Povos indígenas reforçam barreiras sanitárias e cobram poder público enquanto covid-19 avança para aldeias

Com mais de 70 povos indígenas já afetados pela covid-19, barreiras sanitárias se multiplicam pelo país como forma de controlar o acesso às terras indígenas e diminuir contaminação

por Renato Santana e Tiago Miotto, em Cimi

Os povos indígenas têm adotado medidas próprias para conter a chegada da pandemia do novo coronavírus nas aldeias. As barreiras sanitárias se multiplicam país afora como uma forma de controlar o acesso às terras indígenas e evitar ao máximo o contágio nas comunidades.

A atual gestão da Fundação Nacional do Índio (Funai), por sua vez, entende que as barreiras são inapropriadas, chegando ao ponto de fazer ações contrárias a elas nas redes sociais. A sugestão é que os indígenas apenas fiquem em casa, ignorando as invasões territoriais promovidas por madeireiros, fazendeiros, caçadores e grileiros.

Ocorre que o órgão indigenista do Estado, enquanto criminaliza a autoproteção indígena, havia gasto até o dia 22 de abril pouco mais de R$ 1 milhão dos R$ 10,8 milhões enviados à Funai pelo governo federal para a proteção das aldeias ao novo coronavírus. Estes 10% foram usados para a compra de caminhonetes.

Em 28 de maio, segundo dados do Siop, o montante destinado ao combate à covid-19 aumentou para R$ 23 milhões, mas apenas 18% desse valor foi utilizado – cerca de R$ 3 milhões além do que já havia sido gasto com os veículos.

Também a Funai não apresentou nenhum plano emergencial e tampouco calendário de distribuição de cestas básicas, monitoramento e intervenções junto aos demais órgão do Poder Executivo para atender demandas nas bases, como a atenção aos indígenas em contexto urbano não assistido pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai).

Conforme levantamento do site De Olho nos Ruralistas, 23 povos indígenas levantaram barreiras sanitárias, em doze estados, até metade do mês de abril. O número aumentou desde então. A Rede de Monitoramento dos Direitos Indígenas de Pernambuco (Remdipe) lista barreiras sanitárias nas terras indígenas dos povos Xukuru, Pankará, Kambiwá, Kapinawá, Pankararu, Entre Serras – Pankararu, Truká, Pankará Serrote dos Campos, Atikum e Fulni-ô.

“Cada povo tem uma forma diferente de fazer a barreira sanitária. Em alguns lugares há barreiras em algumas aldeias, em outras na aldeia inteira. Algumas aldeias são tão pequenas que só há uma entrada, então não listamos”, explica a antropóloga Lara Erendira Andrade.

No Ceará, os Tapeba e os Anacé, cujas terras estão localizadas no município de Caucaia, região metropolitana de Fortaleza, também ergueram bloqueios em seus territórios. Em Alagoas, os Xukuru-Kariri também fizeram barreiras e os Xocó, de Sergipe, aproveitaram a barreira para distribuir insumos sanitários ao povo. Na Bahia, os Pataxó, Tuxá e os Tupinambá de Olivença sofreram críticas dos poderes locais, mas mantiveram as medidas de autoproteção.

Pelo menos cinco aldeias Pataxó da Terra Indígena (TI) Comexatibá estabeleceram barreiras de autoproteção, para impedir o fluxo de turistas, que mesmo sob a pandemia insistiam em cruzar o território indígena para acessar as praias da região. Na TI Barra Velha, os Pataxó também realizaram bloqueios em aldeias e estradas, preocupados com o crescimento dos casos nos municípios da região.

“Colocamos uma corrente, está fechado. Só vamos à cidade de quinze em quinze dias, e quando vamos na rua, usamos máscara”

No caso dos Tupinambá, desde o dia 20 de março os indígenas interditam as estradas BA-668 e BA-669 que dão acesso à Terra Indígena Tupinambá de Olivença, localizada entre os municípios de Ilhéus, Buerarema e Una, no litoral sul da Bahia. No caso da barreira sanitária interposta na estrada que dá acesso à aldeia de Serra do Padeiro, a polícia chegou a ir ao local para liberar a via à força, mas não obteve sucesso.

O mesmo ocorreu na TI Xakriabá, em Minas Gerais, onde uma ação da polícia militar desrespeitou a barreira erguida pelos indígenas em seu território. “Se essa epidemia chegar aqui, o Estado precisa ser responsabilizado, porque eles estão desrespeitando nossa organização contra o coronavírus”, cobrou o cacique Santos Xakriabá.

No Tocantins, os Krahô detiveram um carro com munições de arma de fogo numa das barreiras da TI Kraolandia, onde também denunciam a presença constante de invasores. Os povos Apinajé e Kraho-Kanela também estão entre os que realizam barreiras no estado.

“Na entrada do território, colocamos a icat xè xà, que é uma saia de palha grande, para evidenciar que a área estava fechada. Mas isso não foi suficiente. Então, colocamos uma corrente, está fechado. Só vamos à cidade de quinze em quinze dias, e quando vamos na rua, usamos máscara”, explica Wagner Krahô-Kanela, liderança da terra indígena localizada no município de Lagoa da Confusão.

