Por Ligia Guimarães, na BBC News Brasil
Para a democracia brasileira, o momento é de perigo por todos os lados. Corre o risco de não sobreviver sem um impeachment do atual presidente da República, Jair Bolsonaro. Mas também pode acabar em ruptura, caos social e violência, por outro lado, caso um impeachment do presidente seja realizado de maneira precoce, negociado às pressas e sem envolver todas as forças democráticas da sociedade.
A avaliação é do pesquisador Marcos Nobre, professor livre-docente de filosofia da Unicamp e presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).
Em seu recém-lançado e-book “Ponto-final: a guerra de Bolsonaro contra a democracia”, o primeiro de uma coleção de ensaios lançados pela editora Todavia sobre a pandemia, o filósofo argumenta que a emergência sanitária tornou ainda mais evidente a convicção autoritária do presidente.
“O impeachment é o único horizonte político regenerador que a gente tem”, afirma Nobre, que considera fundamental a formação de uma grande coalizão de partidos, segmentos da sociedade civil e até pilares do governo Bolsonaro, como as Forças Armadas, para garantir governabilidade ao próximo presidente a ser eleito no Brasil, em 2022.
“Mas um impeachment é uma coisa que precisa ser construída, não é uma coisa que você decreta pela vontade ou pela raiva”, diz.
Além de forte rejeição popular a Bolsonaro – o que Nobre prevê que acontecerá à medida que aumentarem as mortes por covid-19 e se agravar ainda mais a crise econômica -, o caminho até o impedimento do presidente precisa também envolver uma negociação dura, conduzida por uma frente ampla, sobre quais serão as regras para o próximo governo e quais as aspirações da sociedade depois do governo Bolsonaro.
Nos moldes do que foi, na visão do pesquisador, o impeachment do ex-presidente Fernando Collor, em 1992, e bem diferente do que foi o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, em 2016.
“Tem que colocar o STF, tem que colocar o Congresso, já com as Forças Armadas e com o vice-presidente”, diz. “Não pode ser um ato voluntarista de um pedaço da sociedade, não pode”.
No livro, Nobre afirma que é a vocação autoritária e “contra o sistema” de Bolsonaro que explica, por exemplo, porque o presidente abriu mão da oportunidade de ganhar mais popularidade ao seguir a bem-avaliada condução do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta no combate à covid-19.
“[Bolsonaro] abriu mão de uma popularidade muito maior, e talvez de ganhar uma eleição em 2022 de maneira muito mais fácil, porque discorda da democracia. Porque para ele o ‘sistema’ é a democracia, e a democracia é de esquerda”, afirma Nobre. Bolsonaro forma agora seu governo “de guerra” para se defender de um eventual impedimento, e nesse governo não pode haver discordância ou ministros mais populares que ele.
Os próximos meses serão difíceis para os brasileiros, mesmo nos melhores cenários do pesquisador. “É muito triste que a gente não possa diminuir esse sofrimento, evitar as mortes que poderiam ser evitadas. É tristíssimo isso. É deprimente”.
Leia os principais trechos da entrevista:
BBC News Brasil – O Brasil está no meio de uma pandemia, há dezenas de pedidos de impeachment contra o presidente e há um clima de conflito entre os poderes. A democracia está em risco?
Marcos Nobre – Sim, a democracia está claramente em risco. Mas está em risco desde que Bolsonaro foi eleito.
BBC News Brasil – O risco está aumentando?
Nobre – A situação é a seguinte. Quando você tem um cenário em que em poucos meses o governo será inviabilizado, porque esse é o cenário que a gente tem, e como a gente tem uma pessoa com fortes convicções autoritárias – porque são verdadeiras convicções – não é brincadeira.
O risco de você ver um bicho acuado fazer um gesto que é um gesto extremo é alguma coisa que pode acontecer. Não somente por parte do presidente, mas por parte de uma base que não é maioria, é uma minoria clara. O Datafolha do ano passado, de setembro, que diz que a base “fanática” bolsonarista conta 12%.
Não é muita gente, mas é uma base muito aguerrida e é uma base militarista, na sua concepção de mundo, mas é uma base armada e disposta a violências de todo tipo.
