É possível e recomendável ir para as ruas com responsabilidade e moderação, para não abandoná-las nas mãos dos bolsonaristas.
Thomas Hobbes afirmou certa vez: minha mãe pariu gêmeos, eu e o medo. A frase era biográfica e política, porque a mãe de Hobbes iniciou seu trabalho de parto quando chegou na Inglaterra a notícia de que a grande armada espanhola estava navegando na direção da ilha. Eu diria que a pandemia fez o mesmo: ela recolocou a política no centro da conjuntura, mas acentuou uma política do medo introduzida por Bolsonaro e outros presidentes populistas de direita.
Nesta semana, vimos a tentativa do presidente dos Estados Unidos de qualificar como terroristas os que ocuparam as ruas para protestar contra o brutal assassinato de um cidadão negro pela polícia de Minneapolis. Mas, as manifestações foram exitosas apesar de episódios de violência gerando punições inéditas aos policiais envolvidos. O Brasil talvez seja um caso mais significativo que o dos EUA sobre o que está em jogo. O bolsonarismo ocupou a rua durante a pandemia e realizou sete manifestações seguidas desde o dia 15 de março. Apenas o ministro da Saúde criticou estas manifestações que acabaram não reforçando nem o negacionismo e nem as ameaças militares do capitão. Apenas na semana passada surgiu uma reação das forças democráticas e uma tentativa delas de ocupar as ruas. Foi nesse contexto que surgiram ameaças relativas a manifestações de protesto feitas tanto pelo presidente como por seu vice.
Em meu novo livro Política e antipolítica: a crise do bolsonarismo (a sair na próxima semana pela Editora Todavia) abordo a crise política que vivemos a partir de uma frase de Gramsci sobre o cesarismo. O cesarismo é uma situação de equilíbrio político catastrófico. O presidente tentou radicalizar a conjuntura em duas direções: na do negacionismo da pandemia e na tentativa de ameaçar as instituições democráticas, em especial o STF.
O presidente perdeu apoio em ambos os embates: a posição dele sobre a pandemia, ao ser aferida em pesquisa de opinião pública, recebe metade do apoio da posição dos governadores de estabelecer o isolamento social. Em dados ainda preliminares da pesquisa aplicada pelo INCT (Instituo da Democracia) esta semana em torno de 80% dos brasileiros se posicionam contra a intervenção militar.
Não há quaisquer dúvidas sobre a perda de apoio do bolsonarismo, tanto no sistema político como na opinião pública e nas redes sociais onde, diferentemente de 2019, no saldo do dia é quase sempre maior a quantidade de postagens de crítica ao bolsonarismo. Isso criou um novo ambiente político. As falas do presidente produzem panelaços nas grandes cidades, hashtags contra o presidente tornam-se trending topics, parte significativa do sistema político se manifesta abertamente contra o presidente e as manifestações bolsonaristas em frente ao Planalto perdem força. Mas, essa perda de apoio produziu um equilíbrio instável tétrico, porque o presidente conseguiu e continua conseguindo desorganizar as políticas contra a pandemia. O Brasil está há mais de duas semanas sem ministro da Saúde, as regiões com menos infraestrutura médica estão sendo devastadas pela epidemia. A sobrevivência do governo Bolsonaro produzirá morte em massa da população de baixa renda. Aliás, já está produzindo. É nesse contexto que a questão da ida às ruas e dos seus riscos se coloca.
Temos medo, justificadamente, de sair à rua e aumentar a contaminação; temos medo de sair as ruas e provocar (sic) os militares. As duas questões têm que ser colocadas em perspectiva: a epidemia se espalhou porque não conseguimos impor um limite ou uma derrota ao bolsonarismo. Ele demitiu um ministro da saúde que estava sendo relativamente efetivo contra a pandemia. Mandetta tentou organizar o isolamento social enquanto o presidente falava abertamente na TV contra o isolamento. No dia da demissão do ministro o Brasil contava 2000 mortos e hoje está com 35.000 e sem ministro da saúde. O capitão realizou uma reunião ministerial patética no dia 22 de abril na qual ele falou mais tempo sobre tacômetro e velocímetro de caminhão do que sobre a pandemia. Ou seja, temos medo do Bolsonaro, mas ele já opera sobre o signo de Thanatos e não se importa com a morte de brasileiros.
O segundo problema são os militares. Evidentemente os militares estabelecem no governo Bolsonaro alguma atividade moderadora, mas também operam através de um conjunto de ameaças ao sistema político. Em um dos domingos no qual o presidente agitava as massas de direita e as chamava para quebrar o isolamento, uma carreta em Brasília era liderada por um veículo com os dizeres “intervenção militar com Bolsonaro.” Ao parar em frente ao Palácio do Planalto, o presidente se posicionou na rampa e disse aos participantes havia chegado “ao limite” e tinha o “apoio das Forças Armadas”.
A faixa da manifestação e a fala de Bolsonaro,se juntaram a diversas outras, a mais forte delas pronunciada em um acesso de raiva no dia seguinte à operação coordenada pelo Supremo contra as fake news. Na cerca em frente ao Palácio, o presidente afirmou: “acabou, p.”. As forças armadas desde abril emitem sinais contraditórios. No dia 20 de abril, o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, afirmou que as Forças Armadas trabalham para “manter a paz e a estabilidade do país, sempre obedientes à Constituição Federal”, uma afirmação fraca, dado o discurso aberto em favor do golpe, mas ainda assim significativa. Mas, no domingo passado ele subiu em um helicóptero com o presidente e sobrevou uma manifestação pela intervenção militar.
