Somos obrigados a obrigar o governo a não nos deixar morrer

por Eloy Terena*, em Cimi

Nasci em 1988, junto com a nova Constituição, quando o Estado brasileiro finalmente nos reconheceu cidadãos. Foi um bem legado a nós pela geração anterior; entretanto, somos obrigados a defendê-lo desde o berço.

Enfrentamos agora o nosso maior desafio. Podemos ser dizimados pela Covid-19; povos inteiros correm o risco de desaparecer. O tratamento dado à pandemia no Brasil tem sido especialmente catastrófico para nós. Por esta razão, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) está tomando uma medida drástica: entramos no Supremo Tribunal Federal (STF) com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) para obrigar o governo a não nos deixar morrer.

O Executivo tem se especializado nas práticas de acusar o adversário de fazer o que ele próprio faz e culpar o outro pelo resultado de suas omissões. Um dos sintomas do novo coronavírus foi deixar esse “modus operandi” ainda mais evidente. Enquanto responsabiliza governadores e acusa o Judiciário de interferir em suas atribuições, cruza os braços durante a pandemia. Atribui ao STF uma tentativa de judicialização da política, quando o que acontece é que a sociedade civil está sendo obrigada cada vez mais a recorrer à Justiça para que ele cumpra os seus deveres.

“Fomos obrigados a recorrer à instância máxima do Judiciário porque, enquanto permanecemos isolados, nossos territórios estão sendo invadidos e nossa saúde, negligenciada”

Fomos obrigados a recorrer à instância máxima do Judiciário porque, enquanto permanecemos isolados, nossos territórios estão sendo invadidos e nossa saúde, negligenciada. Segundo a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), a taxa de mortalidade pela doença por 100 mil habitantes entre indígenas da região amazônica é 150% maior que a média nacional, e ao menos 30% dos territórios analisados no estudo têm potencial elevado de contágio por causa do desmatamento e da ação de grileiros e garimpeiros.

A ADPF é um recurso inusual, que tem “por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público”, segundo o artigo 102 da Constituição. O documento que protocolamos nesta segunda-feira (29) no STF tem mais de 80 páginas que podem ser resumidas a um pedido, respaldado constitucionalmente, para que o governo exerça a sua obrigação de cuidar de nossas segurança e saúde.

O primeiro indígena morador de aldeia a morrer de Covid-19 foi Alvanei Xirixana, um jovem Yanomami de 15 anos —portanto, fora do grupo de risco. Mais de 20 mil garimpeiros já invadiram a Terra Yanomami. Pode-se dizer, sem exagero, que este povo e os indígenas isolados estão ameaçados de extinção; mas todos nós somos extremamente vulneráveis, mesmo os que vivem em cidades.

De acordo com o Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena da Apib, até o dia 27 de junho o país registrava 378 indígenas mortos, 9.166 infectados e 112 povos atingidos pelo vírus. Com base nesses dados, verifica-se que o índice de letalidade entre indígenas é de 9,6%, contra 5,6% da população brasileira em geral. Uma pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) mostra que 48% dos pacientes internados que morrem são indígenas. É a maior taxa de mortalidade do país, superando as populações parda (40%), negra (36%), amarela (34%) e branca (28%).

Entre os mortos que choramos nos últimos dias estava Paulo Paiakan. Ele foi fundamental na conquista de nossos direitos constitucionais; fez parte da geração anterior à qual me referi no início do texto, ao lado de pioneiros do movimento indígena, como Raoni, Mario Juruna e Aílton Krenak.

A Constituição de 1988 foi um avanço civilizatório saudado pela maioria das nações como exemplo a ser seguido; portanto, não apenas uma conquista dos povos indígenas, mas um bem de todos os brasileiros, que por todos deve ser defendido. E o melhor remédio não só contra o coronavírus, como para outros males que há por vir.

*Artigo publicado originalmente na Folha de São Paulo.

Em 2017, povos indígenas realizaram vigília em frente ao STF, em defesa de seus direitos originários. Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

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