É um risco enorme. Nós temos focos de risco, digamos assim, de um conflito eclodir de maneira descontrolada, muito grande.
BBC News Brasil – Quando se fala em risco de ruptura, o senhor se refere a risco de violência?
Nobre – É, e caos social. Veja só. Uma coisa que não foi pra frente porque veio a pandemia e encobriu, e a gente não fala mais disso, é o motim da polícia no Ceará. Aquilo ali era uma coisa que era uma sinalização muitíssimo perigosa.
Porque o que o Bolsonaro estava tentando fazer, na verdade, era organizar as polícias em nível nacional. As polícias civil e militar são, por definição, estaduais. Por isso é que, apesar de terem contingente maior do que o contingente das Forças Armadas, não têm, nem de longe, o mesmo poder.
Porque não são organizadas de maneira nacional, não são organizadas de maneira centralizada, não têm os mesmos recursos, os mesmos armamentos, o mesmo treinamento. Apesar e elas serem numericamente maiores, elas não têm o mesmo poder que têm as Forças Armadas.
Mas se você começasse uma organização nacional das polícias estaduais, você estaria criando quase um poder militar paralelo. Isso estava na agenda do Bolsonaro.
Não é todo mundo, mas tem uma parte que têm convicção autoritária mesmo.
Você vê a cena do Rio de Janeiro do Daniel Silveira falando com o policial militar na manifestação para queimar a bandeira do Flamengo a favor da democracia [nota da edição: nas manifestações do dia 31 de maio, quando poucas pessoas se reuniram em atos a favor e contra o presidente Bolsonaro, um um vídeo mostra um policial militar afirmando ao deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) que tinha mandado queimar uma bandeira do grupo contrário ao presidente]. Então você vê, tem coisas ali muito sérias acontecendo.
E nós estamos em um momento em que, por causa do que aconteceu nos Estados Unidos, você tem um movimento de revolta contra as polícias do mundo inteiro que reforça a posição defensiva das polícias nesse momento.
Ou seja, pode colocar essa parte das polícias que é bolsonarista em uma posição parecida com a do presidente. Ou seja, de estar acuado, de estar sem saída.
E é uma situação muito perigosa essa, muito. Então a gente tem que tomar muito cuidado mesmo, é muito delicado.
BBC News Brasil – No seu livro o senhor cita que não seria favorável a um impeachment agora. Qual o risco?
Nobre – É engraçado, porque eu tenho que responder essa pergunta sempre como se eu não fosse favorável ao impeachment. É o contrário. O impeachment é o único horizonte político regenerador que a gente tem.
Nós temos que olhar para o impeachment como um horizonte, mas um impeachment é uma coisa que precisa ser construída, não é uma coisa que você decreta pela vontade ou pela raiva. Se o Rodrigo Maia aceitasse um pedido de impeachment hoje, seria derrotado na Câmara dos Deputados.
BBC News Brasil – Faltaria apoio popular?
Nobre – É claro. Para você construir um impeachment, você precisa ter uma maioria esmagadora na sociedade a favor do impeachment, uma coisa como dois terços do eleitorado. Você precisa ter uma diminuição significativa da base de apoio do Bolsonaro, uma coisa abaixo de 15%.
A recessão econômica ainda não mostrou toda sua devastação, mas vai mostrar. Assim como a crise pandêmica ainda não mostrou toda sua desgraça, mas vai mostrar. É uma questão de tempo. Agora, não é só uma questão de ter as condições de queda do apoio, de aprofundamento das crises, não é só isso.
Tem um processo de construção política que é muito complicado e muito delicado. Exatamente pelas coisas que nós estávamos conversando antes. Ou seja: um impeachment, no caso do Bolsonaro, precisa ser construído com todas as forças políticas, com exceção das forças autoritárias.
É uma repactuação da democracia que está em causa. E tem que ser uma coisa substantiva, não pode ser uma conversinha de estamos todos juntos e vamos fazer uma grande frente. Não é assim que se faz uma frente ampla. É negociando e negociando duro.
