Depois da pandemia, a semana de quatro dias

Cresce o debate sobre saídas anticapitalistas para a crise. Depois de derrotar a covid-19, primeira-ministra da Nova Zelândia vai adiante. Propõe, para reestimular a economia sem ampliar a desigualdade, menos trabalho, com os mesmos salários

Por Van Badham* | Tradução de Simone Paz, em Outras Palavras

Agora, a popularidade de Jacinda Ardern, primeira-ministra da Nova Zelândia, pelo Partido Trabalhista, é estratosférica. Com a confiança que a popularidade lhe trouxe, seu governo passou a se posicionar mais nitidamente, promovendo ideias políticas que pareciam inimagináveis apenas alguns meses atrás. Uma delas, discutida no mês passado, encoraja o país a adotar uma semana de trabalho de quatro dias úteis

A liderança de Ardern na Nova Zelândia, na crise do coronavírus, fortaleceu o apoio consolidado graças ao manejo empático e impecável de seu governo, durante o terrível massacre da Mesquita de Christchurch, [realizado por um supremacista branco], no ano passado. Quando o coronavírus atacou, o lockdown foi implementado rapidamente, de forma draconiana e eficaz. Até o momento, houve apenas 22 mortes pela doença no país. Hoje, enquanto o resto do mundo depara-se um número crescente de casos diários, nenhum novo caso foi registrado na Nova Zelândia há cerca de um mês [veja estatísticas completas].

Um impressionante número de 92% dos neozelandeses elogia a política de contenção da doença adotadas pelo governo. Segundo as últimas enquetes, Ardern é a líder de governo mais popular, em mais de 100 anos.

Com a iminente oportunidade de reestruturar a economia da Nova Zelândia na reabertura pós-coronavírus, Ardern está explorando um conjunto de políticas de ambição inusitada. O turismo, que foi o maior atingido com a crise, é o principal mercado de exportação da Nova Zelândia, empregando 15% dos neozelandeses e contribuindo para quase 6% do PIB; e foi no contexto de salvar esse setor que Ardern sugeriu, em 13/5 — de maneira informal, numa live no Facebook, desde a turística cidade de Rotorua — que caso o país adote uma semana de trabalho de quatro dias, esse tempo extra de lazer permitiria que o mercado turístico nacional se expandisse, suprindo a retração atual.

A formulação foi cuidadosa. “Eu já ouvi muitas pessoas que sugerem que deveríamos ter uma semana de trabalho de quatro dias. Mas, em última análise, isso fica entre os empregadores e seus funcionários”, disse Ardern.
Mesmo assim, a simples sugestão já “empolga os neo-zelandeses”, além de ter potencial de entusiasmar a “geração corona” [os jovens que chegam à vida adulta junto com a pandemia], ao redor do mundo. Quando Ardern explicou que “aprendemos muito sobre… [a flexibilidade] das pessoas que trabalham de casa, da produtividade que pode surgir disso”, ela estava falando de uma realidade material, vivenciada, sobre a maior transformação física dos locais de trabalho na memória ocidental

No mundo todo, o distanciamento social não só resultou em números recordes de pessoas trabalhando desde casa. Ele escalonou e rearranjou turnos, reorganizando a distribuição da força de trabalho em torno de sistemas de produção, distribuição e troca novos, e continuamente improvisados, como ocorre devido à demanda em uma crise econômica e de saúde. Economistas a consideram a maior transformação da força de trabalho desde a Segunda Guerra Mundial e, apesar do horror constante que significa administrar um vírus invisível e letal, que ressalta todos esses rearranjos, para alguns trabalhadores houve benefícios surpreendentes

Na intimidade das conversas de grupo, nas mídias sociais, transparecem mais as confissões explícitas de muitos neozelandeses — com um pouco de culpa — sobre o quanto, no fundo, estão gostando de seus novos cronogramas e desse tempo obrigatório em casa. Quem é pai deve estar achando um grande desafio os malabarismos que exigem conjugar a educação em casa com seus compromissos laborais, mas muitos também apreciam esse maior tempo com seus filhos

Uma cultura laboral que ainda gira, em tantos casos, em torno do modelo do “chefe de família” distancia os homens de responsabilidades domésticas. Agora, muitos deles, ao conquistar proximidade, adquirem o sentido de um maior envolvimento diário com seus filhos

As mulheres neozelandesas veem oportunidades reais de que empregos pós-Covid-19 se realizem gerando flexibilidade real para cumprir os compromissos de assistência e cuidados. Os que parecem estar se dando melhor psicologicamente, nestes tempos difíceis e extremos, são aqueles cujos dias agora incluem fazer coisas pela comunidade, ou realizar mais atos de cuidado. Em minha experiência pessoal, meu parceiro e eu estamos mais felizes conosco e em nosso relacionamento, ao não ter mais o stress dos deslocamentos e ao poder passar mais tempo juntos em casa

Uma semana universal de quatro dias em si não é uma panaceia para os relacionamentos, ou para a frustração com os locais de trabalho — ou mesmo para resgatar a economia. Mas Ardern sugere que ela seja considerada, em meio a uma série de mudanças no mundo do trabalho que os empregadores precisam aceitar. Se houver flexibilidade, alguns trabalhadores poderão optar, na lógica da proposta, por mais jornadas semanais, porém com menos horas diárias. Outros, ainda, estariam melhor trabalhando em tempo integral em casa; e alguns seriam mais produtivos com uma combinação de distintas condições.

Mas o que garantirá a revitalização das economias, um aumento na produtividade e um equilíbrio efetivo na vida profissional dos trabalhadores são os cenários gêmeos que a semana de quatro dias inerentemente propõe.

O primeiro é ajustar as escalas salariais para fornecer o equivalente a um salário digno com base em quatro dias de trabalho em tempo integral. Isso permitiria amenizar os efeitos de uma economia desacelerada e injetar mais dinheiro em mercados de consumo abalados. O segundo, é um novo paradigma sobre o local de trabalho sugerido pelo cardápio de ideias de Ardern. Este menu acaba com quatro décadas de pregação neoliberal em favor de um tipo de “flexibilidade” que favoreceu apenas os empresários. O modelo é substituído por outro, que implica flexibilidade democrática, em favor dos trabalhadores, famílias e comunidades verdadeiramente social-democrática que sirva, por meio dos trabalhadores, às famílias e comunidades

Em meio a uma claque de líderes ocidentais que anseiam por “voltar à normalidade” das coisas antes do vírus — muitos em em busca de estratégias de “recuperação” que eliminem ainda mais direitos — a Nova Zelândia mostra, bravamente, coragem de avançar. Não é de se admirar que sua governante tenha se tornado tão popular.

*Vanessa “Van” Badham é uma escritora e comentarista social australiana. Dramaturga e romancista, ela escreve dramas e comédias. É colunista do The Guardian Australia.

Imagem: Sara Wong

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