Diretora adjunta da Rede Internacional de Fact-Checkers fala sobre novo PL que pode ir a votação hoje no Senado e diz que checadores não querem ser “Ministério da Verdade”
Por Ethel Rudnitzki, em Agência Pública
O Senado deve votar nesta terça-feira (2/6) o PL 2.630/2020, de autoria do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e dos deputados Tábata Amaral (PDT-SP) e Felipe Rigoni (PSB-ES). O projeto propõe a criação da Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, que já ficou conhecida como Lei das Fake News.
O texto determina uma série de regras para as plataformas de redes sociais no combate à desinformação, entre eles a obrigatoriedade de identificação de contas automatizadas como “robôs”, e sugere a verificação e sinalização de postagens como verdadeiras ou falsas por agências de fact-checking – ainda que não discorra sobre a necessidade de exclusão de conteúdos. Também exige que as empresas apresentem relatórios de transparência.
Plataformas que não respeitarem a Lei estarão sujeitas a sanções que vão desde advertência até a proibição de exercício das atividades no país.
Não é a primeira vez que tentam regulamentar “Fake News” no Brasil. Na época das eleições de 2018, havia 20 projetos de lei sobre o tema no Congresso Nacional, conforme mostrou a reportagem da Agência Pública. Desde o começo da pandemia, 21 estados já propuseram leis para multar quem espalha desinformação sobre o Coronavírus.
Mas, Para Cristina Tardáguila, diretora adjunta da Rede Internacional de Fact-Checkers (IFCN), as tentativas de regulamentação não dão resultado: “Não existe nenhum país do mundo que conseguiu diminuir o número de notícias falsas depois da implementação de uma lei”, afirma.
Comparado aos anteriores, Tardáguila avalia o projeto como melhor. “Mas está longe de ser bom”, diz. Para ela, o PL “coloca o checador numa berlinda”. Entenda:
O que diz esse novo PL das fake news?
Já existiram milhares e milhares de versões [do pedido]. A última versão está muito centrada nas plataformas e tenta regulamentar o que elas devem fazer no Brasil, o que é um grande avanço. [O PL] não está centrado no desinformador, está centrado no que seria o dever das plataformas. Isso faz dele um dos melhores que eu já li, sem dúvida. Mas está longe de ser bom, porque ele coloca o checador no centro do problema como um carregador de mochila, sem levar em consideração fatores básicos do dia a dia cotidiano do checador.
Apesar do capítulo inteiro sobre definição e regulamentação de checagem ter caído, ao enaltecer a checagem, o PL ainda coloca o checador numa berlinda. Tem um lado positivo, mas pode ter um backfire muito perigoso.
Por que o PL coloca o checador numa berlinda?
O PL coloca o checador num lugar que os checadores nunca quiseram estar. Sofremos muito sempre que nos acusam de sermos o Ministério da Verdade. E fazemos de tudo para não sermos. Esse PL nos coloca nessa posição que tanto rejeitamos.
O PL sugere que os conteúdos sejam rotulados como falsos ou verdadeiros, de maneira semelhante à parceria que já existe entre agência de checagens e o Facebook. Qual a diferença?
[A lei] transforma um projeto que era uma iniciativa do Facebook em uma imposição a todas as plataformas.
Eu queria muito que essa discussão sobre regulamentação deixasse de ser política e passasse a ser baseada em dados. A gente tem que primeiro pensar assim: no Brasil, se a gente somar todos os profissionais que são exclusivamente dedicados à checagem, não chega a 50.
Então imagina se subitamente tivesse uma lei que obrigasse todas as plataformas, e aí eu estou falando de todas mesmo, Gab, Viber, Tinder… Tudo teria que ter um grau de checagem. Aí você joga isso para as costas de equipes que são, hoje em dia, já muito pequenas e sem financiamento.
Essa lei é impossível de ser realizada.
Os checadores ganham uma reserva de mercado maravilhosa, vai ter trabalho infinito, mas ao mesmo tempo é um tiro no pé. A gente vai ser exposto a uma realidade de dia a dia de pressões absurdas e obviamente não temos braço para cumprir isso… A gente não tem braço para limpar todas as redes sociais do planeta.
Depois, as pressões acarretadas por conta da falta de braço vão derivar em ódio.
A celebridade que teve seu post checado vai odiar a plataforma de checagem, o governador que teve seu post checado também, além de achar que a gente está agindo contra o partido dele.
É um perigo quando você constrói uma lei sem levar em consideração a capacidade de execução.
Tem pessoas que também chamam iniciativas de combate às fake news, como a própria iniciativa do Facebook com as agências de checagem, de censura. Como você vê essas críticas?
O projeto do Facebook não abarca o todo e não pretende abarcar. Ele não resulta em nenhum tipo de ação legal, então não envolve a Justiça em nenhum nível, ninguém vai ter ficha suja, ninguém vai ser preso, não vai ter que pagar fiança nem multa, nada disso.
O projeto do Facebook prevê a imediata suspensão, ou seja, se você se resolver a questão e avisar o checador, imediatamente a etiqueta de falso é suspensa. Se você disser que 2+2=5 e o checador colocar que é falso, você diz que é 4, avisa o checador e ele suspende. O efeito da punição é temporário.
E por fim existe um outro ponto que eu acho vital. O trabalho com o Facebook é um trabalho pago. É um contrato entre empresas que é regido por cláusulas, por documentos, pode ser rompido a qualquer momento se um dos lados não estiver contente.
Uma lei? Um checador não pode romper uma lei. Ele pode ser obrigado a fazer aquilo. Quem vai pagar o checador para fazer isso? É um xadrez muito difícil.