BBC News Brasil – Começaram a surgir movimentos, manifestos, de diferentes grupos, em favor da democracia. Seria o começo de algo nesse sentido?
Nobre – Sim, mas é o que você falou, é o começo.
BBC News Brasil – E já aparecem discordâncias. O ex-presidente Lula, por exemplo, já afirmou que o ex-presidente FHC não é democrata.
Nobre – Isso. Mas aí no caso do Lula, sabe qual é a minha interpretação sobre o que o Lula está dizendo? É muito simples, ele diz assim: eu tenho direito de sentar na janelinha. É isso que ele quis dizer. Ou seja, o Lula está dando de “diva”. Eu sou o Lula, então se vocês querem alguma coisa vocês vão ter que vir sentar comigo e negociar comigo.
É assim que eu interpreto isso. É sensato uma pessoa fazer isso em um momento de risco para o país? Não, mas o Lula está querendo dizer olha, o PT, se for para entrar em uma coisa dessas, vai querer entrar como um jogador que tem o tamanho que tem.
Você pode dizer que, em uma hora dessas, não devia fazer desse jeito. Mas é isso que ele está fazendo. Eu interpreto dessa maneira, porque qualquer outra maneira de interpretar significaria que o Lula não teria mais capacidade de análise política, o que não é razoável.
BBC News Brasil – Mas é um sinal de que não seria um processo fácil essa coalizão pró-impeachment que o senhor cita.
Nobre – Sim, mas o argumento do meu livro é para isso. Para dizer para as pessoas olha, vai ser muito difícil. Dá para fazer, mas vai ser muito difícil.
É evidente que a gente olha para essa quantidade de mortes desnecessárias [pela covid-19] e a gente fala não é possível que nós tenhamos que esperar meses para conseguir remover do cargo um presidente que é totalmente irresponsável, que é desumano. Mas as condições são essas, e esse é o problema.
É não perder a cabeça. Porque tudo o que o Bolsonaro quer é que todas as forças de oposição a ele percam a cabeça. Porque para ele, o caos é o ambiente em que ele se move.
BBC News Brasil –O risco que o senhor vê é de que uma ação precipitada, sem pactuar com todas as forças da sociedade, piore o caos social?
Nobre – Exatamente. Com certeza vai acontecer isso se você tive uma tentativa de impeachment precoce. As pessoas que fizerem vão ficar com a consciência tranquila, porque tentaram, e vão levar o país a uma desgraça maior do que nós já estamos, em vez de ter um movimento de regeneração.
E não é fácil fazer isso. Porque pega o caso do Lula, que a gente estava citando. O que o Lula tem que fazer é sentar junto com as pessoas que jogaram ele com os leões. E tem que negociar com essas pessoas. Fazer política é isso. Falar sim, você me traiu, você me jogou embaixo do ônibus, mas eu estou aqui porque tem uma coisa chamada democracia que é mais que tudo isso que foi feito.
E tem o seguinte: se não tiver essa repactuação, não importa quem ganhe 2022, ninguém governa.
BBC News Brasil – No livro o senhor cita que é preciso uma regeneração da democracia antes de 2022. É isso?
Nobre – Exatamente. Essa repactuação da sociedade. Vamos pegar o caso do impeachment do [Fernando] Collor. O que foi pactuado ali? Primeiro: não foi uma pactuação eleitoral.
Não se estava pactuando ali uma aliança eleitoral. Não se pactuou um governo, no sentido de que, nem todo mundo que apoiou o impeachment participou do governo. Um exemplo é justamente o PT.
Mas o que foi pactuado? Algumas coisas muito importantes. Primeiro: o governo Itamar não seria um governo de continuidade em relação ao governo Collor. Ou seja : não seria um governo ultraliberal e com intervenções enlouquecidas na política econômica e na sociedade.
Que seria um governo que garantiria as condições de competição da eleição seguinte, em 1994, que não haveria perseguição a nenhuma força nem a utilização do governo para prejudicar uma força ou outra.
Então você tinha uma pactuação ali das regras de convivência política e das diretrizes básicas da formação de um governo.
