandemia de covid-19. Não raro, mulheres em situação de violência têm aproveitado esse espaço para gritar por socorro. São tantos os pedidos que eles inspiraram a mais recente campanha do Instituto Maria da Penha veiculada na internet (ver vídeo). No Brasil, a cada dois segundos uma mulher é vítima de violência física ou verbal. As denúncias feitas ao Ligue 180, serviço gratuito e confidencial criado para atender essas mulheres, cresceram 14% nos quatro primeiros meses de 2020, em relação ao mesmo período do ano passado. Foram 37,5 mil registros entre janeiro e abril deste ano, contra 32,9 mil no mesmo período do ano passado, segundo dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos. Um outro relatório, divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), aponta que, somente no estado de São Paulo, os atendimentos da Polícia Militar a mulheres vítimas de violência aumentaram 44,9%. O total de socorros prestados passou de 6.775 para 9.817, na comparação entre março de 2019 e março de 2020.

“Não tem romance nem poesia na violência”, disse Regina Célia, co-fundadora e vice-presidente do Instituto Maria da Penha, antes de encerrar os 60 minutos de transmissão àquela noite. Dias depois, ela concedeu uma entrevista à Radis em que falou sobre o que pode acontecer quando mulheres estão confinadas 24 horas com os seus agressores e sobre as medidas emergenciais que deveriam ser tomadas para garantir a proteção dessas mulheres em tempos de pandemia. Confira a entrevista concedida à repórter Ana Cláudia Peres.

Que fatores contribuem para o crescimento da violência doméstica nesse período?

As mulheres agora estão convivendo ainda mais tempo com os autores de violência, principalmente, aquelas que estavam em processo de denúncia dessas violências. Elas foram pegas, nesse contexto, e agora estão isoladas com eles. A gente sabe que o ciclo da violência tem três fases: a calmaria ou “lua de mel”, o aumento da tensão e a agressão. Antes da pandemia, essas fases se alternavam — porque ela trabalhava ou ele trabalhava ou eles saíam, ou seja, a convivência não era obrigatória nem tão compulsória. Agora, as fases da tensão e a da agressão ficaram mais duradouras, o que dificulta entrar na fase da “lua de mel”. Há ainda um terceiro fator: agora, todo mundo está vendo a violência acontecer e isso tensiona ainda mais a situação. Alguns agressores dizem para essa mulher que ela não tem saída, inventam que a delegacia da mulher ou os centros de referência não estão funcionando. E algumas mulheres aceitam essa falsa informação. Eles fazem ameaças ou batem nelas e em seguida lhes dizem: “Eu disse a você que essa palhaçada um dia ia acabar. Eu quero ver você denunciar agora que está tudo fechado”. Estamos recebendo esses relatos por email ou instagram. Nesse momento, o isolamento se soma ao medo, ao silêncio, à depressão e ao pânico. Está havendo uma desestruturação psicológica dessa mulher.

O que pode acontecer quando mulheres são obrigadas a conviver 24 horas na mesma casa com o agressor?

Algumas, por amor à própria vida, pensam que é preciso aguentar caladas até isso terminar. Outras jogam a toalha e estão entrando em processo de depressão tamanho porque elas entendem que, a qualquer segundo, elas vão realmente morrer. O pior que pode acontecer é ela achar que está sem apoio e abandonada. Por exemplo, nós recebemos uma denúncia pelo instagram de uma pessoa que assistiu à nossa “live” e pediu socorro naquele espaço. Mas quando entramos em contato, ela disse que só queria falar para desabafar. Ela nos disse: “Na verdade, eu não tenho mais esperanças. Mas, no momento, não quero e não vou fazer nada. Só quero que vocês não me abandonem”. Ou seja, ela está consciente de tudo, mas mesmo com essa consciência, não quer denunciar. Só quer que a gente esteja ali com ela: “Fica comigo! Não me abandona! Eu quero contar a vocês!” Isso é algo que nos preocupa. Dissemos a essa mulher que íamos ver uma Casa Abrigo [equipamento público que funciona como residência temporária para mulheres vítimas de violência doméstica] e ela recusou: “Não! Ele paga tudo! Ele mantém a casa! Eu sei que não estou suportando mais, mas não vou denunciar. Por favor, não se aproximem daqui. Não liguem para mim. Deixem que eu faço contato com vocês”.

Esse é um comportamento típico desse momento de isolamento social ou é usual entre vítimas de violência em qualquer período?

