Rede de Solidariedade se mobiliza para amenizar fome, frio e avanço da covid-19 nas aldeias e acampamentos indígenas

Com articulação, organização e apoio de parceiros, o Regional Sul do Cimi realizou a entrega de 2 mil kits com alimentos, produtos de higiene e agasalhos

Por Regional Sul do Cimi

A medida em que a pandemia avança para os territórios e acampamentos indígenas, são muitas as realidades onde as alternativas de subsistência se esgotam. Nesse contexto, soma-se como um agravante a omissão dos órgãos de Estado. Além de não poder produzir e vender seus produtos devido a necessidade de isolamento social, são muitos os povos que não têm suas terras demarcadas e habitam espaços fundiários degradados, ou lugares em que não se pode plantar, como nas margens de estradas, em áreas de preservação permanente ou de domínio público.

A pandemia modificou a rotina nos territórios, o isolamento social restringiu a confecção e venda do artesanato, interferindo na renda e por consequência na compra de alimentos e outros utensílios. Com a carência alimentar, a fome veio com a pandemia. As crianças são as mais afeitadas em situação de desnutrição. Diante da realidade, as lideranças passaram a denunciar o não recebimento de cestas básicas e responsabilizar a Fundação Nacional do Índio (Funai), e outras instituições públicas, por terem interrompido o fornecimento de cestas básicas.

As doações de alimentos às comunidades entregues pelas equipes do Regional Sul do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) buscou amenizar os efeitos do isolamento social. A fome chegava nas aldeias num período dramático de pandemia. De março a junho, a extensa rede de solidariedade aos povos indígenas organizada pelo Regional Sul do Cimi, que contempla as regiões Sul e Sudeste do país, realizou a doação de mais de 2 mil kits, com itens de higiene, limpeza e alimentos, distribuídos a mais de 50 comunidades e acampamentos indígenas. Agasalhos e cobertores para amenizar o frio se somaram aos kits contra a covid-19.

“As doações contaram com o apoio e solidariedade de pessoas ligadas as Igrejas locais, as Pastorais Sociais, a Cáritas, Frente Quilombola, movimentos populares, ambientais, acadêmicos, sem-terra, Amigos da Terra e de pessoas físicas. É uma rede engajada na luta pela garantia de alimentos nas aldeias indígenas”, conta Roberto Antônio Liebgott, coordenador do regional. Para as ações, o Cimi Sul contou com o apoio de agências da cooperação internacional e congregações religiosas. A Defensoria Pública da União (DPU) e o Ministério Público Federal (MPF) também foram mobilizados para que agissem nas esferas administrativas e judiciais, cobrando a adoção de medidas por parte dos órgãos de Estado.

A consolidação da rede de solidariedade e a mobilização social conseguiu, ao menos por um tempo, assegurar a distribuição de alimentos e roupas de frio. “Nós, do Cimi Sul, pela facilidade dos contatos e conhecimento das comunidades, estamos sendo demandados cotidianamente a ajudar na entrega de donativos. Não mediremos esforços na continuidade dessa tarefa”, assegura Liebgott.

Para o cacique Deoclides, do Povo Kaingang, Terra Indígena Kandóia (RS), a ajudar veio num momento difícil. “Nesta pandemia nos ajudou em muito os alimentos, as doações e o acompanhamento que o Cimi tem feito. Nós da comunidade só temos a agradecer a estes parceiros que sempre nos ajudaram nas horas mais ruins. E quando está bom, sempre nos acompanha na aldeia”.

Quem recebe, agradece

As ações tiveram início em março, quando o isolamento social já era uma exigência. Os cuidados com a higienização dos produtos, utensílios e o uso de luvas e mascaras tornaram-se indispensáveis. Alimentos e os kits de higiene foram entregues em todas as regiões do Sul e Sudeste do Brasil, onde o Cimi Sul atua.

No Rio Grande do Sul, as ações foram intensivas nas regiões metropolitanas de Porto Alegre, litorânea e ao norte do estado. Aos povos Mbya Guarani e Kaingang foram entregues em torno de mil cestas básicas, com itens de higiene, limpeza e alimentos. A rede de solidariedade chegou a mais de trinta comunidades indígenas nessa região, por estarem em extrema vulnerabilidade, com comunidades recebendo as cestas em mais de uma oportunidade.

“Alimentos e os kits de higiene foram entregues em todas as regiões do Sul e Sudeste do Brasil, onde o Cimi Sul atua”

“Para nós é sempre importante essa ajuda, que se torna mais especial nesta situação que estamos vivendo de pandemia. As aldeias Guarani sobrevivem do artesanato e doações, então vem na hora certa para ajudar a aliviar essa situação que a gente está passando”, relata Eloir Oliveira, liderança Guarani.

Em Santa Catarina, do Oeste ao Litoral, foram entregues cestas com produtos de higiene e limpeza, alimentos como frutas e legumes, roupas e cobertores. No Oeste do Paraná a rede de solidariedade fez chegar doações a seis acampamentos Guarani e aos tekoha Yva Renda e Ara Porã, com apoio das Irmãs Catequistas Franciscanas. O cacique André Benites, da retomada Maquine, aldeia Ka’Aguy Porã, destacou a importâncias das ações desenvolvidas pela Rede de Solidariedade, “importante, ainda mais neste momento de dificuldade que passamos juntos. Eu agradeço muito em nome da comunidade”.