BBC News Brasil – No caso do Collor, toda essa pactuação se deu pelo Congresso. E agora, como seria essa negociação?
Nobre – Vamos começar pelo princípio. Também, no impeachment do Collor, quem empurrou o sistema político para o impeachment foi a sociedade, não foi o sistema político que decidiu o impeachment. É a sociedade que empurrou o sistema político para isso e eu acho que nós temos a mesma pendência hoje, ao longo dos próximos meses.
Eu sei perfeitamente a raiva que todo mundo sente, a frustração, a tristeza e o desejo de que a gente tenha uma solução rápida. Mas não existe uma solução rápida para a encrenca em que a gente está. Rápido, no nosso caso, é alguns meses, talvez um ano. Infelizmente. Gostaria que tivesse outra solução.
Então vamos pensar, a sociedade empurra o sistema político para isso. A pactuação, claro, que ela tem que passar pelo Congresso, tem que passar pelas forças políticas organizadas. Mas veja, isso tem que ser um pacto com o STF também. Quer dizer, o STF não pode funcionar de tal maneira que ele vá prejudicar uma força política ou favorecer uma força política nessa frente ampla. Não pode tomar medidas que sejam medidas arbitrárias, como tem tomado.
Essa pactuação tem que envolver as Forças Armadas, que é um elemento que não estava no impeachment do Collor e que é muito complicado. Tem que envolver, como sempre envolve qualquer impeachment, o vice-presidente.
E que, no caso, estamos falando de uma parte das Forças Armadas, uma parte importante.
Então o que acontece? Alguns pilares do governo Bolsonaro não vão aceitar que o Bolsonaro seja afastado e que eles sejam afastados de maneira humilhante, sem uma saída honrosa. E eles têm poder para não aceitar isso, como é o caso das Forças Armadas.
Então veja a complexidade da negociação. Porque é a negociação entre uma sociedade civil fraturada por anos de uma luta absolutamente fratricida. E de fraturas, de golpes, de rasteiras de todo tipo, que têm que se recompor e se reconciliar.
Desde a família, que tem que voltar a conversar porque parou de conversar por causa de política até as forças políticas organizadas e os partidos. Depois disso você ainda têm todas as instituições. Tem que colocar o STF, tem que colocar o Congresso, já com as Forças Armadas e com o vice-presidente.
BBC News Brasil – Mas o senhor vê perspectiva de que isso tudo aconteça nesses moldes? Ou há risco de um processo precoce, como o senhor citou antes?
Nobre – Vejo. Se for uma coisa precoce ela vai dar errado e vai piorar a situação. Vai piorar muito.
Agora, que as coisas estão acontecendo, estão acontecendo. Você tinha uma lógica imobilista de três terços, que é aquela coisa do terço que rejeita, o terço que apoia e o terço que nem rejeita e nem apoia [o governo do presidente Bolsonaro] e isso começou se mexer. Estava parado, estava uma coisa absolutamente estanque no governo Bolsonaro. Agora começa a se mexer, começa a aumentar a rejeição de maneira importantíssima.
Houve, já, uma perda da base de apoio do Bolsonaro. Tem uma parte que abandonou a base de apoio ao Bolsonaro e que foi substituída, essa é a hipótese na leitura da pesquisa, por pessoas que receberam o auxílio emergencial. Então o número parece o mesmo, mas o que está por trás do número não é mais a mesma coisa. E vamos lembrar que o auxílio emergencial é emergencial. Tem data para terminar, nem todo mundo vai conseguir receber, nem todas as parcelas.
Então o que o Bolsonaro está é ganhando tempo para conseguir montar o governo de guerra dele.
E para um militar, porque ele está raciocinando como militar, ganhar tempo é tudo. Então aquela reunião ministerial do dia 22 de abril foi a reunião em que ele disse: isso aqui é um governo de guerra. Se alguém tiver discordância está fora. Ele está montando um governo de guerra dele com um tripé muito claro. Uma base social que não vai ser mais de um terço com o decorrer do tempo, que vai ser menor. Mas uma base aguerrida, com quem ele pode contar.
As Forças Armadas como coordenação, vertebrando o governo, percorrendo todos os ministérios, tentando dar uma unidade e uma cara ao governo.