Ele passa a ser específico da pandemia quando ela diz que não tem mais o que fazer, porque entende que está tudo fechado, que os canais de ajuda não estão funcionando, que ninguém pode fazer nada. Não adianta dizer para ela que vamos levá-la a uma Casa Abrigo ou encaminhar o caso judicialmente porque ela acha que nada disso vai funcionar, principalmente, agora. E ela também está sem muitos canais alternativos para pedir ajuda. Muitas mulheres ameaçadas hoje estão com seu telefone na mão do agressor, seu whatsapp controlado sem que ela possa nem mesmo colocar a senha. Qualquer movimento dela, ele desconfia, a não ser que esteja dormindo ou que saia em algum momento… Há casos em que o autor da violência está saindo de casa, vai para o bar, por exemplo, e, quando volta, traz a ameaça de contaminar aquela mulher e o filho dela, além de voltar com uma carga renovada para agredi-la. Outra coisa que nos preocupa muito nesse momento são as mulheres agredidas fisicamente e que, quando vão a uma Emergência, essa Emergência está contaminadíssima de covid-19. Essa é uma situação extremamente delicada: para onde vão essas mulheres? Como assegurar àquela mulher que ela será cuidada e não contaminada. Algumas sustentam a dor em casa porque estão com muito mais medo de morrer por covid. Principalmente, as mulheres mães que pensam nos filhos. Essa mulher está sofrendo muito.

Pensadas em outro contexto, as leis Maria da Penha e do Feminicídio são suficientes para garantir a proteção das mulheres nesse momento de pandemia?

A Lei Maria da Penha não vai deixar de ser o que ela é, ou seja, uma lei pedagógica, de direitos humanos. A Lei do Feminicídio, a 13.104 de 2015, veio para dar reforço penal à Lei Maria da Penha. Essas, em tempos de pandemia ou não, elas funcionam. Mas agora, além de lutar pelo fortalecimento dos canais como o 180, é preciso trabalhar com a questão da aplicabilidade urgente, célere, urgentíssima de medida protetiva [mecanismo legal para proteger mulheres vítimas de violência de serem agredidas novamente, obrigando determinadas condutas por parte do agressor, sendo a principal delas, a proibição do acusado de se aproximar da vítima.]. É preciso atuar para que os centros de referência que existem nas regiões metropolitanas permaneçam abertos 24 horas, além de instituir esses centros em todos os municípios. Infelizmente, também, nem todas as Delegacias de Atendimento à Mulher (Deam) funcionam 24 horas. Mas mesmo as delegacias comuns, como são chamadas, têm que acolher a denúncia de uma mulher vítima de violência, caso ela não tenha uma Deam próximo a ela. Também precisamos aumentar o número de Casas Abrigo, que não só acolhem a mulher mas podem estabelecer uma conexão mais direta, fluida, entre as delegacias e os centros de referência. É o que acontece na Casa da Mulher Brasileira [centro de atendimento humanizado e especializado no atendimento à mulher que reúne em um único espaço vários tipos de serviços]. Mas essa infraestrutura não existe em todas as capitais.

É possível dizer que durante a pandemia as pessoas estão prestando mais atenção a esse problema, pelo menos?

Por incrível que pareça, o isolamento social deu mais visibilidade a essa questão da violência doméstica. Além da própria vítima da violência, as famílias, os amigos, estão atentos e têm usado esses canais alternativos. Quer ver um caso? Nós recebemos uma denúncia de uma mulher que escreveu um email e pediu que entrássemos em contato só no dia seguinte, após as 18 horas, porque o autor da violência não estaria em casa. Quem fez a denúncia não foi a vítima, mas uma amiga dela que mora em outro país. Ela nos conta que o agressor já foi identificado com bipolaridade e havia se afastado da mulher. Só que agora ele voltou a se aproximar dela e, durante a pandemia, estão inclusive morando na mesma casa. E aí os episódios violentos começaram. A amiga nos conta, no resumo da demanda, que ele faz de tudo para ela não conviver com os filhos adultos, que ele lhe tira o celular por dias e que mantém uma câmera na sala de casa de onde a controla quando sai para trabalhar. E foi essa amiga, que mora em outro país, que nos enviou um email. À medida que esses relatos nos chegam, nós podemos tomar algumas providências.

O que fazer? Como agir? Há algum protocolo recomendado para as vítimas de violência durante a pandemia?

Apesar de toda a deficiência desses canais — e a gente vem lutando para estruturá-los e fortalecê-los cada vez mais —, a melhor coisa a fazer, de novo, apesar de toda a deficiência, é ligar para o 180.  A Lei Maria da Penha prevê cinco tipos de violência doméstica e familiar contra a mulher: física, psicológica, moral, sexual e patrimonial. Para qualquer uma delas, a mulher deve ligar para o 180 e, no aspecto emergencial, para o 190 [Emergência – Polícia Militar] A gente precisa fazer a denúncia e colocá-la como algo urgente para que o autor da violência seja afastado. Depois, se for possível, ela deve procurar os Centros de Referência [espaços de acolhimento/atendimento psicológico, social, orientação e encaminhamento jurídico para mulheres em situação de violência doméstica]. Mas havendo a oportunidade, ela deve ir para casa de uma pessoa bem distante — o que agora é muito difícil. Ela também pode e deve aproveitar os momentos de acesso ao celular e as “lives” nas redes sociais e pedir ajuda.

Regina Célia Barbosa – Imagem: Reprodução da Revista Radis

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