Você falou que é perigoso levar essa responsabilidade para os checadores. Você acredita que as plataformas devem ser responsabilizadas legalmente por esse conteúdo? Como isso pode ser feito?
Eu estudo regulação há dois anos. Desde 2018 a IFCN tem uma plataforma que acompanha movimentos pela regulamentação em 60 países.
Em vários países do mundo já foram baixadas leis que vão desde criação de agências de checagens estatais até leis que preveem prisão para desinformadores. Tudo que você pode imaginar.
Porém não existe nenhum país do mundo que conseguiu diminuir o número de notícias falsas depois da implementação de uma lei.
Por exemplo, especificamente o caso de lei para obrigar as plataformas a marcarem os conteúdos como falsos, isso é exatamente o que aconteceu em Singapura. Lá o Facebook recebe obrigações do governo.
O governo decide o que é falso e o Facebook tem que marcar, porque é lei. Isso dá a maior polêmica. E não tem menos notícia falsa em Singapura.
Se não for legalmente, de que maneira a gente pode cobrar que as plataformas sejam responsabilizadas pelos conteúdos falsos e ataques que acontecem nelas?
A gente tem que dar passos pequenos. E mais, passos pequenos, cabeça fria, longe da Covid-19 e longe de eleição. Não é querendo destruir o Gabinete do Ódio, querendo destruir o STF, seja de um lado ou de outro, não é no meio de uma pandemia que nos impede de estar reunidos em uma sala… Não é assim.
O programa que existe hoje no Facebook, que é o maior exemplo ativo de etiquetação de conteúdo falso, surgiu de diálogo. Os fact-checkers mandaram uma carta aberta para o Zuckerberg em 2016 e ele recebeu e entendeu que algo teria que ser feito. O diálogo vem sendo travado desde 2016, 4 anos, e o projeto do Facebook tem vários problemas, mas só tem melhorado.
Não é na base da lei, da prisão, da multa… Eu tenho cada vez mais o pensamento de que na base da porrada não vale.
Acho que o risco que a gente corre é muito grande. Se hoje, durante a Covid, o produtor de notícias falsas é muito claro, é o cara que está falando que pode ir pra rua, que pode tomar hidroxicloroquina, amanhã quem vai ser?
Você acha então que os recursos legais contra difamação e injúria já são suficientes?
Objetivamente, sim. Mas tem outro passo muito importante, que é do nível administrativo dentro das plataformas. O aperfeiçoamento dentro das plataformas, os botões de denúncia. Isso tem que funcionar melhor.
Outro dia a gente estava vendo a Secom distribuindo informação de que a hidroxicloroquina era um medicamento que ia resolver a Covid. Isso é atestadamente falso. E você não tem um botão “reportar notícia falsa” no Twitter.
São conversas que precisam ser travadas e acho que a lei é a última instância.
Quais são os riscos de criminalizar? Quem são as pessoas que podem sofrer com uma possível criminalização?
Vou te dar um exemplo: Eu estava fazendo entrevistas sobre esse assunto com um grupo de jornalistas tailandeses, e na Tailândia esse assunto é barra pesada, você pode ir preso [por fake news]. Os jornalistas me pediram para deixar o celular na bolsa e não anotar nada. Ficaram com medo de mim.
Então primeiro tem uma auto-censura, as pessoas já não falam sobre esse assunto e o medo começa a ser o medo do seu próximo. A gente estava entre iguais, e mesmo entre jornalistas é um assunto tabu.
Qual é a imprensa livre que entre jornalistas você não pode falar de um assunto? É bem grave.
Depois, fui conversar com o pessoal da Indonésia, e eles estavam me contando sobre as prisões de donas de casa usuárias de WhatsApp. Eu estou em um grupo de mães de creche, imagina se de repente tem algum “X9” e começam a denunciar mães de creches? Na Indonésia mães foram presas, porque falaram de um terremoto e as mães ficaram nervosas para buscarem seus filhos no colégio.
Você acha que esse processo do jeito que está posto pode implicar de fato em censura ou as pessoas que falam isso estão é com medo de serem punidas?
Acho que pode. Não necessariamente vai, mas pode. Uma vez passada essa lei, vai cair no colo da justiça, mas eu vejo uma brecha enorme.
Outro ponto que o projeto traz é sobre o combate a robôs nas redes sociais. Qual a sua opinião?
Tarjar contas inautênticas eu acho bem interessante. É um desafio, essa parte da luta contra as contas inautênticas é muito difícil. Mas já ouvi pessoas me dizendo, que há formas administrativas que poderiam resolver isso.
Para encerrar, quais exemplos internacionais de legislação você destacaria como bons exemplos de combate à desinformação que poderiam ser importados?
Todos que têm a ver com educação literária. Os exemplos da Finlândia e do Reino Unido são sucessos. Colocar fact-checking nos colégios, universidades, em todos os lugares.
A gente começou nossa conversa hoje falando que somos 50 checadores. Falta gente para checar, falta gente com essa habilidade. Então qualquer proposta de alfabetização midiática e checagem vai ser muito melhor do que uma coisa regulatória.
E por outro lado, também qualquer iniciativa de colaboração entre entidades. Qualquer coisa que faça alianças para combate à desinformação. Agora a gente está com a Aliança Coronavírus, eu estou coordenando 88 redações no mundo inteiro para checar Covid. O Projeto Comprova está ativo, a ONU lançou um projeto chamado Verified…
A competição entre jornalistas não adianta, tem que ter colaboração.
Colaborou: Laura Scofield
Foto: Cristina Tardáguila é diretora adjunta da IFCN. Arquivo pessoal