E o centrão e o Congresso. Não todo o centrão, mas aquele centrão que eu chamo de centrão “carcará”: que é o que pega, mata e come. Esse centrão é o centrão abutre, é aquele que chega quando os corpos já estão estendidos no campo de batalha.
Veja, o centrão também não é único, tem ramificações, tem alas. Vamos imaginar que a gente estivesse reproduzindo o diálogo de duas pessoas do centrão.
Um, do centrão com mais visão de médio prazo, vira para o outro e fala: mas você vai entrar nesse governo agora? Em um governo que vai se inviabilizar em alguns meses?
O centrão carcará diz: mas quantos meses? Ele responde não sei, mais uns seis meses, um ano. Seis meses um ano de cargo, de verba, de fundo público? Ótimo, tá excelente! E quando vier o próximo governo, também, a gente está à disposição.
É um tipo de apoio que serve para você resistir ao impeachment agora.
BBC News Brasil – Quando começou a pandemia o presidente tinha o ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, que vinha sendo elogiado na condução da crise. Dava a impressão de que o presidente apenas seguisse o fluxo do Mandetta ele seria um governo bem avaliado na pandemia, até se cacifando mais para 2022, aumentado a popularidade. Por que ele resistiria a isso, se isso não contrariaria a base dele?
Nobre – O livro inteiro é para responder essa sua pergunta. E a resposta é tão complicada que demorou o livro inteiro. Por uma razão simples: porque o Bolsonaro não quer fazer um governo normal. Para ele, fazer isso que você falou, cola no Mandetta e vai, significaria, para ele, se render ao sistema.
Significaria se render, no fundo, à democracia.
BBC News Brasil – Seria contrário aos princípios dele?
Nobre – Por isso que eu insisto em que a gente tem que ver Bolsonaro como político. Porque você fala mas como, ele podia ter sido um político muito maior! Mas ele não foi isso, porque ele é fiel às convicções autoritárias dele. E pra gente é muito difícil aceitar isso.
Aceitar que existe uma pessoa que abriu mão de uma popularidade muito maior, e talvez de ganhar uma eleição em 2022 de maneira muito mais fácil, porque discorda da democracia. Porque para ele o sistema é a democracia, e a democracia é de esquerda.
No vídeo daquela reunião ministerial [do dia 22 de abril], precisa colocar legenda. Porque quando ele fala em armar a população para que não venha uma ditadura, a gente tem que entender o seguinte: ditadura, para ele, é de esquerda.
Uma ditadura de esquerda é uma democracia, porque todo mundo é de esquerda, a não ser ele. E quando ele fala liberdade, ele está falando ditadura. Porque o modelo dele é a ditadura militar de 64.
Quando um democrata conta a história do Brasil, conta assim: a gente tinha uma democracia, depois a gente teve uma ruptura autoritária, e agora a partir de 1985 nós retomamos a democracia, por isso nós chamamos de redemocratização.
Agora olha o Bolsonaro contando a mesma história. Primeiro que a história começa na ditadura de 1964. No regime militar de 64, que em primeiro lugar esse regime não era uma ditadura, era uma democracia para ele, e esse regime, que é o regime mais adequado ao país, que é o que realmente corresponde ao espírito do povo brasileiro, foi interrompido indevidamente por uma coisa chamada redemocratização e Constituição de 1988.
E nós precisamos retomar aquele projeto. Então, para nós, é muito difícil entender uma cabeça dessa, mas é assim que ele conta a história brasileira e é assim que ele age politicamente.
BBC News Brasil – Mas quando confrontado ele nega, diz que é a favor da democracia.
Nobre – Lógico, porque todo líder autoritário que ainda não implantou o autoritarismo implanta o autoritarismo em nome da democracia.
Então o Bolsonaro não é diferente do [Viktor] Orbán, na Hungria. Agora, o Orbán, o que ele fez? Ele passou todo o primeiro mandato preparando o autoritarismo que ele ia consolidar no segundo.