Como surge a Rede de Solidariedade

A crise sanitária que se alastra em todo país tem evidenciado o desmantelamento das políticas de saúde, educação e emprego, agravadas pela escolha do Governo Federal em priorizar a economia em detrimento da vida. “A inoperância, negligência e ignorância de autoridades responsáveis pela condução das medidas de enfrentamento a pandemia tornam o cenário ainda mais delicado”, ressalta Liebgott.

Os povos indígenas estão entre os grupos mais afetados na pandemia, situação agravada pela inoperância do Ministério da Saúde e da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), que não apresentaram nenhum plano de ação eficaz para territórios. As medidas de proteção ao avanço da covid-19 foram adotadas pelos próprios povos indígenas em todo país, sem um programa de ação para realização de testagem, distribuição de equipamentos de proteção, ou treinamento de agentes indígenas de saúde.

Em São Paulo, o primeiro Estado a enfrentar o isolamento, os trabalhos da equipe do Cimi Sul têm sido constantes juntos aos povos que vivem em contexto urbano, em parceria com uma extensa rede de aliados que possibilitou a mobilização e acompanhamento a aqueles que estão na cidade e às famílias Mbya Guarani de diversas comunidades no Vale do Ribeira. Onze povos em contexto urbano receberam doações, e duas aldeias na Terra Indígena Jaraguá. No interior do estado, as ajudas chegaram na Terra Indígena Rio Silveira, do povo Mbya Guarani, no litoral norte de São Paulo, em três aldeias Guarani Mbya e Tupi Guarani no litoral sul, nos municípios de Itanhaém e Mongaguá.

Os povos indígenas, em especial das regiões Sul e Sudestes, enfrentam ainda a falta de investimentos em saneamento básico e água potável. São afetados pela ausência de políticas nutricionais e ações de monitoramento, prevenção e proteção das áreas indígenas, inclusive para impedir invasões.

“Estas regiões reúnem um grande número de famílias e comunidades indígenas que vivem em contexto urbano, e por isso enfrentam graves adversidades e violações a seus direitos fundamentais”, ressalta Roberto Antônio Liebgott. É um contexto que revela uma dupla discriminação, segundo o Regional Sul do Cimi: “uma, oriunda da União, que não lhes assiste porque são ‘desaldeados’; outra, dos estados e municípios, porque os gestores alegam ser responsabilidade do Governo Federal. Afirmam que não são responsáveis por ações e serviços a serem destinadas a essas populações”. Expulsos de seus territórios, forçados a viver em acampamento e nas periferias, as famílias vivem, em geral, sem a terra, em acampamentos improvisados em áreas degradadas ou concedidas para um uso restrito e temporário.

Sem seus territórios demarcados, sem lugar para plantar e cultivar, os indígenas sobrevivem em função das aposentadorias de alguns anciões, pela comercialização de artesanatos e pelos poucos recursos obtidos em algum trabalho externo, quando conseguem prestar serviços em frigoríficos ou na colheita de produtos agrícolas. Nesta região, a covid-19 adentra os territórios indígenas por meio destes trabalhadores de frigoríficos, como foi o caso do Tekoha Oco’y, no oeste do Paraná.

Inviabilizados pelo Estado, as lideranças acionam o Cimi pedindo contribuição para as denúncias acerca das violências e acionar os órgãos públicos. Segundo o Regional Sul, o pedido de notificação se referia especialmente aos responsáveis pela execução da política indigenista para que promovessem ações, mesmo que emergenciais, para atender as demandas sanitárias e nutricionais das comunidades. “O Cimi Sul passou a articular campanhas de solidariedade, com o objetivo de estimular e assegurar apoios emergenciais para as comunidades que se encontram em situação de maior vulnerabilidade”, relata o coordenador do regional, Roberto Antônio Liebgott.

Ao mesmo tempo em que se buscava formar a rede de solidariedade se requereu a Defensoria Pública da União (DPU) e ao Ministério Público Federal (MPF) para que acionassem judicialmente a Funai, obrigando-a por decisão judicial a prestar assistência. “Parecia haver, por parte de seus gestores, omissão e negligência diante de um contexto de pandemia e de realidades onde as pessoas estavam passando fome”, relata Roberto.

A pandemia não passou e as ações continuam

A situação de vulnerabilidade aos quais os povos indígenas estão submetidos ainda não está superada. A rede de solidariedade organizada pelo Regional Sul do Cimi segue com as articulações e mobilização. Apesar de todas as ações, os esforços ainda não são suficientes. “Estamos passando por dificuldade. Tá muito difícil, sem ajuda, sem a terra, estamos na beira da estrada”, coloca o jovem indígena, Rafael Brisoela, do acampamento em Cárceres.

As ações da rede devem seguir. O Cimi mantém em seu site um canal aos que desejam contribuir com a ação do organismo nas aldeias, junto as comunidades atendidas. Apoie o Cimi e nossa presença junto aos povos indígenas.

O Cimi mantém em seu site um canal aos que desejam contribuir com a ação do organismo nas aldeias, junto as comunidades atendidas. Apoie o Cimi e nossa presença junto aos povos indígenas.

Imagem: As doações foram possíveis com o apoio da Rede de Solidariedade que se engajou na luta pela garantia de alimentos nas aldeias indígena. Foto: Regional Sul do Cimi

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