Podemos afirmar o mesmo em relação ao vice, Mourão. Em um artigo no Estadão, duas semanas atrás, ele se habilitava a ser um sucessor de Bolsonaro, mas dizia as condições. O vice-presidente também tem uma trajetória rebelde nas Forças Armadas, mas não tão acentuada quanto a do capitão reformado. Neste artigo, após afirmar que “nenhum país vem causando tanto mal a si mesmo como o Brasil”, atacou o Supremo, os governadores e o Congresso. É importante entender a posição de Mourão, uma vez que ele pode tanto ser o defensor maior do bolsonarismo como também o maior beneficiário de um processo de impeachment. O que ele resgata no artigo é uma forte tradição de hierarquia e ordem, que parece tanto uma crítica ao sistema político quanto ao presidente.
O seu artigo mais recente no mesmo O Estado de São Paulo traz posições completamente inadequadas sobre as manifestações das torcidas organizadas e de grupos antifascistas. Todos nós sabemos que não houve baderna, que não houve coordenação internacional. Assim, ao mesmo tempo, em que Mourão se coloca como um sucessor possível de Bolsonaro, ele ameaça a sociedade e até mesmo as instituições nas suas formas de organização.
Quais são os dilemas que enfrentamos neste momento? O primeiro deles, a meu ver, é o dilema hobbesiana do duplo medo. Temos medo de sair às ruas e aumentar a contaminação, temos medo de sair às ruas e provocar (sic) os militares. As duas questões têm que ser colocadas em perspectiva.
Reitero, a epidemia se espalhou porque não conseguimos impor um limite ou uma derrota ao bolsonarismo. O Brasil está com 35.000 mortes e sem ministro da saúde. Está claro que Bolsonaro não se importa com a morte em massa de brasileiros. O segundo problema são os militares. Evidentemente os militares estabelecem no governo Bolsonaro alguma atividade moderadora, mas também operam através de um conjunto de ameaças ao sistema político. O vice não menciona entre os atos antidemocráticos, uma manifestação com tochas em frente ao STF. Ou seja, não temos na conjuntura opções boas.
Assim, tenho uma posição diferente daquela defendida por Luis Eduardo Soares, um cientista político pelo qual tenho o maior respeito. Em um post recente ele afirmou: “Se vocês forem às ruas, e eu adoraria que fossem e eu estaria junto com vocês, em condições normais, não só vão ajudar a propagar o vírus em nossos grupos, como vão oferecer a oportunidade que os fascistas aguardam, ansiosamente, e que têm sistematicamente estimulado. Se isso ocorrer no próximo domingo, à noite, em rede de TV e rádio, Bolsonaro dirá que, em defesa da lei e da ordem, e “da democracia”, enviará na manhã seguinte solicitação ao congresso para a decretação do estado de sítio. Se não houver apoio, o “poder moderador” das Forças Armadas se imporá, porque, afinal de contas, “Brasil acima de todos, Deus acima de tudo”.
Diversas questões devem ser pontuadas aqui: a primeira delas de ordem prática. Existem formas sanitárias de manifestação e eles foram importantes em diversos países do mundo. Nos Estados Unidos, a deputada e ativista Alexandria Ocasio-Cortez, divulgou um infográfico mostrando o que vestir e o que levar aos protestos para que eles sejam seguros sanitariamente. Em Israel, manifestantes a favor do julgamento de Netanyahu se reuniram com distâncias seguras e o judiciário resolveu realizar o julgamento a despeito da pandemia devido à sua importância política. Assim, existem formas seguras de protestar e não devemos abrir mão deste direito.
Há uma segunda dimensão no argumento de Luis Eduardo Soares que não me parece adequada: abandonar as ruas aos fascistas não irá resolver o problema dos ataques aos direitos de expressão dos democratas. Lembremos da conjuntura dos anos 1930 na Alemanha onde as intimidações nazistas permitiram a vitória eleitoral de Hitler. Os fascistas querem dominar a rua e não podemos deixá-los fazer isso. Reproduzo aqui uma frase de Himmler cujas cartas foram recentemente publicadas pelo Die Welt: “Hitler resumiu a estratégia das manifestações de massa: Nós não devemos trabalhar em pequenas reuniões, mas em manifestações de massa poderosos. Não será pela adaga, pelo veneno e pela pistola que o caminho será conquistado para o movimento e sim pela conquista das ruas”. Essa é uma frase a ser lembrada no Brasil hoje.
Ou seja, todos os elementos apontados por Soares estão aí para ficar: o vírus, os fascistas na rua e as ameaças militares. Qual é a solução então? Ir para as ruas com responsabilidade e moderação, para não abandoná-las nas mãos dos bolsonaristas. Distanciamento nas manifestações, segurança para extrair os provocadores, representação dos que não puderam ir e quiserem se preservar são os elementos mais importantes deste final de semana. Se não formos à rua por medo, os bolsonaristas terão conseguido estabilizar uma conjuntura instável que aponta para a sua derrota.
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*Leonardo Avritzer é professor de ciência política na UFMG e autor, entre outros livros, de O pêndulo da democracia (Todavia).
Foto: Marlene Abramo / Folhapress