Para entender o Bolsonaro a gente tem que entender isso. Ele não queria se render ao sistema. Para não se render ao sistema ele tem que fazer um governo de guerra. Para fazer um governo de guerra, que não admite dissensão.
Então você não pode ter um ministro da saúde que contradiz frontalmente o presidente. Você não pode ter um ministro da saúde mais popular que o presidente.
A mesma coisa parecida aconteceu com Moro, com outros elementos, como a Polícia Federal, com outras coisas que entram no meio.
Agora, se você for pegar o contra exemplo, como você falou. O Trump falou coisas muito semelhantes às ditas pelo Bolsonaro no início da pandemia. E depois ele mudou. Grudou nos médicos. Por que pensa: eu vou perder a eleição, é óbvio.
BBC News Brasil – Isso, na sua visão, diferencia Trump de Bolsonaro.
Nobre – Exatamente. Um líder autenticamente autoritário como Bolsonaro é alguém que diz assim: eu não me rendo. Eu posso perder, eu posso sair da Presidência da República, mas eu não saio daqui considerado como um líder desse sistema democrático da Constituição de 1988. A Constituição de 88 é inimiga dele.
É difícil pensar desse jeito e é por isso que a gente tende a dizer que ele é louco, que ele é burro, tal. Porque você não pode, legitimamente, admitir que exista uma pessoa convictamente autoritária. Que defenda abertamente e convictamente uma ditadura.
É uma coisa que é tão repugnante para quem tem uma cultura democrática, uma experiência de vida democrática, que a gente não consegue aceitar. Só que existe isso, e existe uma parte da população brasileira que acredita nisso.
BBC News Brasil – E grande parte da população que votou nele é a favor democracia, certo?
Nobre – Sim. Segundo o Datafolha do ano passado, a parte realmente “fanática” , em que dá para identificar uma parte autoritária da base dele, é 12%. Então, no um terço de apoio que ele tem, sobram 20% que não são autoritários.
Porque essas pessoas estavam ali? Você viu que que leva o livro inteiro para tentar mostrar por que o Bolsonaro foi, na verdade, uma coalizão de conveniência para vários grupos que se sentiam excluídos, de uma maneira ou de outra, dos espaços de decisão política do país. Mas também porque o discurso do Bolsonaro é propositadamente ambíguo.
Quando ele fala que ele é anti-sistema, o anti-establishment, alguém que pertence à base fanática, autoritária dele entende: ele é contra essa democracia aí, ele é a favor da verdadeira democracia, que é a ditadura. É até difícil formular uma coisa dessas.
Agora, os outros 20% entendem como: esse cara veio para mudar a democracia brasileira, veio para mudar o modo de funcionamento do sistema político, mas dentro da democracia.
Quando ele fala que vai armar a população para defender a liberdade, a parte fanática entende: agora sim vamos instalar a ditadura no Brasil. E a outra parte, democrata, diz: ele quer defender o Brasil de gente que está tentando romper com a democracia.
É propositadamente ambíguo o vocabulário e de uma tal maneira que cada pessoa pode entender uma coisa de uma maneira diferente da que ele fala. Agora, o que a pandemia mostrou, é que ela está tornando cada vez mais clara essa ambiguidade. Essa ambiguidade está deixando de ser ambiguidade e está mostrando claramente o projeto autoritário do Bolsonaro.
BBC News Brasil –E os militares? Não é um grupo homogêneo, mas atualmente estão em grande número no governo, inclusive à frente do Ministério da Saúde. Que papel eles terão nessa discussão sobre impeachment?
Nobre – Como você falou, as Forças Armadas são muitas. Só que elas têm uma característica, que é o valor absoluto da disciplina e da hierarquia. Tem muitas diferenças de opinião, dissensões internas, mas elas não aparecem para nós.
Porque a instituição foi feita para não mostrar dissensões. Dissensão é fraqueza, destrói a própria lógica das Forças Armadas, da disciplina e da hierarquia. Mas a gente pode ver as dissensões.
A primeira divisão importante é: o que você tem na base do quartel e a cúpula militar, as altas patentes. Depois você tem a distinção entre os militares da ativa e da reserva. Depois você tem militares que foram para o governo ou que permaneceram nas Forças Armadas.