“Colocamos a barreira para conscientizar especialmente quem vem de fora, para que se previna e não aconteça como já aconteceu na chegada deles [brancos]”, afirma Erileide Domingues, liderança Guarani Kaiowá da TI Guyraroka, no Mato Grosso do Sul. Em Caarapó, na reserva Te’yikue, os Guarani e Kaiowá também estão controlando o acesso de não indígenas com barreiras.

“Temos de suprir a ausência do Estado, que não tem plataforma de ação construída. As barreiras são mais uma medida ao alcance dos povos indígenas para amenizar esse impacto”

Ausência de políticas públicas

Para Dinamam Tuxá, da coordenação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), as barreiras sanitárias estão sendo feitas pela ausência do Estado, na medida em que o governo federal, mesmo antes da pandemia, despreza a proteção aos territórios indígenas com baixíssima execução orçamentária ou qualquer cuidado especial às populações que correm o risco de genocídio em caso de proliferação descontrolada da doença nas aldeias.

“A barreira sanitária é um dos instrumentos que traz uma certa segurança para a comunidade em termos de deslocamento, saber quem entra e quem sai. Isso por si só não combate o coronavírus. Precisa ter a comunidade seguindo as orientações da OMS (Organização Mundial da Saúde)”, analisa Dinamam.

“O que nos traz uma maior segurança da eficácia da barreira é que ela assegura que os indígenas permaneçam dentro dos territórios. Quem for sair passa informações e controla o fluxo de pessoas não desejadas nas comunidades. Serve de orientação”, explica o integrante da coordenação da Apib.

Dinamam defende que as barreiras poderiam servir para fazer testes em parceria com a Sesai. “Isso não acontece porque o governo não entende assim, ao contrário. Então temos de suprir a ausência do Estado que não tem plataforma de ação construída, plano não construído. As barreiras são mais uma medida ao alcance dos povos indígenas para amenizar esse impacto”, diz.

As barreiras têm servido também para ações de conscientização e educação sanitária. “As barreiras educam, passam as orientações da OMS e organizações indígenas. Proíbe e inibe a entrada de pessoas estranhas”, completa.

“A política de isolamento social deve ser reforçada, sendo incabível a Funai interferir na política de controle de acesso das aldeias adotada pelas comunidades”

Funai transforma indígenas em problema para a sociedade

Para a assessoria jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), em parecer, a posição da Funai contrária às barreiras sanitárias conflita com a orientação da decisão do ministro Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), que concedeu medida cautelar para vedar a circulação de qualquer campanha que sugira que a população deve retornar suas atividades plenas ou que expresse que a pandemia constitui evento de pouca gravidade.

O alerta da Funai contrários às barreiras sanitárias em estradas pelos indígenas “não reflete a realidade vivenciada nas aldeias, não atende aos princípios constitucionais sobre os direitos indígenas e aos cuidados indispensável para evitar a disseminação da doença no interior das aldeias”, diz trecho do parecer.

No informe da Funai há um alerta para que os indígenas não realizem bloqueios nas estradas de acesso às aldeias, durante a pandemia do novo coronavírus, pois já havia suspendido as autorizações de entrada em terras indígenas no mês de março.

No entanto, acumulam-se notícias de que madeireiros, invasores de terras, pescadores e garimpeiros aceleraram o avanço sobre as terras indígenas sem nenhum constrangimento ou impedimento dos órgãos públicos.

“A notícia, disponível no site da Funai, demonstra, no mínimo, dubiedade com sua missão fundamentada na legislação brasileira. Este jogo de palavras ou tergiversação, inicialmente, não deixa de ser contraditório, pois busca publicizar que os indígenas, em plena pandemia que assola o país, estão promovendo bloqueios de estradas, comprometendo a circulação de pessoas e o abastecimento do país. E assim a Funai aponta as comunidades indígenas como sendo eventualmente responsáveis por parte dos problemas da sociedade envolvente”, analisa o parecer.

Para os assessores jurídicos do Cimi, “as populações indígenas encontram-se inseridas no grupo de risco da covid-19, a política de isolamento social deve ser reforçada, sendo incabível a Funai interferir na política de controle de acesso das aldeias adotada pelas comunidades indígenas, baseada na autonomia concedida pela Constituição Federal de 1988”.

O parecer lembra ainda que a Constituição reconhece aos indígenas sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, competindo à União demarcar e proteger as terras tradicionais e os seus bens.

Enquanto boa parte das ações de proteção, conscientização e cuidado dependem da iniciativa das próprias comunidades indígenas, da ação de apoiadores e da disposição de servidores e equipes que trabalham sem os recursos necessários, a pandemia segue avançando de forma devastadora sobre as aldeias.

Segundo levantamento que vem sendo mantido pela Apib, por meio do  Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena, 71 povos indígenas já foram afetados pelo novo coronavírus e pelo menos 147 indígenas faleceram em função da doença. O número é três vezes maior do que o registrado pela Sesai.

Bloqueio do povo Pataxó na aldeia Mucugê, Terra Indígena Comexatibá. Foto: Ingrid Ãgohó Pataxó

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