Hora de falarmos sobre a polícia que queremos

Debate sobre Segurança Pública foi capturado pela ultradireita — e sociedade quase nunca vai além das denúncias. Na onda de protestos antirrascistas, oportunidade para a Reforma Policial democrática — com olhar comunitário e desmilitarizado

por Almir Felitte*, em Outras Palavras

O debate sobre segurança pública no Brasil é, talvez, uma das discussões políticas mais recheadas de “terraplanismos”. Direcionado por chavões como “bandido bom é bandido morto” e “direitos humanos para humanos direitos”, o país segue apostando na violência policial e no punitivismo como forma de reduzir a criminalidade e aumentar a segurança, mesmo que o efeito dessa política tenha sido o contrário há décadas.

Na esquerda, também criamos nossos próprios mitos sobre o tema. Virou ponto comum, por exemplo, dizer que tocar em temas centrais como a desmilitarização das polícias e o fim da guerra às drogas durante uma campanha pode espantar o eleitorado. Adiando o debate e nos limitando a uma postura necessária, porém insuficiente, de meros denunciantes da violência policial, jogamos praticamente toda a discussão sobre a estrutura das polícias e da segurança pública no colo da direita para que ela sempre fizesse o que bem entendesse com isso.

Outro mito que nós mesmos sempre difundimos seria o de que a desmilitarização da polícia seria uma “quase-utopia”, uma reforma policial que não poderia ser feita de uma hora para outra, pois só poderia acontecer em condições políticas muito diferentes das atuais. Paradoxalmente, do outro lado, esse sistema de segurança pública militarizado é justamente um dos principais mecanismos funcionando para manter as condições políticas atuais.

Mas estes mitos podem estar prestes a cair. O brutal assassinato de George Floyd pela polícia nos EUA parece ter sido uma fagulha que incendiou a luta antirracista no mundo todo. E esse incêndio tem, como foco, justamente os sistemas policiais do mundo todo.

No epicentro deste levante que já vem tomando outros países, um acontecimento pode fazer a esquerda rever seus posicionamentos na questão da segurança pública brasileira. A Câmara Municipal de Minneapolis, cidade em que Floyd foi assassinado, já anunciou que desmantelará seu atual departamento de polícia para substituí-lo por um sistema de policiamento comunitário. Uma reconstrução total do sistema de segurança pública da cidade baseada na ideia de desmilitarização.

Vale uma pequena explicação aqui: a militarização é um fenômeno amplo que atinge muito mais do que uma polícia propriamente militar, podendo estar presente em polícias de caráter civil e até mesmo em instituições não policiais. O militarismo é uma linha de pensamento e uma estrutura complexa pautada, resumidamente, em valores disciplinares rígidos, na hierarquia verticalizada, no isolamento em relação à sociedade civil e, principalmente, na chamada ideologia do inimigo.

A única polícia realmente militar nos EUA, por exemplo, é a Guarda Nacional, que é utilizada apenas em situações catastróficas, mas isso não impede que as polícias de caráter civil do país sofram um processo de militarização. No Brasil, por exemplo, regimentos de Polícias Civis estaduais e de Guardas Civis Municipais copiam uma série de valores presentes em regimentos tipicamente militares. A presença de algumas divisões de elite em polícias de caráter civil também aponta para essa militarização.

Em suma, o debate que está sendo colocado nos EUA, a partir de Minneapolis, é justamente o da desmilitarização das polícias, apontando o policiamento comunitário como solução. O policiamento comunitário, vale dizer, não é só um sistema baseado no caráter civil das instituições policiais. Na verdade, ele é um conceito amplo e complexo, que substitui a figura do “soldado preparado para combater inimigos” pela do “agente de segurança pública”.

Em outras palavras, dentro dos princípios do policiamento comunitário, o agente policial se torna uma espécie de interlocutor entre os cidadãos de uma determinada comunidade e o Estado, buscando soluções interdisciplinares para a criminalidade e a violência locais. “Interdisciplinaridade” e “local”, aliás, são palavras-chave para entender este conceito de policiamento.

Isso porque o sistema de policiamento comunitário é, essencialmente, o reconhecimento de que violência e criminalidade não são apenas caso de polícia e, através de um trabalho especializado em uma determinada localidade, este novo agente policial é capaz de apontar soluções para estes problemas que ultrapassem a simples repressão, já sabidamente insuficiente. É plenamente possível, por exemplo, que uma determinada região tenha altos índices de criminalidade por razões muito específicas, tais como pouca iluminação, falta de linhas de transporte público, ausência de áreas de lazer, problemas internos em uma escola ou ausência de atendimento sanitário a usuários de drogas.

É no momento de constatação de quais seriam as causas para a criminalidade de uma região que entra o terceiro e talvez mais importante pilar do policiamento comunitário: a participação popular. Uma polícia com participação dos cidadãos, em diálogo direto com a comunidade para a confecção de políticas públicas para uma região, é o que caracteriza a polícia comunitária. E essa aproximação, é claro, só pode ser feita através de uma polícia que não enxergue o povo como inimigo, mas como agentes de direitos. Ou seja, uma polícia essencialmente desmilitarizada.

E a demanda por esta nova polícia, hoje, é incontestável. Estamos assistindo a uma revolta mundial contra um arcaico modelo militarizado que transformou cidadãos comuns em inimigos. Claramente não há mais desculpas para dizer que o tema é espinhoso demais para ser debatido em momentos de campanha, ou que o mesmo não é urgente o suficiente para que uma reforma seja pautada desde já. Não podemos continuar adiando um debate enquanto temos novos João Pedros e Agathas tombando todos os dias pelas mãos da militarizada polícia brasileira.

A esquerda ter medo e vergonha de ser esquerda foi um dos problemas que nos trouxe até aqui. Largamos muitas de nossas bandeiras para sermos mais palatáveis sabe-se lá a quem e acabamos todos engolidos por um sistema que cobra concessões sem conceder um passo para trás sequer. Recuamos e só o que eles fizeram foi avançar. Mas não podemos recuar quando vidas estão em jogo. É mais do que hora de avançarmos sobre o tema da desmilitarização.

*Advogado e estudioso de Políticas de Segurança Pública

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