Então você tem várias diferenças. O Bolsonaro ganhou primeiro a base dos quartéis antes de ganhar a cúpula das Forças, na eleição. Tem vários relatos que dizem que na base dos quartéis o apoio já não é mais tão unânime. Que, por exemplo, a demissão do Moro foi um golpe duro.
Claro que, tanto de um lado quanto outro, existem militares que são verdadeiramente autoritários, mas não são maioria.
E tem uma coisa que a gente precisa entender, que é: no momento em que um militar – e isso foi um processo de profissionalização das Forças Armadas, em que eles investiram muito nisso – no momento em que um militar vai para o governo, quem está na ativa já não conversa mais com esses militares da mesma maneira.
Eles não podem ter acesso a essas informações que são informações típicas das Forças.
Uma coisa que é comum a todo mundo é: na visão delas, as Forças Armadas ficaram excluídas de maneira discriminatória e indevida dos espaços de decisão política e do país por 35 anos.
Na visão das Forças isso foi injusto, porque eles têm quadros que foram qualificados para ajudar a conduzir o país, tanto no sentido de ideias quanto no próprio governo. E eles conseguiram esse lugar com o Bolsonaro. Eles não vão sair, na visão deles, da mesma maneira que eles saíram em 1985. Em 1985 eles saem, na visão deles, humilhados. Sem que seja reconhecido seu papel, seu valor, seu trabalho, etc. E eles não vão deixar isso acontecer de novo.
Porque é importante ver as dissensões internas? Se você jogar os militares no colo do Bolsonaro, aí não tem saída positiva para essa crise.
BBC News Brasil – Como assim, no colo?
Nobre – Quer dizer, se você disser ‘nós só aceitamos fazer o impeachment se os militares forem escorraçados pelo governo, você já perdeu. Já perdeu de saída.
BBC News Brasil – Mas, se repetir a história recente, o mais provável em caso de impeachment seria assumir o general Mourão.
Nobre – Exato, mas veja. O Mourão não representa todo mundo nas Forças Armadas. Ele é uma peça que não pode ser evitada na negociação. E ele tem que se dispor aos termos da negociação dessa frente para um possível governo dele e que aceitar os termos desse acordo. E o primeiro ponto desse acordo é que o governo que suceder o governo Bolsonaro não pode ser um governo de continuidade. Essa é a primeira coisa que tem que fazer parte desse acordo. Não pode ser um governo que pretende implantar o autoritarismo no país. Não pode ser um governo que se pretenda ultraliberal, mesmo que não seja na prática.
Eu espero que esse acordo, dessa frente ampla que vai acabar se formando, seja também um acordo sobre coisas substantivas, sobre alguns pontos além da convivência política.
Por exemplo: eu acho que é viável a esquerda democrática e a direita democrática aceitarem colocar como parte da agenda o combate à desigualdade.
BBC News Brasil –Até porque o Brasil vai estar no contexto pós pandemia, recessão, muita gente em vulnerabilidade social.
Nobre – Exato. Isso tem que voltar para a agenda, desapareceu no governo Bolsonaro. Não se fala mais em desigualdade no governo Bolsonaro. Então para que você consiga um pacto que realmente regenerar a democracia isso tem que ir para o centro, de volta.
BBC News Brasil – E o senhor vê mesmo chances desse acordo ocorrer? Quem vai liderar isso?
Nobre – Então. Se tiver algum nome liderando, já deu errado. Porque não pode ser um acordo eleitoral. Não pode ser acordo eleitoral, como não foi acordo eleitoral o impeachment do Collor. Não pode ter um nome que lidere, tem que ser uma coalizão para valer. Não pode ser um nome, nem dois nomes, nada disso. Tem que ser uma coalizão que envolva todo mundo, como foi o movimento Diretas Já [em 1984].
BBC News Brasil –Tem que ser diferente do que foi o da ex-presidente Dilma Rousseff?
Nobre – Nossa, o contrário, pelo amor de Deus. Ali foi a quebra de todas as regras da convivência política. É o impeachment que em nenhuma hipótese pode ser repetido. O impeachment da Dilma, como eu digo no livro, é a estratégia do boi de piranha. O sistema político vira e fala assim: nós vamos entregar a esquerda para as piranhas para a gente passar aqui em cima do rio e escapar da Lava-Jato. Isso é o acordo que foi feito, e isso não se faz.
Isso não pode ser repetido, isso é que dá em Bolsonaro. O modelo tem que ser o mais próximo possível do Collor. Claro que tem elementos que complicam na situação. Porque nós estamos no meio de uma crise que já tem sete anos.
Porque estamos com um risco de perder a democracia que nós não tínhamos lá em 1992. Porque nós temos risco do caos social que nós não tínhamos lá em 1992. Porque nós temos uma emergência sanitária de níveis alarmantes.
É muito mais grave a situação atual do que em 1992 se a gente for pensar em um acordo. E tem um novo que é o seguinte: O Itamar Franco não podia ser candidato À reeleição, e o general Mourão pode.
E isso tem que entrar na negociação também. Como é que vai ser isso? Ele se compromete a fazer um mandato tampão, ou ele vai dizer não, eu quero ter direito à reeleição, e daí a negociação é de outro jeito. Tem muita coisa para ser negociada.
BBC News Brasil – Considerando que ocorra um impeachment nos termos que o senhor defende. O que um segundo impeachment em um período tão curto fará com a democracia?
Nobre – O que acontece se não for essa a saída? O preço de manter o Bolsonaro é um preço de você ter um país em crise permanente até 2022, e ninguém aguenta mais. As pessoas estão morrendo, literalmente, e vão morrer mais, porque a recessão não chegou ainda de verdade. Estamos vendo só o começo da destruição.
Então tem um pacto de sobrevivência.
BBC News Brasil – Mas o senhor prevê que o impeachment está dado? Vai haver de qualquer jeito?
Nobre – Se não tiver, a gente não vai sobreviver. O impeachment é um pacto de sobrevivência do país. Porque o atual presidente está colocando em risco a existência do país, a viabilidade do país.
Então você diz, bom, mas como é que a gente pode ter mais um impeachment? Eu falo o mas como é que a gente pode ter um país que se inviabiliza?
É bom ter tanto impeachment? Não , não é. Inclusive, deve fazer parte desse grande pacto um acordo gente, impeachment é bomba atômica, você não aperta o botão toda hora.
Porque, se apertar toda hora, significa que vai apertar sempre.
BBC News Brasil – Considerando que seu melhor cenário se concretize, desse impeachment com ampla negociação que dure cerca de um ano, será um ano difícil, não? Com pandemia, manifestações.
Nobre – Vai ser uma tragédia. Não tem como minimizar a desgraça. E o que acontece é o seguinte. É evidente que eu compartilho do sentimento da grande maioria da população brasileira de indignação, de raiva, de desespero, de tristeza, por uma atitude desumana, irresponsável desse presidente. E a vontade que a gente tem é que ele saia já. O problema é que não existem as condições para que ele saia já, e não são fáceis de construir.
Não existe política se não estiver na base da política a indignação, a raiva. Mas eu não posso fazer política com raiva. Se eu fizer isso, vou entrar justamente na lógica da morte, que é a lógica do Bolsonaro. A lógica do caos, que é a lógica do Bolsonaro. Ao contrário dele, tem que ter serenidade e firmeza, e a unidade possível, que é a unidade em defesa da democracia
Se em um momento como esse você não conseguir produzir esse pacto regenerativo, o país está inviabilizado. Vai deixar de existir? Não vai. Mas vai passar dez anos em crise, sofrimento e nós vamos regredir 20 anos em termos de desenvolvimento em todos os sentidos da palavra. E talvez se torne, de fato, um lugar inabitável.
E não vai ser a primeira vez na história do país que passamos por um momento de quase inviabilização. Agora, este aqui, é particularmente grave. Porque é a primeira vez que a inviabilidade vem junto com três crises sobrepostas, sanitária, econômica e política, e com risco real de supressão da democracia e de uma volta do autoritarismo.
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Foto: Guilherme Santos /Sul21